INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 117 - Agosto / 2002





 

Coordenador chefe:

André Gustavo I. Fonseca

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela

Conselho Editorial

Editorial

A responsabilidade penal da pessoa jurídica sob o enfoque da autoria mediata e dos crimes comissivos por omissão

Ana Luiza Barbosa de Sá

Quartanista da Faculdade de Direito da Univ. do Estado do Rio de Janeiro.

Ao se argumentar pela total impossibilidade em criminalizar as pessoas jurídicas, não se deseja deixar impunes os crimes praticados em nome desta, mas apenas estabelecer o correto foco de aplicação da lei penal.

Com o advento da teoria do domínio do fato, no que concerne aos crimes dolosos, passou-se a considerar como autor todo aquele que possui o efetivo controle sobre a realização de uma atividade delituosa, ou, nas palavras de Welzel(1), "solamente aquel que mediante una conducción, consciente del fin, del acontecer causal en dirección al resultado típico, es señor sobre la realización del tipo", permitindo ao ordenamento jurídico dispor de um instrumento capaz de alcançar aqueles que, muitas vezes, não realizam sequer uma ação típica, mas que devem ser vistos como os verdadeiros autores do evento criminoso, qual seja, o instituto da autoria mediata.

Desta forma, também será considerado como autor de um delito todo aquele que se utilizar de outrem, que age sem dolo, como mero instrumento para perpetrar um crime, seja por tê-lo induzido em erro, por fazer uso de coação irresistível, de inimputáveis (o que realmente é contestado pela doutrina pois, na prática, não haveria possibilidade de domínio do fato sobre os atos de um inimputável)(2), ou até mesmo quando criar uma situação de justificação para o autor imediato.

Transportando esse conceito para a questão em análise, observa-se que, apesar das deliberações dentro de uma pessoa coletiva serem tomadas por determinação da maioria em uma Assembléia Geral, é o corpo diretivo quem detém o real domínio do fato sobre as atividades realizadas no seio da empresa, o que lhe confere o poder de estabelecer quando e de que modo será realizada determinada conduta, permitindo-lhe interrompê-la de acordo com sua conveniência. Cabe a este órgão, portanto, proceder a uma correta gestão empresarial, atuando dentro dos limites traçados pelo ordenamento jurídico sob pena de ser considerado autor mediato pela realização de uma conduta delituosa por ele ordenada aos empregados da pessoa jurídica.

Quanto ao empregado, agente direto, pode ter sua responsabilidade pelo fato excluída se forem constatados, por exemplo, a incidência de erro de tipo ou de proibição inevitáveis, alguma causa de justificação, ou, até mesmo, hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, tendo em vista a situação de hierarquia facilmente perceptível dentro de uma empresa.

Esta também é, aliás, a solução encontrada para punir aqueles que fazem parte do centro do poder no chamado crime organizado, onde a estrutura hierárquica das organizações criminosas, que se utilizam de terceiros culpáveis para realizar delitos, constitui-se em óbice para alcançar os reais idealizadores do fato criminoso, pois estes, muitas vezes, não praticam condutas típicas. Neste sentido, é de grande valia a teoria do domínio da organização, de Claus Roxin(3), que, tendo como base o domínio do fato, promove um alargamento da autoria mediata, permitindo responsabilizar criminalmente tanto o autor efetivo do delito quanto o que determinou o seu cumprimento, dentro de uma estrita relação de subordinação por parte do agente imediato, mas somente naqueles atos que se encontram implícitos na atividade criminosa.

Ademais, cabe ressalvar que a utilização da autoria mediata no âmbito da empresa não importa na atribuição desmedida de crimes aos seus órgãos controladores, apenas por terem sido cometidos por algum dos empregados da pessoa jurídica. A infração deve decorrer do exercício das atividades cotidianas da empresa, passíveis de controle pelo corpo diretivo, sob pena de se admitir uma responsabilização penal objetiva, completamente em desacordo com nosso Direito Penal da culpabilidade.

Mas, como proceder à punição dos superiores hierárquicos naquelas hipóteses em que o autor imediato também possa ser configurado como responsável pelo evento criminoso, mesmo que com culpabilidade diminuída?

