INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 108 - Novembro / 2001





 

Coordenador chefe:

Janaina C. Paschoal

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela

Conselho Editorial

Editorial

Algumas críticas ao conceito de incremento de risco

Rodrigo de Souza Costa

Quintanista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal.

A tensão existente entre Poder Punitivo e Ciência Penal perpassou toda a história jurídico-penal, tendendo a eternizar-se, sendo certo que, modernamente, "a questão do que incriminar está condicionada pelo sentido da necessidade de assegurar este exercício de liberdade, primeiramente, com vistas ao próprio Estado, mediante a restrição de seu poder, e, depois, em relação aos sujeitos individuais".(1) O Direito Penal deve, portanto, ser compreendido como o preciso limitador da intervenção estatal nas liberdades individuais, sendo este o único entendimento capaz de conceder aos cidadãos a categoria de sujeitos de direitos.

E a busca pela correta atribuição da responsabilidade penal reflete, das mais diversas maneiras, a tendência limitadora ao poder punitivo estatal, mormente através daquela que é a mais sensível e representativa faceta da Ciência Penal, qual seja, a teoria do delito. Pretende-se ressaltar, mais precisamente, a inserção da imputação objetiva dentro de referida esquematização, possível apenas a partir da distinção entre injusto e culpabilidade operada no século XIX.(2)

Percebe-se que, desde suas mais longínquas investiduras, as chamadas teorias de imputação objetiva, hoje tão em moda em nosso linguajar dogmático, situam-se nesse contexto, observando-se que a tentativa formulada por ditas teorias da atribuição objetiva do resultado foi a de limitar o alcance do tipo objetivo,(3) restando inegável a tendência de privilegiar a contenção do aparelho punitivo do Estado.

Isso nota-se, por exemplo, nas formulações acerca da causalidade, considerada historicamente como o primeiro critério de imputação objetiva,(4) visto que elaborada como pressuposto minimamente capaz de poder estancar absurdos como a responsabilização pelo crime de adultério do carpinteiro que construiu a cama. Desde então muito se avançou, havendo até mesmo quem considere a teoria do delito, na verdade, como teoria da imputação, permanecendo-se, entretanto, com algumas lacunas.

Inicialmente, cabe ressaltar que "a atribuição do tipo objetivo consiste na atribuição do resultado de lesão do bem jurídico ao autor, como obra dele".(5) Ocorre que, considerando-se já o pós-finalismo, observa-se que dois caminhos muito distintos foram traçados: o da teoria do puro desvalor da ação e o do funcionalismo sistêmico. A primeira, sobrevalorizando o tipo subjetivo, realizou uma exacerbação eticizante do sistema finalista, ao atribuir a responsabilidade penal meramente pela realização de ações volitivas, ignorando-se até mesmo a consubstanciação das intenções nos resultados, não diferenciando, por exemplo, a resposta penal cabível ao crime tentado daquela atribuível ao consumado, redundando em um verdadeiro moralismo penal.(6) De outro viés, levando em consideração a advertência formulada por Welzel(7) acerca de ser o tipo objetivo o núcleo real material de todo o delito, as modernas teorias da imputação objetiva, especialmente as defendidas por Jakobs e Roxin, são entendidas como oriundas do funcionalismo sistêmico que, desenvolvendo cada um a seu modo, tentam atingir um conceito puramente objetivo, no intento de cumprir a mesma função imputativa para todos os matizes típicos, não devendo ser olvidado seu caráter precipuamente normativista (ao construir um sistema de imputação sobre a ficção de uma norma imperativa).(8)

Tratando especificamente do conceito de incremento ou criação do risco juridicamente proibido utilizado por Roxin serão vislumbrados alguns questionamentos que se fazem necessários, em que pese o deslumbramento de parte de nossa doutrina.

Roxin(9) institui como regra básica que "un resultado causado por el agente sólo se puede imputar al tipo objetivo si la conducta del autor ha creado un peligro para el bien jurídico no cubierto por un riesgo permitido y esse peligro también se há realizado en el resultado concreto".

