André Gustavo I. Fonseca
Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela
No sistema processual brasileiro, a primeira atividade da persecução penal é exercida pelas Polícias Civis Estaduais. Cabe à Polícia Civil investigar crimes, apontar a autoria, realizar perícias, prender em flagrante, proceder a inquérito policial, lavrar ocorrências e termos circunstanciados, enfim, realizar uma série de atos ordenados que servirão de base para o processo penal. As palavras do festejado mestre Pimenta Bueno, no início de século, descrevem com muita exatidão essas funções exercidas pela Polícia Civil: Sempre vigilante, ela indaga de todos os fatos suspeitos, recebe os avisos, as notícias, forma os corpos de delitos para comprovar a existência dos atos criminosos, seqüestra os instrumentos dos crimes, colige todos os indícios e provas que pode conseguir, rastreia os delinqüentes, captura-os nos termos da lei e entrega-os à justiça criminal, juntamente com a investigação feita, para que a justiça examine e julgue maduramente (citado por Tourinho Filho in Processo Penal, 22ª ed., vol. I, São Paulo: Editora Saraiva, 2000, pp. 195/196).
Diz o art. 144, §4.º, da Constituição Federal que às Polícias Civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Portanto, é do próprio texto constitucional que extraímos as funções da Polícia Civil. Como diz Mirabete, não há realmente diferença entre essas funções, de apuração de infrações penais e de Polícia Judiciária, mas, diante da distinção estabelecida na norma constitucional pode-se reservar a denominação de Polícia Judiciária, no sentido estrito, à atividade realizada por requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público ou direcionada ao Judiciário (Processo Penal, 5ª ed., São Paulo: Editora Atlas, 1996, p. 76). No mecanismo do CPP, no art. 4º, fica evidente que essa função constitucional da Polícia Civil se consubstancia principalmente através do inquérito policial.
Poderíamos definir inquérito policial como o procedimento administrativo elaborado pela Polícia Civil com o objetivo de esclarecer as infrações penais e apurar a sua autoria. Visa colher elementos mínimos que permitam ao Ministério Público oferecer a denúncia ou ao particular ingressar com a queixa-crime. O inquérito policial vem sendo atacado desde 1941 quando o ilustre Francisco Campos, na época ministro da Justiça e Negócios Interiores, justificou sua permanência no sistema processual brasileiro na exposição de motivos do Código de Processo Penal. Desde então, as críticas vêm aumentando e não faltam defensores de sua abolição. Ocorre que o inquérito policial é uma verdadeira tradição em nosso sistema e deve permanecer. O fracasso dos juizados de instrução na Europa deram novo fôlego ao caderno inquisitório do modelo brasileiro. O saudoso José Frederico Marques já defendia sua permanência e importância: Não têm faltado doutrinadores apressados que proclamam a prescindibilidade da investigação policial no procedimento penal, e que preconizam a supressão dessas investigações e sua substituição por uma instrução judicial prévia e ampla. Deixam de enxergar, os pregoeiros de tão falsa terapêutica, os danos que irão advir dessa solução simplista e sem fundamento, não só para a persecutio criminis, como ainda para a própria tutela do direito de defesa (A Polícia Judiciária, conferência proferida no encerramento das comemorações do Dia da Polícia, em 21 de abril de 1958, in Estudos de Direito Processual Penal, Campinas: Editora Millenium, 2001, p. 55).
Ocorre que o inquérito policial, como desdobramento principal das funções constitucionais da Polícia Civil, vêm sendo cada vez mais desacreditado devido a uma série de erros e fracassos cometidos ao longo das décadas. O Poder Executivo, por motivos obscuros, acabou por empurrar uma série de apêndices à Polícia Civil de maneira ilegítima e inconstitucional. Isso se deve, em parte, como diz Airton José Stang, ao fato de que a Polícia muito pouco tem sido estudada quer pelas universidades, quer pelos governos que a mantêm (Inquérito Policial: Atualidade e Perspectivas, 1ª ed., São Miguel do Oeste: Editora e Gráfica Arco Íris, 2000, p. 10). Note-se que devemos sempre examinar os institutos jurídicos sob o prisma constitucional. E de acordo com o que vimos, a Polícia Civil possui apenas duas funções constitucionalmente previstas: exercer as funções de Polícia Judiciária e a apuração das infrações penais. Nesse sentido, a doutrina de Tourinho Filho ensina que: a Polícia Civil tem, assim, por finalidade investigar as infrações penais e apurar a respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos para ingressar em juízo (Ob. cit., p. 195). Assim, parece claro que, com o advento da nova ordem constitucional surgida em 1988, não há razão em se atribuir outras funções à Polícia Civil fora as já citadas. Logra em desvio de função e ilegalidade, portanto, a intervenção da Polícia Civil em qualquer evento onde não haja indício de infração penal.
