INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 90 - Maio / 2000





 

Coordenador chefe:

Berenice Maria Giannella

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Conselho Editorial

Editorial

Uso de animais em experiências científicas Laerte Fernando Levai

Laerte Fernando Levai

Promotor de Justiça em São José dos Campos (SP)

A experimentação animal, do ponto de vista jurídico, sempre foi um assunto tabu, face à natural dicotomia existente entre Direito e Medicina. Embora no Brasil haja lei específica versando sobre o tema, como instrumento destinado a coibir a submissão de animais a atos de abusos e maus-tratos, jurisprudência específica ainda não existe. Enquanto isso, a exemplo do que ocorre em outros países, milhares e milhares de animais padecem, a cada ano, nos laboratórios de pesquisa científica, sofrendo o que se pode chamar de "tortura institucionalizada". Segundo definiu o professor João Epifânio Régis Lima(1), "o termo vivissecção (do latim vivu 'vivo' + sectione "secção"), classicamente, faz referência à dissecação (abertura por incisão) de animais vivos, anestesiados ou não, para estudos de natureza fisiológica". Quanto à experimentação lato sensu seu alcance é bem mais amplo, eis que envolve qualquer tipo de pesquisa científica sobre animais, não apenas na área neurológica e comportamental, mas também para testes toxicológicos, armamentistas, de cosméticos, etc.

Vale lembrar, a título elucidativo, que a proteção jurídica aos animais, no Brasil, remonta ao Decreto Federal nº 24.645/34, da época de Getúlio Vargas,que descrevia — casuisticamente — trinta e uma hipóteses de maus-tratos a animais, sem se referir especificamente à experimentação. Depois, em 1941, surgiu a Lei das Contravenções Penais, cujo art. 64 tratava da "crueldade contra animais". E na qual se acrescentou o § 1º: "Na mesma pena incorre aquele que, embora para fins didáticos ou científicos, realiza, em lugar público ou exposto ao público, experiência dolorosa em animal vivo". Redação deficiente, eis que admitia — implicitamente — a vivissecção em locais privados. Até que em 1979 foi editada a Lei Federal nº 6.638/79, estabelecendo normas para a prática de vivissecção, de modo a complementar o texto contravencional. E, enfim, o § 1º do art. 32 da Lei nº 9.605/98 tratou também do assunto, embora passível de regulamentação. Essa, em síntese, a legislação brasileira existente sobre o assunto, cabendo indagar se a Lei dos Crimes Ambientais revogou a Lei da Vivissecção.

Com efeito, a vintenária Lei nº 6.638/79 estabelece normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais e dá outras providências, sujeitando o infrator às penas do então art. 64 da LCP (crueldade contra animais - detenção ou multa). Alguns juristas e pesquisadores entendem que esse ordenamento jurídico, por não ter sido regulamentado em sua totalidade, é inaplicável. Há que se observar, entretanto, que nem mesmo a nova Lei dos Crimes Ambientais, que dispôs expressamente sobre experimentação animal, revogou aquela lei federal. É que a prometida regulamentação (que nunca houve) referia-se aos biotérios (art. 6º), não à totalidade dos tipos penais ali elencados. Desse modo, as proibições contidas nos itens I, III e V do art. 3º da Lei nº 6.638/79 continuam válidas, vedada a vivissecção nas seguintes hipóteses:

1ª) sem o emprego de anestesia;

2ª) sem a supervisão de técnico especializado;

3ª) em estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus e em quaisquer locais freqüentados por menores de idade.

Trata-se de uma lei híbrida, eis que possui natureza administrativa e criminal, com direta alusão à reprimenda contravencional. No que se refere aos biotéricos a questão é administrativa; quanto às proibições, o assunto é tipicamente penal. Não podemos ignorar que aqueles locais de confinamento animal permanecem, não raras vezes, em condições extremamente precárias, sujeitando os bichos a prolongada angústia. Incontáveis situações de crueldade a animais ocorre nos próprios biotérios, sem que isso seja levado ao conhecimento das autoridades competentes.

Um os mais renomados juristas brasileiros, o saudoso Hely Lopes Meirelles(2) sustenta que o fato de uma lei não ser regulamentada em todos seus artigos não a torna inválida. Os artigos que não dependem de regulamentação têm aplicação imediata, pois a inércia do Poder Executivo (a quem cabe a regulamentação) não pode prejudicar a ação do Poder Legislativo (que aprovou a lei). Bem ou mal, a Lei nº 6.638/79 era a única do gênero no Brasil até o surgimento da Lei dos Crimes Ambientais, cujo art. 32, § 1º, acrescenta a seguinte redação aos crimes de abuso e maus-tratos:

Incorre nas mesmas penas (detenção de 3 meses a 1 ano, e multa) quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.

O legislador ambiental, ao fazer menção aos chamados recursos alternativos, criou uma norma penal em branco. Ou seja, um tipo penal aberto, impreciso, que depende de outra norma que o complemente, caso contrário a aplicação da lei se inviabiliza. É que a lei penal, conforme se sabe, deve descrever claramente a conduta proibitiva, sob pena de se tornar uma porta aberta para a impunidade. Situação semelhante já foi enfrentada na Lei Antitóxicos — que tipifica como crime o porte ou o tráfico de "substância entorpecente ou que determine dependência física ou química" — onde uma portaria do Ministério da Saúde relacionou quais as substâncias tidas como entorpecentes. Desse modo, a norma penal em branco da experimentação animal precisa de um complemento federal explicitando quais os métodos alternativos que permitiriam livrar as cobaias dos laboratórios.

