Janaina C. Paschoal
Carlos Alberto Pires Mendes, Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes, Celso Eduardo Faria Cora
Atualmente, para os crimes de roubo (art. 157 do CP), principalmente para as formas qualificadas do delito, tem sido muito comum a imposição do regime prisional fechado para o início do cumprimento de pena, sob os argumentos de que o crime de roubo é considerado grave afronta à sociedade, tem provado constante repúdio por parte da população e gerando intranqüilidade social, razões pelas quais o regime prisional inicial deve ser o fechado, pouco importando a quantidade da pena imposta, a primariedade, menoridade e inexistência de antecedentes criminais do agente(1).
Entretanto, o referido posicionamento jurisprudencial, tem se revelado não muito coerente, aparentemente baseado em uma falsa idéia de repressão penal, e que, apesar de sua ressonância, não tem surtido os efeitos desejados, principalmente no que se refere ao aspecto de prevenção geral do delito de roubo, mormente porque, nas grandes capitais, o delito tem persistido como um problema social crônico e preocupante, derivando muitas vezes de graves fatores sócio-econômicos que grande parte da população brasileira vem atravessando.
Pensamos, dessa maneira, que a determinação compulsória do regime prisional inicial fechado, com fundamento na gravidade abstrata do delito, além de revelar-se como uma prática penal estéril, tem se revelado como uma grave violação ao princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVII da CF/88) e ao princípio do ne bis in idem.
Historicamente, pode ser facilmente constatado que a rigidez na aplicação da lei penal não foi o melhor método para erradicar as mazelas e os desajustes sociais, ao contrário, o que se observou foi a revolta, a apatia e o descrédito por parte do corpo social e dos próprios destinatários da norma penal. A exemplo disto, conforme relata Tomás y Valiente, durante o período de Monarquia absoluta (séculos XVI-XVIII), no afã de reprimir os delitos mais freqüentes - como os delitos de roubo e furto, quando chegavam a uma espécie de praga social -, esta situação desembocava quase sempre na aplicação abusiva e arbitrária da pena de morte(2), contudo o efeito intimidativo das execuções públicas acabavam se tornando cada vez menores, pois a sensibilidade coletiva acabava se endurecendo diante dos espetáculos lastimosos e quase cotidianos.
Já num primeiro momento, o citado relato histórico nos conduz às seguintes indagações: Até que ponto a rigidez na aplicação da lei penal é suficiente para garantir obediência à norma pelos seus destinatários? A aplicação compulsória do regime mais severo, seria para que outros indivíduos não se aventurem na prática do delito de roubo? Obviamente, a experiência tem revelado que não, a não ser sob o aspecto simbólico da punição, sem contar que em muitos casos, o beneficiado com regime semia-berto acaba ficando meses à espera de remoção no regime fechado.
Enfocando a legislação brasileira, com clareza meridiana determina o art. 59, inc. III, do Código Penal e o art. 110 da Lei de Execução Penal, que, sob pena de nulidade tópica - nulidade esta pela qual o tribunal ou mesmo o Juízo de Primeiro Grau, deverá sanar a omissão(3), ou mesmo permitindo-se a decretação de nulidade de todo decisório(4) -, o magistrado, na sentença condenatória, deverá explicitar o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade.
Em correlação com essa importante regra, a imposição do regime inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade, deverá sempre atender critérios objetivos e subjetivos, isto é, a quantidade da pena imposta, a qualificação subjetiva do condenado e a estrita observância às regras norteadoras do art. 59, caput, do Código Penal, conforme determinação expressa no art. 33, § 3º do Código Penal, devendo o regime prisional inicial ser adequado em função da culpabilidade, antecedentes, da personalidade, dos motivos, etc., não podendo o juiz sentenciante furtar-se desta situação, pois isto faz parte das exigências necessárias à individualização da pena, regra de natureza cogente(5).
De outra parte, o magistrado, face o princípio constitucional da motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CF.88), deverá sempre fundamentar a escolha do regime prisional mais severo, não bastando a referência genérica às circunstâncias judiciais contidas no art. 59 do Código Penal, posicionamento este que vem sendo comumente adotado pelo Supremo Tribunal Federal(6).
Afora isto, e principalmente, a opção pelo regime prisional mais severo não pode estar atrelada ou alicerçada na gravidade hipotética do tipo penal, sob pena de violação da regra ne bis in idem.