Apesar da expressa previsão constitucional e das disposições do CPP a respeito do tema, como dissemos, uma série de outras funções foram sobrepostas à Polícia Civil, dificultando seu trabalho e prejudicando a persecutio criminis estatal. Esquece-se o Poder Executivo da razão de ser da polícia e tenta subvertê-la a seus próprios propósitos. Por exemplo, como explica Letícia Franco de Araújo, registram nas delegacias as chamadas Declarações, que abrangem as ocorrências relativas à perda de documentos, cheques, cartões de banco etc. (Desvios de Função e Ilegalidades das Polícias, in Boletim IBCCRIM nº 102, maio/2000, p. 9). Não há embasamento legal para tais registros. Tais declarações deveriam ser prestadas, obrigatoriamente, pelos órgãos emissores da segunda via do documento extraviado e não à polícia. Também não é função constitucional da Polícia Civil o atendimento a acidentes de trânsito sem vítimas onde não haja indício de direção perigosa ou embriaguez ao volante. O cadastramento de veículos, através dos órgãos de trânsito, seguindo a tendência moderna de descentralização administrativa, deveria ficar sob regime autárquico e, de acordo com a Constituição Federal, ser retirada da estrutura das Polícias Civis Estaduais. Em Santa Catarina, por exemplo, o Detran ainda se mantém como uma diretoria interna da Delegacia-Geral de Polícia.
A Polícia Civil padece de um mal grave. Não consegue cumprir sequer sua função constitucional. Nesse quadro, surgiram os aproveitadores de plantão pregando a abolição do inquérito policial, o controle da investigação policial pelo Ministério Público, ou a criação de juizados de instrução. Mas lembremos novamente Frederico Marques quando disse que por mais que a demagogia forense a queira denegrir, o certo é que ficariam frustradas as funções repressivas na luta contra o crime, se não fosse a ação policial que se desenvolve imediatamente após a notitia criminis (Ob. cit., p. 55). E conclui o festejado mestre que a manutenção do inquérito policial é o melhor sistema para o modelo brasileiro, opinando ainda que o exemplo da polícia norte-americana dirigida pelo Ministério Público não nos parece também muito convincente (Ob. cit., p. 75).
Se a Polícia Civil não consegue cumprir sua função constitucional é por falta de uma estrutura adequada e de recursos necessários que impedem uma atuação mais eficiente. Como diz Letícia Franco de Araújo, não se pode sobrecarregar de forma tão escandalosa uma instituição e ainda fazer sobre ela recair a responsabilidade que tantas outras devem com ela dividir. Façamos com que a Polícia se dedique à prevenção e repressão ao crime, que são sua atribuição constitucional e que ela pode realizar com grande eficiência (Ob. cit.). O consagrado constitucionalista José Afonso da Silva também aponta para essa questão dizendo que é preciso adequar a polícia às condições e exigências de uma sociedade democrática, aperfeiçoando a formação profissional e orientando-a para a obediência aos preceitos legais de respeito aos direitos do cidadão (Curso de Direito Constitucional Positivo, 18ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 757). É preciso pensar, antes de mais nada, em dar condições e meios adequados para que a Polícia Civil cumpra de modo satisfatório sua função primordial. Quanto ao resto, que outros órgãos assumam seus papéis institucionais. E como disse Frederico Marques, certo é que precisamos ainda de remodelações estruturais nesse organismo tão vasto e complexo, para que melhor atenda às necessidades da ordem pública (Ob. cit., pp. 59/60).
Átila Da Rold Roesler
Comissário de Polícia do Estado de Santa Catarina e bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada (URI-RS).
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