Inicialmente observa-se que tal conceito, o incremento de risco ao bem jurídico, parece poder funcionar muito bem com relação aos crimes culposos até porque reconhece-se a junção entre a criação do risco desaprovado e a chamada infração ao dever de cuidado, elemento presente na tipicidade da tradicional dogmática acerca dos delitos imprudentes. Frisch(10) chega a afirmar que "la presencia de la creación del peligro desaprobado se pressupone en la infración del deber de cuidado".(11)

Ocorre que, ao contrário do que se possa imaginar, não há em toda a teoria da imputação objetiva uma explicação ao conceito de risco havendo, ao contrário, um equívoco ao tomar como equivalentes expressões como risco e perigo. Tais conceitos são concebidos através de uma análise apriorística, remetendo ao futuro a relevância ou não da lesividade penal.(12)

Giddens(13) alerta que, em sociologia, os conceitos de risco e perigo são bastante próximos, mas não sinônimos. A noção de risco, relativamente recente, presume a de perigo, não necessariamente a consciência deste.(14) O autor conceitua perigo como ameaça aos resultados desejados(15) enquanto considera-se o risco, como estimativa realizada acerca do perigo.(16) A variação do perigo envolvido em determinado evento implica no aumento ou diminuição do risco. Com isso tem-se que o perigo é que constitui o caracter objetivável quando especula-se acerca do aumento da probabilidade de perecimento de determinado bem jurídico. Assim sendo, seria uma incongruência afirmar-se que haveria aumento de riscos, isto porque apenas poderia suceder aumento de perigo.(17)

Como o próprio conceito de risco já é carecedor de definição dentro das modernas teorias da imputação, considere-se então que quando se fala de incremento de risco está se tratando do que Frisch(18) tentou definir da seguinte forma: "La creación de un riesgo desaprobado reside en la lesión de una norma contra determinadas creaciones de riesgos".

Ainda assim persistem os problemas. Como ressalta Zaffaroni(19) "no hay duda que cualquier conducta intencional, es decir orientada a un resultado, implica un riesgo, lo mismo que el comportamiento criminal en relación com las eventuales víctimas e incluso para el proprio imputado".

Mas, desde já observa-se que tal conceito é resultado de uma formulação valorativa ex-ante, similar à fórmula da tentativa, pecando pela incoerência de ignorar-se que não existe a tentativa no vazio, isto porque os cursos causais apenas são valorados quando "frustrados, abandonados o cuando son dialeticamente negados por la consumación del proyecto final".(20) A incoerência acontece, portanto, justamente por analisar-se a existência ou não de uma atitude meramente perigosa, mesmo quando já consumado o resultado de lesão ao bem jurídico, subvertendo-se a lógica.

Também deve ser ressaltado que quem deseja finalística e diretamente determinado resultado não introduz nem tampouco aumenta qualquer risco. Isto demonstra e ressalta a opção, própria da teoria, pelo abandono das estruturas lógico reais, por um retorno ao idealismo, através do normativismo, já que, em toda e qualquer conduta dolosa, seja em um homicídio, num roubo ou em um estupro, não se aumenta o risco de perecimento dos bens jurídicos mas sim concretiza-se o seu resultado de lesão.

Não bastasse isso, a mais temerosa ameaça representada pelo conceito de incremento do risco é a possibilidade de ampliação do Poder Punitivo Estatal. Isto porque ocorre uma exacerbação do âmbito de incidência que passa a ter a norma ao comandar não mais o não matar, mas sim o não aumentar o risco de morte,(21) acarretando num açambarcamento de situações sensivelmente mais amplas. E toda e qualquer ampliação de tal poderio estatal deve ser encarada com reservas porque não há necessidade de garantir-se ao sujeito legitimidade ao exercício de suas liberdades, sendo irrelevante o estabelecimento de qualquer relação jurídica privada entre Estado e sujeito que tenha tal propósito. Ao contrário, o que carece de profunda legitimação é o poder punitivo estatal,(22) o que de forma alguma pode ser feito com a simples reserva do Estado para si do poder punitivo interveniente.

