INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 118 - Setembro / 2002





 

Coordenador chefe:

André Gustavo I. Fonseca

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela

Conselho Editorial

Editorial

A Aplicabilidade da Presunção de Violência Diante do Consentimento da Vítima nos Crimes Contra a Liberdade Sexual

André Luís Callegaro Nunes Gomes

Acadêmico de Direito, 4º semestre da Universidade de Santa Maria (UFSM/RS).

A presunção de violência, prevista no art. 224, alínea a, do Código Penal Brasileiro, tem provocado importantes debates em virtude do legislador considerar que a incapacidade de consentimento faz presumir a violência nos crimes contra a liberdade sexual. Ao sustentar esse entendimento atualmente, os aplicadores da lei originam graves problemas diante do caso concreto, não excluindo a presunção de violência mesmo diante do depoimento da vítima que alega veementemente o consentimento na prática do ato demonstrando que era plenamente capaz de fazê-lo.

Como se nota, o bem jurídico preservado nos crimes contra a liberdade sexual, como a própria classificação deles diz, é pois, a liberdade sexual. A lei protege basicamente um interesse pessoal da livre disponibilidade do corpo em matéria sexual, garantindo a inviolabilidade carnal contra atos violentos e abusivos, considerando que tais atos ofendem a moral pública sexual.

A presunção de violência do art. 224, apenas acrescenta mais um elemento integrante do tipo penal dos crimes de violência sexual, trazendo para tipificar esses crimes o elemento da violência. Esse dispositivo de lei não se confunde com previsão legal de causa agravante ou aumentativa de pena, nem mesmo com a circunstância qualificadora daqueles delitos. Nesta linha de entendimento leciona Franco:

"No Estatuto Penal, apesar da timidez da doutrina em classificar o tipo do art. 224, presunção de violência constitui-se em norma tipificadora de crime presumido; ou seja um tipo penal dos arts. 213, 214 e 219. O art. 224, como se encontra disposto no Código Penal, não se afigura como tipo penal qualificado, nem circunstância agravante ou causa especial de aumento de pena define a presunção de violência, elencando hipóteses, numerus clausus, que revestem da qualidade de elementos do crime".(1)

Assim, se um homem mantém conjunção carnal estará praticando uma conduta atípica, porém se o fez com pessoa menor de 14 anos presume-se a violência. Então para os crime contra a liberdade sexual, esta norma inscrita no art. 224, alínea a do Código Penal, tipifica a violência que foi presumida em função da idade da vítima. Nessa esteira, podemos chegar à seguinte situação: um homem pode estar se relacionando sexualmente, sem ter o conhecimento da idade da parceira por supor tratar-se de pessoa maior de 14 anos, devido a aparência física ou devido ao seu comportamento, e posteriormente, vir a ser acusado de estupro, art. 213 do CP, por constranger mulher a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça, com pena de reclusão de quatro a dez anos considerado crime hediondo com aumento de pena até a metade respeitando o limite superior de trinta anos de reclusão. Este é só um exemplo dos problemas que a presunção de violência pode causar, acarretando importantes debates quanto ao entendimento da natureza da presunção de violência.

Quanto à natureza jurídica da presunção de violência, no caso da alínea a do art. 224 do Código Penal Brasileiro, a jurisprudência criou duas correntes a respeito da presunção da violência: uma considera a presunção de natureza absoluta (juris et de jure)(2), a outra compreende a de natureza relativa (juris tantum)(3).

A corrente criada pela jurisprudência defensora da absoluta presunção de violência entende no sentido de não se poder considerar válido o consentimento da vítima menor de 14 anos na prática do ato sexual, ou seja, o seu querer é viciado pela incapacidade de consentir.

Esse entendimento tem encontrado justificação na explicação do legislador na Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal Brasileiro, item 70, a respeito do art. 224 e suas alíneas, o legislador penal de 1940 entendeu que: "O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, é a innocentia consillii do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento". Não obstante a isso, teve consciência de que a norma cede à realidade, e asseverou também que "uma pessoa de 14 (quatorze) anos completos já tem uma noção teórica bastante exata dos segredos da vida sexual, e do risco que corre se se presta à lascívia de outrem".
Seguindo este raciocínio, argumenta-se que as vítimas menores de 14 anos de idade não têm maturidade para compreender o relacionamento sexual entre os indivíduos, e portanto seriam incapazes de tomar decisões válidas no âmbito das suas relações sexuais.

