INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 88 - Março / 2000





 

Coordenador chefe:

Berenice Maria Giannella

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Conselho Editorial

Editorial

A (ir)responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público interno

Pedro Krebs

Professor de Direito Penal da UNISINOS/RS, na Escola Superior da Magistratura (AJURIS), especializando em Direito Penal na UFRGS e procurador do Estado do Rio Grande do Sul

A Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), em seu art. 3º, inovou a Ciência Penal ao atribuir à pessoa jurídica a possibilidade desta se caracterizar como sujeito ativo de crime. Referida hipótese, qual seja, a de os entes coletivos poderem praticar crimes, tem sido, atualmente, alvo de severas críticas e elogios, evidenciando, assim, a polêmica que o tema encerra(1).

O presente estudo, entretanto, não se preocupará com este embate especificamente. Partiremos, assim, do pressuposto de que é possível a imputação penal das pessoas jurídicas. A polêmica que aqui tentaremos analisar é a respeito da possibilidade (ou não) de as pessoas jurídicas de Direito Público Interno (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) serem alvos das sanções previstas nos arts. 21 e seguintes da referida lei (penas de multa, restritivas de direitos e de prestação de serviços à comunidade).

Ao analisarmos esta questão, podemos constatar que vários autores se posicionaram a respeito da possibilidade de os entes públicos serem punidos criminalmente por seus atos socialmente lesivos.

É assim que se manifesta, por exemplo, Silvina Bacigalupo(2), ao comentar que "Estas cuestiones ponen de manifesto la necesidad de poder imponer sanciones, por ejemplo referidas a los delitos contra el medio ambiente, también a ciertas personas jurídicas de Derecho Público"(3). Na literatura brasileira, Walter Rothenburg(4) sustenta idêntico raciocínio, ao afirmar que "Todavia, as pessoas jurídicas de Direito Público não devem ter negada a sujeição criminal ativa por princípio"(5).

O fundamento para tal interpretação decorre do entendimento de a pessoa jurídica ser igual sempre, independentemente da sua natureza jurídica(6).

Data maxima venia, mas não podemos concordar com tal entendimento deveras simplista.

É que, salvo melhor juízo, as pessoas jurídicas de Direito Público Interno não são iguais às de Direito Privado(7). A diferença entre ambas, além de flagrante, é abissal. Em verdade, não é equívoco afirmar que é mais fácil reconhecer diferenças entre elas ao invés da igualdade pretendida. Assim sendo, ousamos discordar daqueles que afirmam ser possível a punição das pessoas jurídicas de Direito Público Interno pelo simples fato de serem também pessoas jurídicas, atestando carecer de importância a natureza jurídica que lhes é imposta.

Neste sentido, não podemos acatar o entendimento de que a irresponsabilidade penal do ente público acarretaria em uma violação do princípio da igualdade. As pessoas jurídicas de Direito Público Interno são distintas — senão em tudo — em vários aspectos das de Direito Privado. Ora, em sendo distintas, é possível (ou, no mínimo, necessário) efetivar um tratamento desigual entre elas.

Sob este prisma, no tocante ao correto entendimento do princípio da igualdade, Canotilho, mencionado por Maren Guimarães Taborda(8), ensina-nos que somente haverá uma violação do princípio da igualdade se eventual discriminação estiver sedimentada em um fundamento que não seja sério, ou se não apresentar um sentido legítimo ou sem um fundamento no mínimo razoável.

Quanto ao primeiro aspecto, a efetivação de eventuais distinções entre pessoas jurídicas públicas e privadas está longe de ser um fundamento que não seja sério. Em verdade, parece-nos estar presente a falta de integridade naqueles argumentos que objetivam traduzir uma suposta "igualdade" que, sabidamente, inexiste.

De igual forma, tal distinção é decorrente de uma aspiração legítima. As pessoas jurídicas de Direito Público Interno são criadas no sentido de fazer valer os anseios de um povo. Sem elas, haveria uma centralização de atribuições numa só pessoa o que dificilmente permitiria uma correta atuação dos representantes da Nação.