Este entendimento, aliás, foi acolhido de maneira unânime pelo colendo Superior Tribunal de Justiça no pedido de HC nº 11.908/SP(7), impetrado pelo subscritor, no qual foi deferido em favor do paciente a possibilidade do regime prisional inicial semi-aberto, ficando assentado na declaração de voto do ministro José Arnaldo da Fonseca - baseando-se em vários precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC nº 70.481, DJU de 09.09.94, p. 23.442; HC nº 73.532-1/SP, rel. min. Moreira Alves, DJ de 09.08.96, p. 27.101; HC nº 75.503-8/SP, rel. min. Marco Aurélio, DJ de 17.04.98; HC nº 75.119/GO, 1ª Turma, rel. min. Celso de Mello, DJU de 06.03.98) e do próprio Superior Tribunal de Justiça (HC nº 12.345/SP, DJ de 22.05.00; HC nº 10.057/SP, rel. min. Gilson Dipp, DJ de 08.11.99, p. 84)(8) - que os decisórios não podem estabelecer, apenas tendo em conta a gravidade do delito, o regime inicial de cumprimento de pena, e a alegação de que determinado tipo de crime deve ser reprimido com maior gravidade, por ser comum à determinada região, não pode ser admitida como fundamentação, notadamente porque a gravidade do crime já foi analisada pelo legislador quando cominou as penas em abstrato para cada tipo penal.
Nessa linha de raciocínio, embora a legislação brasileira não tenha regra expressa sobre o princípio de ne bis in idem em matéria de fixação da pena, podemos tomar como paralelo a disposição contida no inc. III, do § 46 do StGB, que em matéria de determinação da pena prescreve: Não devem ser tomadas em conta as circunstâncias que já constituem elementos do tipo legal. Semelhante regra pode ser encontrada no art. 71º-2, do Código Penal português, no seguinte sentido: Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Logicamente, os citados dispositivos referem-se à quantificação penal, mas no sistema penal brasileiro, esta quantificação possui estreita relação com a determinação do regime inicial de cumprimento de pena, principalmente sob o enfoque do princípio da individualização.
Há tempos já observava Welzel(9), referindo-se a fatores gerais objetivos na aplicação da pena, que a valoração ético-social média da infração a uma norma encontra expressão nas cominações punitivas legais, e a elas se encontra ligado o mínimo e o máximo da pena por concepções pessoais diferentes (por exemplo: os delitos contra a moral, o aborto, etc.), por esta razão não é possível utilizar-se novamente de um elemento legal do tipo, para agravar ou atenuar a pena, se já foi levado em consideração no marco penal.
Com a advertência dos autores alemães que sustentam que injusto e culpabilidade são conceitos que admitem graus, podendo suceder assim que exista no tipo circunstâncias que o legislador tenha levado em conta para determinar uma escala maior de pena porque indicam injusto maior, e a necessidade de particularização do grau de desvalor de uma conduta, coloca Zaffaroni(10) que o referido princípio da doutrina como proibição da dupla valoração de fatos e quantificação de penas, responde ao fundamento de que não se pode valorar duplamente a mesma circunstância, o que se depreenderia de uma forma de garantia material de ne bis in idem, colocando o autor que o referido princípio vige também no Direito positivo argentino, ainda que não haja nenhuma disposição especialmente consignada na lei penal, tratando-se de uma questão lógica, devendo existir uma coerência interna da sentença, princípio este cuja valoração permite a utilização de remédios processuais.
Em ressonância, Figueiredo Dias(11) formula o princípio de que não devem ser utilizadas pelo juiz para averiguar a responsabilidade do agente, as circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal e, portanto, não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena, estendendo o autor ainda o alcance do princípio relativamente a circunstâncias que também devem ser tomadas em conta nas outras operações de determinação da pena, isto é, as de determinação legal e de escolha da pena, sendo que o alcance do princípio é definido pelo citado autor, no sentido de que a concreta circunstância que deva servir para determinar a moldura penal aplicável, não deve ser de novo valorada para quantificação da culpa e da preservação relevantes para a medida da pena, e que para além deste acordo de princípios, a questão deve ser objeto de uma análise mais aprofundada, a que a doutrina não se tem poupado.
Maurach/Zipf(12), o primeiro deles, um dos últimos representantes da Escola Clássica retributiva, reconhecem que a proibição da dupla valoração, compreendida na disposição do inc. III do § 46 do StGB, tem revelado um papel decisivo na evolução de uma teoria racional de medição judicial da pena e, especialmente, o controle da medida da pena por via de cassação, concebendo que a função da proibição da dupla valoração diz respeito principalmente à relação entre marco punitivo e o marco de culpabilidade, deduzindo-se o fundamento da proibição da dupla valoração a partir da colaboração baseada na divisão de trabalho e na divisão de responsabilidade, entre a pena prevista pelo legislador e a pena aplicada pelo juiz, e mais precisamente, a dupla valoração pode ser descrita como uma infração à necessidade de valoração individual da culpabilidade do ato praticado.