Cabe esclarecer, todavia, que atualmente é pacífico o entendimento pela relatividade da presunção da violência da alínea a do art. 224, do Código Penal(4).

A construção da relatividade da presunção se baseia em duas hipóteses:

a) a errônea suposição do agente de se tratar de pessoa maior de 14 anos de idade;
b) e o comportamento desta em relação às coisas do sexo.

A primeira hipótese leva em conta que o agente acredita veementemente que está a praticar relações sexuais com mulher maior de 14 anos. A doutrina corrobora com a esta tese de que é relativa a presunção inscrita na letra a do art. 224 do Código Penal, podendo ser excluída pela suposição equivocada do agente de que a vítima tem idade superior a 14 anos, conforme leciona Magalhães Noronha:

"Se o agente está convicto, se crê sinceramente que a vítima é maior de 14 anos não ocorre a presunção. Não existe crime, porque age de boa-fé"(5).

Também Heleno Cláudio Fragoso, em "Lições de Direito Penal", afirma que a presunção não é absoluta, "pois o erro plenamente justificado sobre a idade da vítima exclui a aplicação de tal presunção"(6).

A segunda hipótese, admite a presunção da violência como de natureza relativa, nos casos em que a vítima tem conhecimento acerca dos atos sexuais e as circunstâncias que os envolvem.

O conhecimento acerca dos atos sexuais, bem como o comportamento promíscuo ou recatado da vítima, é que afastará ou não a incidência do mencionado dispositivo legal, isto é, se a vítima menor de 14 anos tem comportamento avançado a respeito da vida sexual, no sentido de conhecê-la bem, não haverá que se falar em presunção de violência. Além disso, também não se caracteriza o crime se a vítima já havia mantido relações sexuais com outros indivíduos, se é despudorada e sem moral, corrompida ou apresenta péssimo comportamento. De outra parte persiste o crime ainda quando a menor não é mais virgem, leviana, fácil e namoradeira ou apresenta liberdade de costumes(7).

O acolhimento majoritário da relatividade da presunção de violência deriva da modificação havida nos costumes, alterando em muito o comportamento social em todos os sentidos. A mídia divulgadora maciça de informações com acesso irrestrito não se abala diante a precocidade com que as crianças lidam atualmente, com desembaraço, assuntos referentes à sexualidade. Passados mais de 50 anos, indaga-se a necessidade de se repensar os costumes socioculturais.

Neste contexto, é oportuno trazer à baila o entendimento sustentado pelo ilustre ministro Marco Aurélio de Melo concedendo o HC nº 73.662/MG, para absolver o acusado em um especial caso concreto de violência presumida no crime de estupro, julgado pelo Supremo Tribunal Federal:

"Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam uma escala de valores bem definida, a ponto de vislumbrarem toda a sorte de conseqüências que lhes pode advir. Tal lucidez é de fato só virá com o tempo, ainda que o massacre do massificação da notícia imposto pela mídia que se pretende onisciente - e muitas vezes sabe-se irresponsável diante o papel social que lhe cumpre - leve à precipitação de acontecimentos que só são bem-vindos com o tempo, esse amigo velho da sabedoria. (...) De qualquer forma, o núcleo do tipo é o constrangimento e à medida em que a vítima deixou patenteado haver mantido relações sexuais espontaneamente, não se tem, mesmo a mercê da potencialização da idade, como concluir, na espécie, pela caracterização. A presunção não é absoluta, cedendo as peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes como reconhecido no depoimento e era de conhecimento público"(8).