Não se poderia defender a utilização da autoria mediata, pois o controlador não teria total domínio do fato, uma vez que o terceiro perderia sua característica de mero instrumento, fazendo com que todo e qualquer excesso que realizasse por iniciativa própria não pudesse ser atribuído exclusivamente aos administradores(4).

Por outro lado, também não se aplicaria a mesma idéia proposta por Roxin (teoria do domínio da organização) para a responsabilização dos autores diretos, por não se tratar de entidade criada para a realização de fins exclusivamente criminosos, isto é, os empregados da pessoa jurídica não se encontram já predispostos à prática de eventos criminosos. Ao mesmo tempo, não seria de todo correta a solução adotada pela dogmática tradicional, caracterizando um concurso de pessoas, onde o "homem de trás" acabaria por receber uma punição como co-autor ou um simples partícipe (instigação).

Isto porque, dentro de uma empresa, a relação hierárquica impede o estabelecimento de uma decisão conjunta entre o órgão de controle e o empregado, o que exclui a co-autoria. Ao mesmo tempo, o administrador concede apenas as diretrizes de como realizar a atividade, mas sem participar efetivamente do ato, já que confia que o demandado irá cumprir com suas determinações. Da mesma forma, não há de se falar em mera instigação, pois a conduta do administrador se sobrepõe em muito a esta modalidade de participação, além de não haver o contato direto entre ele e o subordinado.

Assim, de acordo com Jesús-María Silva Sánchez(5), poder-se-ia argumentar pela existência de um crime comissivo por omissão, caracterizando-se o corpo diretivo como agente garantidor, com o dever de impedir a ocorrência de fatos delituosos no âmbito da empresa: "podrá estimarse que cometem el correspondiente delito por omisión los referidos hombres de trás, superiores jerárquicos, que no impidem que éste se produzca, cuando ello sucede en el ámbito de su competencia y podían y debían, siempre según los términos del compromiso adquirido de controlar los correspondientes factores de riesgo, evitar su producción".

Mas quais seriam os critérios para se definir quando o indivíduo poderá ser considerado garantidor no caso concreto? No que concerne ao tema em questão, de forma a evitar a atribuição arbitrária de delitos aos administradores da empresa, estes só serão considerados agentes garantidores para conter riscos determinados, face a bens jurídicos determinados, de acordo com suas atribuições dentro da pessoa jurídica. Assim, são estas atribuições que irão determinar os riscos concretos que lhes cabe controlar(6).

Ressalte-se que tal instituto deve ser aplicado com a máxima prudência, excluindo-se, por óbvio, os casos em que um empregado realizasse um fato que não decorresse da atuação normal da pessoa jurídica, pois "El no evitar el resultado típico es típico en el sentido de un delito de omisión impróprio sólo para determinadas personas con poder del hecho, que de antemano estén en una relación estrecha respecto al bien jurídico"(7).

Assim sendo, o fato danoso só poderá ser atribuído àqueles que possuam algum poder de decisão dentro da pessoa moral, com capacidade para fiscalizar e interceder na atuação dos empregados, quando estes agirem no âmbito da empresa. Ao mesmo tempo, o resultado a que a omissão do administrador deu causa deve ser ao menos previsível, tomando-se como base suas responsabilidades, através de uma análise de previsibilidade tanto subjetiva quanto objetiva.

Desta forma, não se apresenta possível atribuir ao órgão de controle um fato imprevisível, que afastaria a relação de causalidade da conduta anterior. Apesar de nosso Direito adotar a teoria da equivalência dos antecedentes, que não distingue entre causa e condição para a prática do crime, deve-se proceder a uma rígida verificação de quais os deveres que se impõe a um órgão de controle dentro de uma pessoa coletiva, o que pode variar dependendo das atividades a que a empresa se propõe, para não se chegar ao absurdo de se adotar algo tão odioso para o nosso ordenamento jurídico quanto a responsabilidade penal objetiva.