Por fim, podemos concluir que é razoável esta prerrogativa. Ora, se em questões patrimoniais (leia-se: demandas cíveis) sempre existiu uma quebra do princípio de igualdade a favor dos entes públicos(9), o que não dizer quando utilizamos esta distinção — público versus privado — para fins penais, onde a responsabilização deve ser entendida como mais restrita!

Assim sendo, é de se entender como incabível a alegação de que os entes públicos podem ser punidos criminalmente porque, caso contrário, restaria por violado o princípio da igualdade.

Contrário a esta posição deveras singela, está, entre nós, o brilhante penalista Sérgio Salomão Shecaira(10), que, após analisar os vários argumentos existentes, afirma que o mais convincente é o de que o Estado, sendo o titular do jus puniendi, não poderia pretender punir a si próprio(11). Isto porque as pessoas jurídicas de Direito Público Interno acabam por se confundir com o próprio Estado(12).

No Direito comparado, a favor da exclusão dos entes públicos, temos, do ponto de vista legislativo, o Código Penal francês que, além de ter reconhecido, de forma expressa, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, acabou por excepcionar o Estado. Ao comentar tal opção legislativa, assim leciona Miguel Carmona Ruano(13), que, em outras palavras, afirma o entendimento de Shecaira: "La cuestión, sin embargo, no puede eludir-se. Si toda sanción es una manifestación de la potestad punitiva del Estado, que es quien tiene la capacidad primaria de sanción — aunque se haya delegado su ejercicio o incluso en parte su regulación normativa en Comunidades Autónomas o Corporaciones Locales — no cabe duda de que el ejercicio de tal potestad punitiva sobre el propio ente público resulta un contrasentido dificilmente soportable. Y tan Estado es la Administración Estatal como la Administración Autonómica o Local, al ser en sí misma la Administración una mera técnica de personificación que permite el tráfico jurídico del ente público (...). Por eso el Código Penal francés, en el art. 121-2, cuando establece la responsabilidad penal de las personas jurídicas, excluye de ella expresamente al Estado"(14).

Nesse mesmo sentido, a jurisprudência estrangeira(15) também assim tem sustentado(16): a) no primeiro caso, o Ministério Público — denominado de Ministerio Fiscal — processou criminalmente o Município de Voorburg. É que um servidor, responsável pela manutenção de parques, destruiu vários ninhos de garças, uma vez que as mesmas estariam contaminando o local, violando, assim, a lei de proteção aos pássaros. Decidiu o Tribunal Supremo que "el tribunal de instancia habría debido declarar inadmisible la acusación del Ministerio Fiscal, porque se trataba, primero, de um órgano público en sel sentido del Capítulo 7 de la Constitución (autoridad pública) y, segundo, encargado de garantizar la buena gestión de los parques como obligación administrativa de sua competencia"(17); b) em outro caso, o Ministério Público denunciou o próprio Estado — em verdade, foi contra o Ministério da Defesa — pela violação do art. 14, da lei de proteção do solo, por contaminação de querosene no Aeroporto Militar de Volkel. O Tribunal Supremo assim declarou: "6.1. Se debe observar, como punto de partida, que los actos del Estado se suponen dirigidos a la defensa del interés general. El Estado puede preocuparse, por ley y reglamentación, administración, comportamientos de hecho o de cualquier otro modo, de todas las cuestiones. 6.2. Por los actos del Estado, los ministros y los secretarios generales deben, de manera general, rendir cuentas al Parlamento. Pueden además ser procesados penalmente por malversaciones y cohecho y juzgados sobre la base de los artículos 483 y siguientes CPP. 6.3. Este sistema no es suficiente para que el Estado mismo pueda ser considerado penalmente responsable de sus actos. 6.4. Lo que precede tiene como consecuencia que el tribunal habría debido declarar inadmisibles los procesamientos emprendidos por el Ministerio Fiscal"(18).

