Janaina C. Paschoal
Carlos Alberto Pires Mendes, Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes, Celso Eduardo Faria Cora
A determinação da sanção aflitiva é uma das fases mais importantes do processo penal, pois é nesse momento que se perdem ou se restringem direitos fundamentais da pessoa humana.
A sanção imposta pelo Estado, além de necessária, deve ser aplicada de forma justa. Para tanto, é preciso que o processo penal se valha de recursos técnico-científicos para conhecer a personalidade do delinqüente, circunstância judicial prevista no art. 59, caput, do Código Penal que deve ser analisada na aplicação da pena-base.
Nesse sentido escreve Mezger: "No que concerne à medida judicial da pena corretamente entendida, será indispensável, no futuro, que o juiz possua um conhecimento científico fundamentado da personalidade do réu"(1).
Mello(2) nos ensina que a personalidade é o segundo elemento mais importante a ser estudado na fixação da pena-base. Fragoso(3), por sua vez, também entende que, nesta fase, a personalidade deve assumir posição preponderante na determinação da pena.
Não se pretende que o princípio da culpabilidade pelo fato seja substituído pela personalidade do agente, funcionando esta como limite máximo da pena, como ocorre em países hispano-americanos, mas apenas que a personalidade seja analisada tal como a sua importância exige. Tal postura difere muito do sistema hispano-americano, pois, segundo este sistema, como nos ensina Bacigalupo:
"A pena para o ato concreto deve determinar-se segundo a adequação do fato à personalidade do autor, e segundo a adequação social da personalidade do autor, tanto maior seria a sua pena. Essa posição consiste, em realidade, em uma fórmula em que se procura acolher a personalidade perigosa do autor como base para a medida da pena. Não há dúvida de que com ela pretende-se expressar que, na medida em que a personalidade do autor permita concluir que é possível esperar dele futuros fatos puníveis, deve-se considerá-la para a medida da pena"(4).
Segundo Mello:
"São elementos constitutivos ou formadores da personalidade: a idade do réu, o seu desenvolvimento físico e mental, a educação que recebeu, o meio em que foi criado e em que tem vivido, o ter sido ele ou não um menor abandonado, o seu grau de instrução ou de cultura, a sua inteligência, a sua sensibilidade, a sua força de vontade, a sua sensibilidade ou insensibilidade moral, o fato de sentir ou não remorso, de mostrar ou não cinismo ou indiferença para com o julgamento moral do próximo a respeito de seu crime, etc. (…)"(5).
Pode-se notar, então, que analisar a personalidade não é uma tarefa simples, já que requer conhecimentos técnicos, dada a complexidade da questão. Portanto, entender o que vem a ser a personalidade, por não ser conceito jurídico, necessariamente exige auxílio das ciências correlatas.
A personalidade, por ser dinâmica e inerente a cada pessoa, não é compatível com um recurso de avaliação estático e genérico. Entendida a partir da dinamicidade e individualidade, a personalidade compõe-se de estrutura, causas permanentes e conduta, determinadas pelas influências sociais.
Não é, assim, imutável, estática, mas passível de evolução ao longo do tempo. Dessa forma, exige-se que seja avaliada de forma correta para que não se cometam injustiças.
Contudo, os julgadores, ao aplicarem a pena-base, em um caso concreto, não se valem de parecer técnico-científico algum que analise a personalidade do acusado.
Por ofender o princípio da presunção de inocência, a legislação não prevê a realização de exame da personalidade ou criminológico na instrução criminal. Dadas as peculiaridades dessa investigação, o entendimento predominante é o de que os referidos exames tão-somente poderão ser feitos depois de declarada a culpa.
Ora, apesar de ter o legislador respeitado a presunção de inocência, por não prever a realização desses exames na instrução criminal, não criou outros meios para que os magistrados, ao aplicarem a pena-base, possam avaliar de forma adequada a personalidade do agente. Com isso, fica o juiz completamente desamparado de elementos científicos na averiguação da personalidade do agente, atuando com ampla discricionariedade.
A existência de um parecer técnico sobre a personalidade na instrução criminal seria de grande valia. O impedimento de analisá-la no momento da fixação da pena põe em questão os princípios da personalidade, da proporcionalidade, da individualização e da humanização da pena.
Daí a importância do exame criminológico nesta fase, por enfocar o binômio delito-delinqüente e ser uma perícia e não exame de personalidade. Tal exame, mais abrangente, é um inquérito voltado para a investigação da pessoa, da sua história de vida, caráter, comportamento social, sensibilidade social, sensibilidade moral e nível sócio-econômico-cultural.
Conforme Mirabete, o exame criminológico:
"(…) é uma espécie do gênero exame da personalidade e parte 'do binômio delito-delinqüente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social, como o reclamavam os pioneiros da Criminologia'. No exame criminológico, a personalidade do criminoso é examinada em relação ao crime em concreto, ao fato por ele praticado, pretendendo-se com isso explicar a 'dinâmica criminal (diagnóstico criminológico), propondo medidas recuperadoras (assistência criminiátrica)' e a avaliação da possibilidade de delinqüir (...)"(6).
Apesar de existirem entendimentos contrários quanto à realização do exame criminológico, antes da aplicação da pena, a sua adoção só tem a trazer benefícios.
