INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 113 - Abril / 2002





 

Coordenador chefe:

Janaina C. Paschoal

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela

Conselho Editorial

Editorial

A ausência de dolo no crime de apropriação indébita impõe o trancamento da ação penal

Figueiredo Gonçalves

Relator

<b>HC nº 395.402-0/SP

Tribunal de Alçada Criminal - 4ª Câmara</b>

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº 395.402/0 (Ação Penal nº 478/00), da 2ª Vara Criminal da Comarca de Pirassununga, em que são impetrantes e pacientes D.C.R. e M.L.R.B.R.

Acordam, em 4ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal, por maioria de votos, conceder a ordem para determinar o trancamento da ação penal.

Em favor próprio, os impetrantes ajuizaram este pedido de habeas corpus, aduzindo constrangimento ilegal por parte do MM. Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal, da Comarca de Pirassununga, porque pelo exame das provas colhidas no decorrer do inquérito policial, a denúncia oferecida não poderia ter sido recebida, estando, pois, indevidamente processados como incursos na sanção prevista no artigo 168, § 1º, inciso III, combinado com o artigo 29, <i>caput</i>, ambos do Código Penal. Pedem, liminarmente, a concessão da ordem, reconhecido o constrangimento ilegal, trancando-se a ação.

Prestou informações o digno Juízo impetrado relatando o andamento do processo (fls. 77/78) e remetendo cópias das primeiras peças dos autos (fls. 79/95).

Indeferida a liminar, pela egrégia vice-presidência (fls. 74), manifestou-se a douta Procuradoria Geral de Justiça pela denegação da ordem (fls. 97/104).

É o relatório.

Sempre que se pretende o trancamento de ação penal, sob o argumento de falta de justa causa para a denúncia, dois obstáculos são antepostos, de pronto, ao deferimento pedido:

- primeiro, o impedimento de se atender a pretensão, quando houver indícios de autoria e da materialidade delitiva;

- segundo, que o procedimento restrito do habeas corpus impede o exame aprofundado das provas, que deve ser feito, apenas, na ação proposta.

Cumpre ressaltar, para tanto, que a conduta, em tais hipóteses, deve ser inequivocamente ilícita, sendo certa a ocorrência de um crime. Assim, havendo indicativos seguros de que os denunciados possam ser os autores, é de se admitir a ação penal, levando para o âmbito da instrução do processo a discussão acerca das provas eventualmente reunidas. Contudo, quando o que se discute é exatamente a natureza da ação denunciada, se constitui ou não delito, não se pode fugir ao debate prévio da questão, pena de se fazer vista grossa a um dos requisitos para a constituição do processo: o justo motivo embasador da denúncia.

Para submeter-se alguém aos transtornos inevitáveis de uma ação penal, necessário o convencimento acerca da ocorrência de um crime. A dúvida deve ser superada, mesmo de modo precário como é próprio dessa fase, com os indícios reunidos na investigação anterior e se o inquérito não demonstrar a ocorrência do fato que se afigura delituoso, não se pode admitir a imputação feita ao acusado. Ressalve-se, apenas - quando aparentemente típico o fato imputado - as dúvidas advindas de excludentes de ilicitude ou culpabilidade, se não suficientemente demonstradas pelo agente que as reclama e esses últimas, quando possível a aplicação de medida de segurança. Fora dessas situações, quando incerta natureza delitiva da ação, não é possível o processo-crime, até que a insegurança se desfaça.

É o que ocorre nestes autos.

Dois advogados, constituídos como mandatários de diversos autores de ação cível, foram denunciados por apropriação indébita do dinheiro recebido, em face de pagamento devido a um dos clientes, como resultado de acordo em nome dos constituintes. Defendem-se sob a alegação de que, morto o autor, havia dúvida sobre a quem deveria ser entregue a quantia, o que resultou no retardamento dessa providência, somente tornada possível após diversas diligências e, finalmente, o ajuizamento de ação consignatória, perante o juízo cível. Por isso, não teriam agido dolosamente, inocorrendo o crime.

Saliente-se que a apropriação indébita, pressupondo posse lícita anterior da coisa, somente ocorre no instante em que o agente inverte o título da conduta, deixando de ter o objeto em nome do possuidor indireto, passando dele dispor como próprio. Isso caracteriza o dolo - elementar desse crime que não admite ação culposa - contudo, esse elemento subjetivo do injusto, somente pode ser verificado por atos externos do agente, indicativos da consciência e vontade de agir com tal finalidade.

A demonstração do dolo é ônus de quem o imputa e, portanto, não se pode admitir denúncia se o inquérito, ou os documentos que o substituem, não são seguros para formação desse convencimento, ainda que precário como é próprio dessa fase, nas situações em que não há previsão para crime culposo. Nessa hipótese, inadmissível denunciar-se primeiro, para verificar a ocorrência de dolo posteriormente.