Interessante se faz, com respaldo na decisão jurisprudencial supra mencionada, que em determinadas circunstâncias a vítima merece atenção especial quanto a prova, sob este contexto discorre o professor Edmundo Oliveira:

"O papel desempenhado pela vítima nos crimes sexuais tem merecido repetidos debates nos tribunais, especialmente no que concerne à matéria de prova para a identificação tanto do estereótipo de vitimas inocentes, agredidas pela violência irresistível física ou moral, como de ocorrências de que a pessoa, pela atitude esboçada, precipita a oportunidade de sua própria vitimização ao despertar o plexo imaginário do autor"(9).

Face à natureza do crime e à menoridade da vítima cumpre analisarmos sobretudo o prisma da ofendida, senão corremos o risco que a letra da lei impeça a fluência dos fatos. Neste novo prisma deixemos que os fatos rompam a presunção legal do 224, alínea a do Estatuto Penal, revestindo de maior valia o depoimento da vítima, pois é ele que trará à tona a razão que fundamentou o ato sexual, observamos a verossimilhança dos fatos, o comportamento da vítima, o conhecimento e experiência da menor em matéria de sexo e vida sexual, bem como a aparência física e mental na menor.

Em seguida, cabe a cada caso analisar qual é o grau de envolvimento da menor com seu parceiro, e deste com a menor, e se houve convergência de vontade dos parceiros inerente à prática sexual comum, livre de vício no consentido da menor a prática do ato sexual. Verificar se a menor compreendia as conseqüências dos seus atos, e se ela se relacionava espontaneamente com homens adultos. Neste ponto, destaca-se a evolução dos costumes, exigindo do Judiciário uma renovação dos seus conceitos e a consciência de que nos nossos dias não há crianças, mas moças que além de consentir, escolhem livremente seu parceiro, decidindo ambos praticar o ato sexual. Sendo que essa escolha decorre dos mais variados motivos, inclusive sentir-se atraída sexualmente por alguém.

Em derradeiro, o consentimento dos atos sexuais deve ser comprovado mormente pela própria vítima e não somente pelo réu, por via de conseqüência da mudança comportamental e de um novo conceito de liberdade. A presunção de violência está atrelada aos rigores de um Código ultrapassado, em descompasso com a atualidade, vestígio do tempo em que uma menor de 14 anos de idade jamais consentiria a prática sexual e, se houvesse consentimento, não teria valor algum. Mas hoje em dia, admite-se relatividade da presunção, cabendo ao réu a prova de que a menor tinha uma inteligência perspicaz e viva, sabia perfeitamente o que fazia e conhecia teoricamente todos os segredos da voluptuosidade. Inobstante isso, há de se considerar o consentimento da menor sustentado em seu próprio depoimento e bem como as demais provas levantadas por ela que corroborem para exclusão da presunção de violência, para que desta maneira ambos provem que houve a convergência de vontades, inerente ao ato sexual, expurgando qualquer vício.

Notas

(1) FRANCO, Alberto Silva. "Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial", 5ª ed. rev. amp., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, cit., p. 650.

(2) "Código Penal Brasileiro", vol. 6, p.71.

(3) Nesse sentido, NORONHA, "Direito Penal", vol. 3, pp. 296-309; HUNGRIA, "Comentários", vol. 8, pp. 230-232; e FRAGOSO, "Lições", P. E., vol. 3, p. 230.

(4) Nesse sentido, MIRABETE, "Manual de Direito Penal - Parte Especial", vol. 2, p. 472.

(5) NORONHA, E. Magalhães. "Direito Penal", 4ª ed., vol. 3, São Paulo: Saraiva, 1964, cit., p. 221.

(6) FRAGOSO, Heleno Cláudio. "Lições de Direito Penal", vol. 4, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, cit., p. 3.

(7) Nesse sentido, MIRABETE, "Manual de Direito Penal - Parte Especial", vol. 2, p. 472.

(8) Marco Aurélio de Melo, ministro do STF, maio de 1996, HC nº 73.662-9/MG.

(9) OLIVEIRA, Edmundo. "Vitimologia e Direito Penal: O Crime Precipitado pela Vítima", 2ª ed., rev. amp., Rio de Janeiro: Forense, 2001, cit., p. 130.

André Luís Callegaro Nunes Gomes
Acadêmico de Direito, 4º semestre da Universidade de Santa Maria (UFSM/RS).