O grande mérito da Lei nº 9.605/98, no que se refere à proteção dos animais, foi o de transformar a então contravenção de crueldade em crime, o que já é um grande avanço. Quanto às pesquisas científicas ou didáticas, condicionou-se a realização de experiência dolorosa ou cruel em animal vivo na hipótese de inexistência dos chamados recursos alternativos. A propósito dessa expressão, "recursos alternativos", o ideal seria o termo "técnicas substitutivas". É que a alternância prevê sempre duas hipóteses: o uso do animal ou o seu não uso. Já a substituição exclui o uso do animal, conforme consta do art. 8º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que o Brasil subscreveu na Unesco em janeiro de 1978:

"A experimentação animal, que implica em sofrimento físico, é incompatível com os direitos do animal, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra.

As técnicas substitutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas."

Dentre os métodos alternativos à experiência animal podemos citar, a título exemplificativo, aqueles já previstos na legislação européia e norte-americana, a saber:

- sistemas imunológicos in vitro;

- cromatografia e espectometria de massa;

- farmacologia e mecânica quânticas;

- modelos mecânicos e simuladores;

- modelos audiovisuais;

- placentas humanas descartadas para a prática de cirurgia microvascular;

- pesquisa de doenças existentes em culturas de outros povos, estilos de vida e dietas, estudos de casos humanos, relatórios de necrópsias e análises estatísticas de efeitos de vários fatores de incidência da doença.

Desnecessário citar, aqui, a literatura da crueldade inserida nas obras que revelaram ao mundo o que ocorria nos porões dos laboratórios, fazendo-o em respeito aos milhares e milhares de animais que perdem a vida cada ano em prol do que se chama "progresso da Ciência". Os livros "Holocausto", de Milly Schär-Manzoli(3) e "S.O.S. Animal", de Edna Cardozo Dias(4) por exemplo, figuram dentre os mais expressivos libelos contra a vivissecção, porque denunciam uma realidade que os homens, em nome de um pretenso avanço científico, teimavam em ocultar.

O Brasil, em termos jurídicos-legislativos, tende a acompanhar os países de Primeiro Mundo no que se refere à problemática da experimentação animal. Na Europa a Comunidade Comum Européia, através do "Convênio Europeu Sobre Proteção de Animais Vertebrados Utilizados Para Fins de Experimentação" (firmado em Estrasburgo, aos 18.03.86), dita essas normas de maneira conjunta, sem prejuízo das leis de proteção de cada localidade e sem perder de vista o caráter de necessidade da experiência, caso inviabilizada a utilização de métodos alternativos que visam a poupar os animais de sofrimentos desnecessários. Nos EUA cada instituição científica deve ter um comitê de ética que avalia a viabilidade dos projetos de trabalho envolvendo animais, exigindo-se curso e treinamento específicos. No Reino Unido qualquer experimento que possa causar dor, sofrimento ou estresse no animal é administrado pelo Home Office, que efetua rigorosa fiscalização. Essa regulamentação governamental tem sido o ponto de equilíbrio entre os anseios das sociedades protetoras e as necessidades dos cientistas. Já na Itália, além da Lei de Proteção aos Animais, existe uma lei que permite a "objeção de consciência" ao estudante de Medicina ou Veterinária, permitindo sua recusa em participar de aulas onde acontece experimentação animal.

O professor italiano Pietro Croce(5) da Universidade de Milão, alerta para o risco de se regulamentar de forma errônea a experimentação animal, o que pode causar efeito contrário ao desejado, ou seja, proteger os vivissecionistas, reforçando o seu direito de utilizar uma prática que não ameaça somente os animais, mas a própria saúde humana. E conclui: "A Medicina é essencialmente ciência da observação, em que a experimentação ocupa somente uma parte menor da investigação médica. Mas aquela parte menor foi contaminada por um enorme erro grosseiro: aquele de haver adotado os animais como modelos experimentais do homem".

Daí a necessidade de reflexão sobre cada palavra que vai fazer parte de um texto legal. De viabilizar, no Brasil, a legislação ambiental no que se refere às restrições impostas à experimentação animal, definindo quais os métodos alternativos — ou substitutivos — preconizados na lei. E esperar que, enquanto isso não vem, as próprias faculdades de ciências médicas não descuidem dos aspectos éticos da experimentação animal, incutindo nos estudantes noções de bioética, com vistas ao respeito por todas as criaturas viventes.

A postura moral e filosófica do homem em relação aos animais e ao próprio meio ambiente do qual faz parte chegará a ponto de, um dia, abolir em definitivo o uso de animais em pesquisas. Na atualidade ainda é muito difícil convencer um cientista, cuja carreira está fincada na experimentação animal, a abandonar essa prática. A esperança de uma "biologia sem violência" repousa nas novas gerações de pesquisadores. Deles poderá vir a consolidação do ideal, ainda que aparentemente utópico, de que num futuro próximo não seja mais necessário sacrificar criaturas inocentes para garantir o bem estar da humanidade.

Notas

(1) Lima, João E. Régis, "Vozes do Silêncio - Ideologia e Alienação no Discurso Sobre Vivissecção", dissertação de mestrado, Faculdade de Ciências Biológicas da USP, 1996.

(2) Meirelles, Hely Lopes, "Direito Administrativo Brasileiro", 4ª edição, São Paulo, RT, 1976.

(3) Schär-Manzoli, Milly, "Holocausto", 2ª edição, Suíça, ATRA AG STG, 1996.

(4) Dias, Edna Cardozo, "S.O.S. Animal", Editora Littera Maciel Ltda., MG, 1983.

(5) Croce, Pietro, artigo "Porque Médicos Antivivisseccionistas", Universidade de Milão, Itália, 1999.

Laerte Fernando Levai
Promotor de Justiça em São José dos Campos (SP).



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