INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 96 - Novembro / 2000





 

Coordenador chefe:

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Editorial

A prisão como pena alternativa

Adolfo Borges Filho

Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, professor de Direito Processual Penal da PUC/RJ e foi visiting scholar da Havard Law School.

"Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade."(1)

Sempre que sou convidado para falar sobre "pena", todo o passado de seis anos na Promotoria da Vara de Execuções Penais vem à tona e um misto de apreensão e desilusão toma conta do meu espírito. No mês de agosto de 1996, participei, como debatedor,  de um simpósio, promovido pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, versando sobre o tema "Penas Alternativas". A minha exposição, na verdade, foi um desabafo sincero de testemunha presencial de um sistema caótico e falido. O que vivenciei na Vara de Execuções Penais se compara a uma viagem sem volta ao mundo do "O Processo", de Kafka. A grande mentira da ressocialização do preso, como paradigma-mor do sistema, é uma fantasia insustentável. Quando focalizo, na memória, a última visita que realizei no Instituto Penal Ary Franco (Água Santa), enxergo novamente, uma cela de trinta metros quadrados, povoada por trinta internos que disputavam, para suas necessidades fisiológicas, um buraco fétido num canto do recinto. O cheiro reinante no ambiente e o ruído de vozes, nervosas, desencontradas e indecifráveis, provocaram-me náusea súbita e, no mesmo instante, uma dúvida existencial tomou conta do meu ser: "E se fosse eu a vítima deste absurdo?". Lembro-me, também, com muita tristeza, da última visita de inspeção que fiz ao Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, que batizei de "Casa dos Mortos", em homenagem ao livro do grande Dostoiewsky, e que ensejou um relatório, irônico e revoltado, de onde transcrevo alguns trechos marcantes:

<b>Relatório de uma visita-inspeção ao Manicômio Judiciário Heitor Carrilho (ou "Casa dos Mortos"), no dia 17 de maio de 1985</b>

"Uma luz se acendeu em mim: É de companheiros de viagem que eu preciso, e vivos não de companheiros mortos e cadáveres, que carrego comigo para onde eu quero ir.".
(Nietzche)

De repente, atravessamos a linha divisória que separa o mundo dos vivos do submundo dos zumbis. Mergulhamos no mais fundo dos abismos em que um ser humano pode ser lançado. Miséria e loucura de mãos dadas, irremediavelmente unidas, desfilando à nossa frente, etiopizando os nossos olhos, enfatizando nossa impotência. Esta é a visão "otimista" do Manicômio Judiciário Heitor Carrilho.

Iniciamos a visita pelo "pavilhão novo" (entre aspas!). de novo, só o adjetivo vazio. A infiltração de água nas paredes é o denominador comum. O laboratório existente está fechado. Na sala de reuniões de grupos, o vazamento chegou a tal ponto que certa vez "pingava fezes no teto", nos dizeres de um funcionário que presenciava a inspeção.

Rumamos para "enfermaria de observação", que batizei de pocilga. Não há melhor palavra para defini-la. Não me lembro de Ter visto coisa parecida no jardim zoológico. Nem em filme de campo de concentração nazista. Hitlher teria chorado, talvez de ciúmes, se visse tal coisa... Na jaula principal quatro infelizes se revezavam no mostrar parte do rosto na minúscula janelinha existente na pesada porta. Pedimos que abrissem a jaula e entramos. O ar estava simplesmente irrespirável. Parecia o day after. As camas em alvenaria são túmulos com cadáveres do lado de fora. Colchão, cobertor, travesseiro (como os conhecemos aqui fora), não os vi.

E aquelas criaturas enjauladas ainda não haviam sito rotuladas psiquiátrica e juridicamente: esquizofrênico, paranóico, psicótico, neurótico, maníaco-depressivo, artigo 26, etc., estavam ali para exame. E nos contaram o caso de um pobre mortal que respondia a um feito na comarca de Campos e que passara um mês na "pocilga" até que fosse submetido ao competente exame... Sem comentários! A essa altura dos acontecimentos, enlouqueceu de vez.

E prosseguimos nossa peregrinação pela "Casa dos Mortos".

O alojamento dos guardas, apesar de mais asseado, está muito aquém do que deveria ser, mormente quando abriga, por 24 horas, um servidor especializado do Estado. Com que élan um homem desses pode exercer sua função?