Ressalte-se que não se pretende desacreditar em sua totalidade das teorias da imputação objetiva do resultado, nem tampouco destratá-la, considerando-se importante sua contribuição na tentativa de dar contornos minimamente objetiváveis(23) à chamada infração de dever de cuidado presente na tipicidade dos delitos culposos. Põe-se em dúvida sua eficácia ao tentar unificar os critérios de imputação, especialmente no que tange à tipologia do crime doloso, frisando-se que tal assertiva dista-se de qualquer posicionamento tendente ao amor ou ao ódio por dita teoria, simplesmente por entender-se que tais colocações seriam incompatíveis com a seriedade necessária a uma análise científica, que deve estar avessa às sombrias interferências proporcionadas por ações movidas pela paixão.(24)

O próprio Frisch(25) reconhece que a teoria da imputação objetiva vem sendo reconhecida pela jurisprudência germânica no âmbito dos delitos imprudentes enquanto rechaçada no que pertine aos delitos dolosos.

Outrossim, o filtro proporcionado pela estrutura do dolo e os critérios de autoria, especialmente no que se refere à dominabilidade do fato, afiguram-se como mais adequados e seguros para a atribuição do resultado quando se trata do delito comissivo doloso.

(1) TAVAREZ, Juarez. "Teoria do Injusto Penal", Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 241.

(2) ZAFFARONI, Eugênio Raúl. "Panorama de los Esfuerzos Teóricos para Establecer Criterios de Imputación Objetiva", in "Estudos em Homenagem ao Prof. João Marcello de Araujo Junior", Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 188.

(3) TAVAREZ, Juarez. Op. cit., p. 222.

(4) Nesse sentido, ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. cit., p. 202.

(5) SANTOS, Juarez Cirino dos. "A Moderna Teoria do Fato Punível", Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 57.

(6) Sobre o tema, SANCINETTI, Marcelo. "Responsabilidad por Acciones o Responsabilidad por Resultados?", Bogotá: Universidad Externado de Colombia,, 1996.

(7) WELZEL, Hans. "Derecho Penal Alemán", 11ª ed., tradução de Juan Bustos Ramíres e Sérgio Yáñez Pérez, Santiago: Juridica de Chile, 1997, p. 77.

(9) ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. cit., p. 192.

(9) ROXIN, Claus. "Derecho Penal Parte General", Madri: Civitas, 1997, p. 363.

(10 )Sobre o tema, BACIGALUPO, Enrique. "Manual de Derecho Penal", 4ª reimpressão, Bogotá: Temis, 1998, pp. 215 a 217.

(11 )FRISCH, Wolfgang. "La Imputación Objetiva: Estado de la Custión", in "Sobre el Estado de la Teoría del Delito (Seminario em la Universitat Pompeu Fabra)", coordenação de Jesús-María Silva Sánchez, Madri: Civitas, 2000, p. 44.

(12)Deve ser ressaltado que, o conceito de risco não é encontrado exclusivamente na teoria de Roxin, presente também, por exemplo, em formulações de Jakobs, sendo certo que na obra do primeiro autor, encontra-se o compromisso com a lesividade do momento em que o risco deve realizar-se no resultado.

(13)GIDDENS, Anthony. "The Consequences of Modernity", Oxford: Polity Press, 1990, p. 34.

(14)GIDDENS, Anthony. Op. cit., 1990, p. 34.

(15)"Where danger is understood as a threat to desired outcomes". GIDDENS, Anthony. Op. cit., 1990, p. 35.

(16)ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. cit., p. 202.

(17)ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Idem, ibidem.

(18)FRISCH, Wolfgang. Op. cit., p. 29.

(19)ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. cit., p. 197.

(20)Nesse sentido, ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Idem, ibidem.

(21)ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Idem, ibidem.

(22)No sentido de não vislumbrar legitimidade alguma nesse poder, ZAFFARONI, Eugênio Raúl. "Em Busca das Penas Perdidas", Rio de Janeiro: Revan, 1991.

(23)Ressalte-se que até mesmo seus próprios defensores concordam com a impureza objetiva de seus critérios.

(24)Como já dito que a imputação objetiva "é um instituto um tanto radical. Ou dele se gosta ou odeia", in PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. "A Imputação Objetiva é Real", Boletim do IBCCRIM nº 101, abril de 2001, p. 16.

(25)FRISCH, Wolfgang. Op. cit., pp. 38/39.

Rodrigo de Souza Costa

Quintanista da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal.



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