Com efeito, advertem os autores que, por um lado, parece totalmente adequado que o juiz tenha em mira também para a determinação da pena, as idéias fundamentais da norma penal infringida, ou seja, que considere por exemplo, ao julgar um roubo, o fato de que a segurança pública e a paz jurídica reclamam um castigo eficaz dos delitos violentos, sem embargo, isto pode supor um perigo de que o julgador recorre a ponderações que o próprio legislador tenha levado em conta ao criar a cominação punitiva, de qualquer modo, o limite entre admitida procura das intenções legislativas na criação do tipo penal e da inadmissível confluência da formação legislativa de determinação da pena de acordo com o fato concreto, sua medida judicial somente pode ser traçada com muita dificuldade, sendo que a proibição da dupla valoração abaixo basicamente na relação entre a medida judicial da pena em sentido amplo e em sentido estrito, devendo-se, neste ponto, partir-se de uma valoração ampla e possível de todos os fatores de determinação aplicáveis, debaixo de diversos ângulos(13).
Destarte, seja qual for a amplitude da aplicação do princípio, a possibilidade de graduação do injusto e da culpabilidade, ou mesmo a licitude da divisão de tarefas entre o legislador e o juiz, tendo em conta especificamente a figura típica do roubo, no qual a violência e a grave ameaça posicionam-se como elementares típicos, a consideração puramente objetiva do julgado à gravidade abstrata do delito para a determinação compulsória do regime inicial de cumprimento de pena, não somente viola o princípio constitucional da individualização da pena, mas também o princípio ne bis in idem, fazendo necessário constar que, de forma razoável, a mesma argumentação exposta serve também para as hipóteses de concurso material entre os crimes de roubo e quadrilha ou bando qualificados, cujo posicionamento jurisprudencial perante o Supremo Tribunal Federal também tem sido divergente.
Por outro lado, há que se levar em consideração também que, tomando por base uma política criminal séria e responsável, comprometida com princípios constitucionais claros, transparentes e que se encontrem em harmonia com o Estado de Direito Democrático, não é mais tolerável qualquer posicionamento no sentido de uma quase obrigatoriedade na aplicação do regime prisional fechado para o delito de roubo, notadamente porque isso importa diretamente em se tarifar o método de determinação do regime prisional inicial previsto no art. 33 e seguintes do Código Penal, em semelhança ao que infelizmente aconteceu na Lei dos Crimes Hediondos (art. 2º, § 1º da Lei nº 8.072/90). Logicamente, se a pena possui caráter pessoal e intransferível (art. 5º, inc. XLV da CF/88), nenhum indivíduo poderá ser duplamente punido pelo mesmo fato, não se admitindo portanto que a liberdade individual seja duplamente agravada em função da mesma circunstância legal, ainda que por necessidades de retribuição ou prevenção.
Notas
(1) Nesse sentido, várias foram as decisões do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo: Rev. nº 236.494/3, 2ª Câm., rel. juiz Sérgio Carvalhosa, j. 30.11.93; Ap. nº 873.867/1, 12ª Câm., Rel. juiz Afonso Faro, j. 13.06.94; Ap. nº 865.617/4, 2ª Câm., Rel. juiz Rulli Júnior, j. 07.04.94; Ap. nº 788.653/6, 3ª Câm., Rel. juiz Ferreira Rodrigues, j. 05.04.94.