Fomos então para a enfermaria masculina. Outro descalabro. Pasolini teria chorado de emoção se tivesse conhecido tão escabroso cenário. De hospital não vi nada. Nem o agá inicial. Ou melhor, vi um enfermeiro, vestido de branco, sentado atrás de uma mesinha branca, numa pequena sala que me pareceu deserta. Vi homens agrupados em torno de uma velha televisão. Vi quartos com pedaços de cama e de colchões jogados em cantos. Vi "banheiros" sem as mínimas condições de higiene, sendo que num deles verifiquei a ausência de privada. A imundície dos pacientes refletia a sujeira de tudo. Para não dizer que não falei de coisas boas, vi uma "enfermaria", uma única "enfermaria"  habitável: a enfermaria de Marinha que recebe ajuda especial daquela Força Armada.
Em suma, quase 180 indivíduos, condenados à desgraça, vivem na "Casa dos Mortos". E são assistidos por oito enfermeiros.

Terminando a visita, dirigimo-nos para o pavilhão feminino. Lá estão internadas oito mulheres. Apesar da falta de material, inclusive de higiene, a situação física do ambiente é melhor. Vi duas enfermeiras, uma guarda, e conversei com todas as internas. Reclamaram de falta de material mas não há termos de comparação entre a ala feminina e a masculina. Depois de visitar o inferno, o passeio pelo purgatório já é um alívio.

Voltamos para o mundo dos vivos chocados com tudo o que vimos. O Manicômio Judiciário não existe. Aquilo não é um hospital. Aquilo é uma miniatura de campo de concentração. Ali não se recupera ninguém. Ali se degenera. Ouso apresentar uma sugestão, apesar de Ter plena consciência de que não será acatada: vamos fechar o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho; vamos transferir os doentes para um lugar decente, para um verdadeiro hospital. Vamos construir um novo Manicômio Judiciário Heitor Carrilho. Pode ser sonho, mas como diz Milan Kundera, "o sonho é a prova de imaginar, sonhar com aquilo que nunca aconteceu, é uma das mais profundas necessidades do homem".

A realidade social de nosso País é trágica. O capitalismo selvagem imperante agora com o novo apelido de neoliberalismo achincalha, robotiza  e faz do indivíduo mero material descartável, substituível. Até hoje não se concretizam, de forma plena, as medidas de controle e natalidade. Melhoram-se ruas, avenidas e paisagens. Entretanto, hospitais e escolas continuam na mesma precariedade. A televisão, quando mal direcionada, manipulada por inescrupulosos donos de dinheiro e, como conseqüência lógica, de poder, cria o script das marionetes, injetando-lhes, dia após dia, a esperança macabra de um futuro melhor...que nunca chegará.

O grande pensador social, psicanalista Hélio Pellegrino, desabafou:

"A ordem social brasileira é intrinsecamente perversa. Ela é concentradora de renda e excludente, no mais alto grau. Na favela, tal como está organizada, reproduz-se semelhante estrutura. Há uma socialização da delinqüência. Esta deixa de ser propriedade privada do capitalismo selvagem e passa a ser modelo de miséria, seu projeto estruturante. Aparecem nos morros os barões das biroscas, os potentados desdentados que caricaturam, groyeascamente, os donos-da-vida cá de baixo. Os traficantes de drogas assumem o comando das favelas, com o acumpliciamento da polícia e do conjunto da sociedade. Há aqui uma ilustração dramática da verdade segundo a qual a ideologia das classes dominantes é a ideologia de todo o corpo social"(2).

O que sobre para o sistema penitenciário? O lixo dos lixos, evidentemente. Em processo cível, referente a indenização por morte de preso em penitenciária desta cidade, escrevi o seguinte: "A execução penal (do pobre) no Brasil começa na concepção. O filho da miséria é condenado à pena de vida marginalizada, desde que consiga vencer as desgraças da infância. Quando consegue ser 'homem de bem', sobrevive de subemprego. Pode também se transformar num mendigo ou num doente mental. Mas o destino mais cruel é a criminalidade. Nesse último campo, pode acabar morrendo na rua, abatido que nem um animal selvagem. Pode ser recolhido a uma unidade do sistema penitenciário, onde ser aperfeiçoará na delinqüência ou encontrará a morte pela AIDS ou pelas mãos de colegas de infortúnio. Hipocritamente, se apregoa a ressocialização do "bandido" preso. Como ressocializar o que nunca foi socializado? Hipocritamente, se prega a pena de morte quando ela já existe, aberta e informalmente".