Portanto, negada a natureza dolosa da conduta, impõe-se o exame dos indícios de prova reunidos até a denúncia, para definição da validade desta, sem o que a ação penal não pode prosperar. Nesse sentido, antes de recebê-la, induvidosa a obrigação de o julgador definir se há, ou não, fundamentos seguros para a imputação do crime, se há indicativos seguros de ação dolosa dos agentes, em face de delito que somente se realiza com essa elementar.

Retornando aos fatos imputados no processo, é certo que os advogados receberam o pagamento na ação proposta contra o INSS, porque tinham poderes para fazê-lo, outorgados pelo cliente. Conquanto a denúncia alegue que o levantamento ocorrera posteriormente à morte do constituinte, isso, por si somente, não configura a apropriação indébita, na medida em que o dinheiro fosse colocado à disposição dos sucessores do de cujus.

Depois do recebimento da quantia depositada, os advogados foram procurados, em 8 de maio de 2000, por filhos da companheira do extinto cliente, sob a alegação de que a mãe, M.D.B.G., falecida logo depois daquele, teria sido a única beneficiária do de cujus perante a Previdência Social, pelo que somente ela deveria ter recebido o dinheiro e, com sua morte, que esse passara a seus sucessores. Nesse sentido os documentos de fls. 39/40 e 41/42, onde os herdeiros de M.D. postularam o pagamento perante os ora pacientes.

A partir daí, os advogados passaram a investigar, no sentido de verificarem se não haveriam outros interessados no pagamento. Peticionaram logo depois ao juízo da ação cível, pedindo providências junto ao INSS, para identificar os dependentes de S.J.G.F. (fls. 44/45) e, em seguida, não obtendo providências do juízo, dirigiram requerimento diretamente ao INSS, nesse sentido, datado de 17 de novembro de 2000 (fls. 54). A resposta somente sobreveio em 15 de dezembro daquele ano, apontando M.D. como única beneficiária inscrita pelo segurado (fls. 58).

Contudo, posto que S.G. deixara herdeiros outros, os advogados alegam que pediram que fosse apresentado alvará judicial autorizando o pagamento e, nesse ínterim, comunicaram a posse do numerário à subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, em 5 de fevereiro de 2001, noticiando que aguardavam os interessados comprovarem a legitimidade para o recebimento (fls. 60).

Porém, em 25 de maio daquele ano, foi recebida a denúncia pelo delito de apropriação indébita, citando-se os denunciados em 15 de junho daquele ano, o que os levou a consignarem o pagamento em juízo, logo depois, contra os herdeiros de S.G., estes em número de quatro pessoas e os sucessores de M.D., estes em número de cinco. Na oportunidade foram depositados valores acrescidos de juros legais.

Não se pode vislumbrar, em toda essa sucessão de fatos, a intenção dolosa dos advogados em se apropriar do dinheiro que não lhes pertencia.

É certo, foi objeto de contrato com o então constituinte, honorários que correspondiam a 50% do valor recebido no processo e mais 20% das parcelas seguintes depositadas, até a liquidação da sentença (fls. 21). Porém, o que se discute não são os aspectos éticos dessa avença, ademais aceita pelos sucessores de M.D., nos documentos de fls. 39/42. Embora a denúncia afirme que os herdeiros se recusavam ao pagamento desses honorários tidos como abusivos, essa questão deveria ser dirimida - acaso posta pelos interessados - perante o juízo competente, onde discutiriam a validade do contrato de honorários firmados pelo segurado. Assim, somente com relação à outra metade, poder-se-ia cogitar de eventual apropriação indébita, houvesse recusa em pagá-la.

Entretanto, somente pelo fato de que existissem presuntivos sucessores diversos, descendentes diretos do segurado e filhos de sua beneficiária-companheira, isso justificava a cautela no pagamento e a exigência da autorização judicial para fazê-lo. Agindo nesse sentido e sempre deixando claro que a parte cabente aos sucessores do segurado estava disponível para esses, não se pode vislumbrar indícios de dolo na conduta dos advogados.

Não demonstrado o dolo, não há de se cogitar sobre crime de apropriação indébita e, portanto, a denúncia não deveria ter sido recebida, por faltar-lhe justa causa. A ação penal nada acrescentará aos fatos apurados até o seu início e esses não permitem o convencimento de que, os ora pacientes, tivessem agido com a intenção abusiva de se apropriar daquilo que, indiscutivelmente, não lhes pertencia.

Não é justo, assim, submeter-se os advogados ao inútil e desgastante prosseguimento de uma ação penal que, desde o começo, se afigurava como inviável. Transformar em réus pessoas sobre as quais sequer há indícios de conduta dolosa, por delito que somente admite esse elemento subjetivo da ação, configura-se em constrangimento ilegal, intolerável no sistema processual, no Estado Democrático de Direito.

Portanto, é de ser deferida a ordem, paralisando-se o prosseguimento do processo.

Ante tais motivos, concedem a ordem para determinar o trancamento da ação penal.

Presidiu o julgamento o juiz Péricles Piza, com a participação dos juízes Devienne Ferraz, com voto vencedor e João Morengh, relator sorteado, vencido, que a denegava.

São Paulo, 27 de novembro de 2001.

<i>Figueiredo Gonçalves</i>
<br>Relator



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