Por fim, é preciso que se tenha em mente que o Direito Penal é um instrumento por demais poderoso, devendo sua utilização obedecer sempre e a ultima ratio, devido às conseqüências danosas que podem advir do seu uso arbitrário. Desta forma, a legislação penal somente deve ser utilizada para sancionar aquelas condutas mais graves, constituindo-se no único meio capaz de regular as relações em sociedade, onde todos os demais ramos do Direito falharem na proteção a bens jurídicos relevantes.

E obviamente não é este o caso quando se fala em punir penalmente as pessoas jurídicas. O uso de meios administrativos atende perfeitamente à necessidade de sancionar estas pessoas, sem que se precise movimentar todo um aparato criminal neste sentido. Nota-se, portanto, que a configuração de uma responsabilidade penal às pessoas coletivas tem o único objetivo de atingir finalidades meramente políticas e demagógicas, de forma a diminuir o sentimento de impunidade que vigora no meio social.

Neste contexto, adequa-se perfeitamente a idéia de um "Direito Penal de inimigos", proposta por Jakobs ao estabelecer um sistema de imputação exclusivamente normativo. Porém, como observa Muñoz Conde(8), apesar de uma sociedade preocupada com o estabelecimento de maior segurança apresentar uma tendência a fazer uso do Direito Penal menos atento aos princípios limitadores ao poder punitivo do Estado, "muchos de estos princípios son vinculantes por imperativo constitucional y tienem que ser también asumidos en el plano teórico-sistémico por la dogmática jurídicopenal, salvo que también se quiera poner a esa dogmática por encima de los princípios políticocriminales característicos del Estado de Derecho".

Outrossim, como observa Hassemer(9), a colocação em vigor de um excessivo leque de normas penais não permite que haja um desenvolvimento proporcional dos sistemas de execução destas leis, gerando um Direito meramente simbólico, "dado que no se pueden esperar los efectos reales y afirmados, el legislador por lo menos obtiene el rédito político de haber respondido com celeridad a los miedos y grandes perturbaciones sociales con los severos médios del Derecho Penal".

A dita criminalidade moderna, decorrente da globalização, não pode ser combatida mediante a criação de figuras dogmaticamente insustentáveis, quando já existem institutos aplicáveis, como o da autoria mediata e dos crimes comissivos por omissão, que suprem a necessidade de punição dos atos realizados em nome das pessoas coletivas. Não se duvida que a sociedade é complexa e que se encontra em constante evolução, devendo o Direito como um todo estar atento a estas mudanças. Entretanto, não se pode admitir a utilização de meios que conflitam claramente com a base do Direito Penal, em prol do oferecimento de maior sensação de segurança.

Notas

(1) WELZEL, Hans. "Derecho Penal Alemán - Parte General", 2ª ed., Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 143.

(2) Por todos: ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. "Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral", 3ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 671.

(3) ROXIN, Claus. "Las Formas de Intervención en el Delito: Estado de La Cuestión", in "Sobre el Estado de la Teoría del Delito (Seminario en la Universitat Pompeu Fabra)", Madrid: Civitas Ediciones, 2000, p. 161.

(4) SANTOS, Juarez Cirino dos. "A Moderna Teoria do Fato Punível", Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos Editora, 2000, pp. 281 e segs.

(5) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. "Responsabilidad Penal de las Empresas e sus Organos en Derecho Español", in "Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica: Em Defesa do Princípio da Imputação Subjetiva", coordenador Luiz Regis Prado, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 25.

(6) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Op. cit., p. 26.

(7) WELZEL, Hans. Op. cit., p. 287.

(8) CONDE, Francisco Muñoz. "Edmund Mezger y el Derecho Penal de sua Tiempo. Los Origenes de la Polémica entre Causalismo e Finalismo", in "Estudos em Homenagem ao Prof. João Marcello de Araujo Junior", Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Juris, 2001, p. 257.

(9) HASSEMER, Winfried. "Critica al Derecho Penal de Hoy", Coleção: Cuardernos de Conferencias y Articulos, 1998, p. 56.

Ana Luiza Barbosa de Sá

Quartanista da Faculdade de Direito da Univ. do Estado do Rio de Janeiro.



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