Pode ser o problema da criminalidade brasileira eminentemente social é que se torna maior a responsabilidade de o Estado promover mudanças radicais no sistema correcional. O mestre Roberto Lyra, nosso companheiro de Ministério Público, descreveu a prisão como sendo "rotura, de ofício, do chamado contrato social. O preso passa, compulsoriamente, a vegetar, noutra sociedade. Prisão é morte moral, morte cívica, morte civil, morte mesmo pela consumição da vida. Rui Barbosa considerou a prisão por 30 anos eufismo da pena de morte. É pior do que a pena de morte. Eliminação lenta. 'Mofando', 'apodrecendo', dizem as vítimas. É 'pena perpétua' inconstitucional  prisão de velho e do doente que vai morrer preso. As mulheres morrem mais depressa. Toda pena encurta a vida. A pena é sempre longa, por mais curta, pela memória, pela imaginação, pelo desgaste, pelo estigma. Todos reconhecem a nocividade de prisões curtas ou longas, recorrendo, aliás inutilmente, para umas à suspensão da execução, para outras, ao livramento condicional e vários expedientes inoperantes contra umas e outras"(3).

Não chegaria ao ponto de sustentar a abolição da pena de prisão. Entendo que determinados indivíduos, condenados por crimes violentos, devem ser afastados do convívio social. Entretanto, esse isolamento social deve respeitar suas características humanas no tocante às necessidades materiais e espirituais. O ideal seria a construção de estabelecimentos industriais e agrícolas, longe dos centros urbanos, próximos à natureza, onde um programa de socialização, multidisciplinar, pudesse ser concretizado. Digo socialização porque, na maioria absoluta dos casos, não se pode ressocializar quem nunca foi socializado. Quando pensamos em prisão, vem-nos à mente uma cela com grades e cadeado. Mas o termo prisão é usado também para compor a expressão "prisão domiciliar", "prisão albergue", atenuando-lhe o significado rígido. Parece que a característica teológica marcante da pena de prisão é a "privação da liberdade". O que não se admite mais é a prisão desumana, a "prisão enjaulamento". A privação da liberdade, a nosso juízo, feita de forma digna, humana, não pode ser abolida. Penso numa grande fazenda, mesmo que cercada de muros altos, com alojamentos arejados, higiênicos, mobiliados, onde o "preso", durante o dia, pudesse produzir: cultivando a terra, realizando serviços, produzindo bens ou criando peças artísticas. E é óbvio que o trabalho seria obrigatório e o fruto desse trabalho reverteria, em primeiro lugar, para o sustento interno e em segundo lugar para a composição dos danos causados à vítima do crime ou à sua família.

O que hoje praticamos, em termos de sistema correcional, é uma gigantesca hipocrisia. Temos uma Lei de Execução Penal moderna que não vem sendo aplicada por falta total de infra-estrutura. A lei n° 7.210, de 11.07.84 é inaugurada com o seguinte artigo:

"Art. 1° - A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para  a harmônica integração social do condenado e do interno".

No art. 3° está escrito que:

"Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei".

O artigo 10 dispõe:

"A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade".

Mais adiante, vamos encontrar o art. 88, com as seguintes recomendações:

"O condenado será alojado em cela individual, que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.

Parágrafo único: são requisitos básicos da unidade celular:

a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores da aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;

b) área mínima de seis metros quadrados".

A progressão de regime prisional, por exemplo, é extremamente salutar.

A LEP prevê que o cumprimento da pena no regime semi-aberto se faça em estabelecimento industrial, agrícola ou similar. No entanto, o regime semi-aberto hoje nada mais é do que um artifício de esvaziamento carcerário e uma chance de reincidência para os que conseguiram ultrapassar incólumes (ao menos fisicamente) as agruras do regime fechado. Veja-se que, no regime semi-aberto, o que se tem, ao contrário do que a lei preconiza, é uma quase liberdade. O interno dorme na penitenciária e durante o dia trabalha em liberdade. Numa sociedade assolada pelo desemprego e pelo subemprego, fica difícil imaginar que um  quase-egresso, com curriculum vitae desabonador, consiga uma boa colocação empregatícia... Muitos se  acobertam na própria estrutura do regime semi-aberto para evoluírem na carreira do crime, que é muito mais rendosa.