(2) TOMÁS Y VALIENTE, Francisco, El Derecho Penal de la Monarquia Absoluta, 2ª ed., Madrid, Tecnos, 1992, pp. 359360. Contudo, numa posição interpretativa contrária, conforme HESPANHA, Antonio Manuel, De Iustitia a Disciplina, in Antonio Manuel Hespanha, La Gracia del Derecho, Madrid, Centro de Estudos Constitucionales, 1993, pp. 203 e segs.; sustentando o citado autor, que a função político-social determinante do Direito Penal real não parece ser, na sociedade sem Estado dos séculos XVI e XVII, a de efetivar por si mesmo, uma disciplina social, para Hespanha, pelo menos até cerca do ano de 1750, a morte natural foi uma pena muito pouco aplicada, concluindo o autor assim que, ao contrário do que muitas vezes se pensa, a punição no sistema penal definitivamente praticado pela justiça real no antigo regime - pelo menos até o advento do despotismo iluminado -, não era nem muito efetiva, nem sequer muito aparente ou teatral, pois os malefícios, ou se pagavam com dinheiro, ou com um degredo de duvidosa efetividade e, muitas vezes, não excessivamente prejudicial para o condenado, ou eventualmente com um longo e duro encarceramento preventivo, sustentando ademais que, somente a partir do iluminismo jurídico é que surge a preocupação pelo desenvolvimento de um controle penal massivo, no sentido de que, se antes a punição real possuía um papel quase que exclusivamente simbólico, no iluminismo a punição passou a desempenhar um papel normativo prático, pois com a punição pretendia-se de fato, controlar os comportamentos, dirigir, instruir a ordem social e castigar as violações a esta ordem. Na mesma linha de raciocínio, conforme SABADELL, Ana Lúcia, Tormenta Juris Permissione, Folter und Strafverfahren auf der iberischen Halbinsel (16-18 Jh), Duncker & Humblot, Berlim, 2000.
(3) Este entendimento tem predominado nos Tribunais Superiores, conforme: STF, HC nº 70.086/1, rel. Francisco Rezek, DJU de 25.06.93, p. 12.640; HC, rel. Celso de Mello, RT 659/358; HC/SP, rel. Célio Borja, RT 650/356; HC nº 73.487/1, rel. Octávio Gallotti, DJU de 07.02.97, p. 1.338; STJ, Resp. nº 29.554-7, rel. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU de 30.09.96, p. 36.655.
(4) STF, HC nº 72.423-0, rel. Marco Aurélio, DJU de 04.10.96, p. 37.100.
(5) Assim, FRANCO, Alberto Silva, Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial - Parte Geral, 6ª ed., v. 1, t. I, São Paulo, RT, 1999, pp. 920-921.
(6) A propósito, confira os julgados a seguir: STF, HC nº 69.118-8, rel. Celso de Mello, DJU de 10.04.92, p. 4.799; HC nº 69.793-3, DJU de 24.09.93, p. 19.575; HC nº 73.685-8, rel. Marco Aurélio, DJU de 20.09.96, p. 34.535; HC nº 70.998-2, rel. Sepúlveda Pertence, DJU de 15.04.94, p. 8.048 e RT 713/432; HC nº 73.174-1/RJ, 2ª Turma, j. 27.02.96, rel. Francisco Rezek, DJU de 17.05.96, p. 16.325.
(7) O acórdão respectivo encontra-se disponível, na íntegra, na Internet: http://www.stj.gov/cgibin/justiça/query?what=ptcplo&key=hc+11.908& mrdesc=ON.
(8) Adotando idêntico entendimento, confira ainda: STF, HC nº 77.637-3/SP, 2ª Turma, rel. min. Marco Aurélio, j. 24.11.98, v.u., DJU de 26.02.99, pp. 2-3; STJ, HC nº 12.373/SP, 5ª Turma, rel. min. José Arnaldo da Fonseca, DJU de 07.08.00, p. 123.
(9) Derecho Penal Aleman. Parte General, 11ª ed., trad. J. B. Ramírez y S. Y. Pérez, Chile, Editorial Jurídica, 1997, p. 305.
(10) ZAFFARONI, Eugenio Raul, Tratado de Derecho Penal. Parte General, v. V, Buenos Aires, Ediar, 1998, pp. 333-334.
(11) Citando Jorge de Figueiredo Dias, conforme RODRIGUES, Anabela Miranda, A Determinação da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 594-595. Para a citada autora, o princípio da dupla valoração, assenta-se na divisão de tarefas entre o legislador e o juiz, mas em qualquer caso o conteúdo assim definido do princípio da proibição da dupla valoração assegura atualmente, numa parte decisiva, a racionalidade do processo de determinação da medida da pena, sendo que o âmbito de aplicação do princípio não é fácil de definir, o seu núcleo duro e inquestionável condensando-se na idéia fundamental contida na formulação legal, cf. p. 606.
(12) Por várias vezes, fazendo referência a Bruns, conforme: Derecho Penal. Parte General, 7ª ed., trad. J. B. Genzsch, v. 2, Buenos Aires, Astrea, 1997, pp. 741-742.
(13) Ibidem, pp. 743-745.
<>Paulo Sergio Xavier de Souza
Advogado da Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel (Funap), mestrando em Direito Penal pela Universidade Metodista de Piracicaba (SP) e professor da Unoeste Presidente Prudente (SP).
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