A posição de Farias corrobora nosso pensamento, pois, segundo o referido autor:
"(…) o exame criminológico será capaz de apresentar um quadro delineador da personalidade do acusado, o qual será de imensa valia quer para o julgador, quer para o tribunal, quer para as autoridades encarregadas da execução da pena. (...) ele deve ser realizado na fase de instrução criminal, pois assim estaremos desde o início tratando com dados concretos, (...) como meio de individualizar a pena"(7).
Como salienta Cunha Luna:
"(…) a legislação acertou ao não permitir exame criminológico na pessoa do simplesmente denunciado e ainda não condenado, e desacertou ao privar nosso processo penal de um exame de natureza científica que é, na essência, processual e que prestaria inegáveis esclarecimentos para a aplicação mais justa da pena, (...)"(8).
Albergaria nos informa:
"(…) o exame criminológico não tem por objetivo provar a culpabilidade, mas estudar a personalidade do delinqüente para a individualização da pena nas fases judiciária e da execução penal (…). Antes da decisão o juiz deverá dispor de informação sobre a personalidade biopsíquica e social do delinqüente. Esta exigência pressupõe um exame biológico, psicológico e um conhecimento do meio social em que viveu o delinqüente (…)"(9).
Autores há que repudiam a existência de exame criminológico na instrução criminal, por ofender o princípio da presunção de inocência. É esta a justificativa existente na exposição de motivos da Lei de Execuções Penais e motivo pelo qual o exame, nesta fase, tal como estava previsto no Anteprojeto de Código de Processo Penal elaborado por José Frederico Marques, não foi aprovado.
No entanto, considerando que as características do exame em tela não permitem a sua realização sem a existência da formação de culpa, entendemos que, para efetivar os princípios informadores da aplicação da pena, poder-se-ia adotar um processo bifásico, seguindo o entendimento de Zaffaroni e Pierangelli, que nos ensina:
"A determinação da medida que, dentro do máximo permitido pelo grau de culpabilidade, requer a prevenção de acordo com os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente (na sua segunda função individualizadora). Cabe advertir que, neste aspecto, é de se insistir na necessidade de um estudo ou informe criminológico. Não obstante, o princípio constitucional de inocência impede-na - nossa maneira de ver - a realização do informe criminológico de um processado. Cremos que, se efetivamente se quisesse implantar esse informe, se faria mister dividir o processo, ou juízo, em duas partes - como sucede, algumas vezes, nos Estados Unidos -; na primeira se estabelecendo a autoria e a classificação legal do fato, e, numa segunda etapa, procede-se à individualização da pena. De outra maneira, pretender realizar um informe criminológico de um processado é penetrar no âmbito de privacidade e intimidade de uma pessoa, que a lei presume inocente, e que de modo algum autorizam os mais elementares princípios do Estado de Direito"(10).
Para que sejam resguardadas as garantias do acusado, o processo penal deverá, no futuro, ser bifásico para que o exame criminológico, sendo adotado no decorrer da instrução, possa realizar-se sem afrontar o princípio da presunção de inocência. Este também o entendimento de Fragoso(11).
Ante o exposto, somente com a adoção de uma instrução criminal bifásica poder-se-iam resguardar os princípios orientadores da aplicação da pena e os direitos fundamentais de todos acusados. Evitar-se-ia, dessa forma, que a valoração da personalidade dos acusados, nas sentenças criminais, seja quase sempre precária, imprecisa, incompleta, superficial, limitada a afirmações genéricas como "assalto revela desde logo no agente uma distorção psicológica"(12), "a criminalidade violenta de regra já evidencia má personalidade"(13), que, do ponto de vista técnico, nada dizem.
Para que se tenha uma justa aplicação da pena é preciso que a Justiça Penal se valha de instrumentos técnico-científicos no estudo da personalidade. A ampla discricionariedade na aplicação da pena, por outro lado, só serve para legitimar a injustiça.
Notas
(1) MEZGER, Edmund. "Criminologia", Madrid: Revista de Derecho Privado, 10 de julho de 1942, p. 197.
(2) MELLO, Lydio Machado Bandeira de. "Manual de Direito Penal", vol. II, Belo Horizonte: Lemi, 1954, p. 93.
(3) FRAGOSO, Heleno Cláudio. "Lições de Direito Penal. Parte Geral", 15ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 322.
(4) BACIGALUPO, Enrique. "A Personalidade e a Culpabilidade na Medida da Pena", in RDP nº 15/16, julho-dezembro, 1974, p. 26.
(5) MELLO, Op. cit., pp. 93/94.
(6) MIRABETE, Júlio Fabbrini. "Execução Penal", 9ª ed., São Paulo: Atlas, 2000, p. 50.
(7) FARIAS, Vilson. "O Exame Criminológico na Aplicação da Pena", Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 4, fascículo 15, São Paulo; IBCCRIM, 1996, pp. 276/277.
(8) LUNA, Everardo da Cunha. "Capítulos de Direito Penal", v. 1, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 361.
(9) ALBERGARIA, Jason. "Comentários à Lei de Execução Penal", Rio de Janeiro: AIDE, 1987, p. 17.
(10) ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELLI, José Henrique. "Manual de Direito Penal - Parte Geral", São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 833.
(11) FRAGOSO, Op. cit., p. 322.
(12) TACRIM/SP, Ac., Rel. Octávio E. Roggiero, JUTACRIM 421/90.
(13) TACRIM/SP. Ac., Rel. Azevedo Franceschini, JUTACRIM 36/310.
Ricardo Luiz de Abreu
Acadêmico do 9º período na PUC/MG, unidade Betim (MG).
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