Comecei falando do seminário do qual participei como debatedor. Esqueci de dizer que o tema ali enfocado foi "Penas Alternativas". Os especialistas ingleses que proferiram as palestras, professores Vivien Stern e John Harding, defenderam as penas alternativas demonstrando com o paulatino sucesso que elas vêm conquistando nos países onde já foram implantadas. E o desembargador Jorge Loretti, na época secretário de Justiça de nosso Estado, em síntese perfeita, declarou que a pena alternativa deveria ser a de prisão, reservada para os casos graves. Eis que o porquê do título de nosso trabalho. A regra, em termos de penalização, no pensamento do culto magistrado, seriam as "penas alternativas" previstas na nossa legislação: basicamente, as restritivas de direitos.

Quando o legislador instituiu as penas restritivas de direitos, enfatizadas pela Lei n° 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), o Direito Penal pátrio deu, a nosso sentir, um grande salto no caminho de sua humanização.

A experiência na Vara de Execuções Penais (1983-1989) revelou-me a imensa dificuldade de aplicação das penas restritivas de direito como a prestação de serviço à comunidade e a limitação de fim de semana. Por falta de uma conscientização maior da comunidade, muitas instituições externavam receio em receber, por um determinado período de tempo, para prestação de serviço, um condenado por crime de furto. Contávamos com a boa vontade da Pastoral Penal no aproveitamento de alguns apenados. A precaríssima infra-estrutura de que dispúnhamos impedia a experimentação das novas penas. O que se verifica, portanto, é que ainda não podemos tecer um julgamento crítico acerca da eficácia ou ineficácia dessas sanções alternativas. Não é exagero ou arroubo de relatórica dizer-se que as penas alternativas ainda não foram implantadas. Por enquanto, é prematuro afirmar-se que as penas restritivas de direito não deram certo. É preciso acentuar que os institutos e as instituições trilham um processo histórico que se arrasta no tempo. Mas o tempo histórico não pode ser medido em termos da efêmera existência humana. E as penas alternativas, no tocante ao tempo histórico, nasceram ontem. Hospitais públicos e escolas públicas, criações bem mais antigas, enfrentam crise inenarrável e bastante conhecida no nosso País. Isso não quer dizer que tais instituições fracassaram e que deveríamos fechá-las. O que falta é vontade política e boa vontade comunitária para que institutos e instituições, de fundamental relevância para o aperfeiçoamento material e espiritual do ser humano, não caiam em desgraça e sejam alvos de críticas emanadas de mentes míopes, aberrações produzidas por um falso sistema de valores onde reina o dinheiro.

O socialismo verdadeiramente cristão, aplicado também ao sistema penal, ainda é grande esperança, porque justiça é espiritualidade. O grande teólogo Leonardo Boff escreveu:

"Ao buscar uma libertação da iniqüidade social, os cristãos, ao lados das virtudes pessoais sempre válidas, forçosamente têm que desenvolver uma santidade política: amar dentro dos conflitos de classe, esperar frutos que virão somente num futuro longínquo, solidarizar-se com as camadas oprimidas, obedecer asceticamente a decisões assumidas comunitariamente e, por fim, estar dispostos a dar a sua própria vida em fidelidade ao Evangelho e aos irmãos oprimidos" ("E a Igreja Se Fez Povo")(4).

<b>Notas</b>

(1)Foucault, Michel. "Microfísica do Poder", trad. De Roberto Machado, 3ª ed., "Graal", 1982, pp. 131/132.

(2)Pellegrino, Hélio. "A burrice do Demônio", 2ª ed., Rocco, pp. 177/178.

(3)Lyra, Roberto. "O Novo Direito Penal", Editor Borsoi, 1971, p. 108.

(4)Boff, Leonardo. "Seleção de Textos Militantes", Vozes, Petrópolis, 1991, p. 75.

<i>Adolfo Borges Filho</i>
<br>Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, professor de Direito Processual Penal da PUC/RJ e foi visiting scholar da Havard Law School.



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