No tocante à legislação pátria, a Lei dos Crimes Ambientais não tratou de excluir ou tratar diferentemente as pessoas jurídicas. Entretanto, ao compulsarmos a Lei nº 9.605/98, podemos constatar a ocorrência de uma certa incompatibilidade para com sua aplicação aos entes públicos. Veja-se, por exemplo, algumas das sanções que são impostas às pessoas jurídicas (art. 21): a) pena de multa (art 21, I). Ora, seria concebível impor uma pena pecuniária a um réu que salda seus débitos através de precatório? É isso que se espera de uma resposta penal? Teria cabimento retirar-se recursos (que já são extremamente limitados) da saúde, educação, segurança, para pagar uma pena? É óbvio que não! Cabe, outrossim, salientar que pena de multa não se confunde com a condenação de pagamento em dinheiro prevista na ação civil pública (Lei nº 7.347/85, art. 3º). Esta tem outro objetivo, qual seja, o caráter indenizatório, reparatório do dano, que em nada se identifica com as metas de uma sanção penal; b) restritiva de direitos (art. 21, II), na modalidade "proibição de contratar com o Poder Público" (art. 22, III), ou de prestação de serviços à comunidade (art. 21, III), nas modalidades "manutenção de espaços públicos" (art. 23, III), ou "contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas" (art. 23, IV). Ora, denota-se, pois, que o legislador figurou o Poder Público como aquele que sofre o favor da pena. Descabe, pois, imaginarmos que aquele a quem o legislador consagrou os benefícios da sanção pudesse ser também autor de um delito!

É, nesse sentido, como afirma Fernando da Costa Tourinho Filho(19), que concluímos ter o art. 3º, da Lei nº 9.605/98, determinado apenas a possibilidade de a lei ser aplicada a empresas particulares, alheias ao Poder Público.

Outro aspecto que merece destaque, embora não impeça propriamente a condenação dos entes públicos, é a questão da competência para processar e julgar os crimes praticados pelas pessoas jurídicas previstas no art. 14, do Código Civil. Suponhamos, por exemplo, que o Estado do Rio Grande do Sul estivesse sendo processado criminalmente pela prática de crime ambiental. Pergunta-se: qual o juízo competente? Uma das Varas dos Feitos da Fazenda Pública (COJE, art. 84, V)? É óbvio que não, eis que estas julgam apenas questões de ordem patrimonial. O Pleno do Tribunal de Justiça? Não acreditamos nesta hipótese por duplo fundamento: primeiro, porque o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul estaria julgando a si próprio (o Poder Judiciário também é Estado!); segundo, porque se o chefe dos Poderes Executivo e Judiciário estaduais são julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, I, a), o que não dizer da própria pessoa jurídica que eles representam!

Pelo que fora dito, concluímos estarem as pessoas jurídicas de Direito Público Interno imunes à ação penal, devendo eventual demanda ser dirigida contra a pessoa física do agente apenas, sob pena de cairmos numa espécie inconcebível de autoflagelo. Diga-se imunes porque, em verdade, é possível a prática de um fato típico e antijurídico por parte de um ente público. O que ocorre, no caso, é a impossibilidade de o mesmo ser processado. Saliente-se, outrossim, que tal conclusão não se apresenta como uma total novidade. Sempre que tratarmos de pessoas — sejam físicas ou jurídicas — que exercem uma função política, a imunidade, em verdade, é necessária. É o caso, por exemplo, no Direito brasileiro, da imunidade diplomática e parlamentar, e, no Direito comparado, da imunidade do princípe (Constituição Espanhola, art. 56.3: "La persona del Rey es inviolable y no está sujeita a responsabilidad").

Por todo o exposto, podemos concluir que as pessoas jurídicas de Direito Público Interno (Código Civil, art. 14 e incisos — União, Estados, Distrito Federal e Municípios) estão imunes à ação penal pelos seguintes motivos: a) não há quebra do princípio da isonomia eis que as pessoas jurídicas de Direito Público Interno, em verdade, são totalmente distintas dos entes coletivos privados; b) o Estado, em sendo o titular do jus puniendi, não pode pedir o reconhecimento de um direito contra si próprio. Tal procedimento acarretaria em uma verdadeira confusão de partes no processo (aquele que pede o reconhecimento e a aplicação de um suposto direito seu seria o mesmo que aquele contra quem se pede), fato este que, de igual forma, acabaria por violar o art. 18, da Constituição Federal; c) por conseqüência, eventual demanda criminal, se for o caso, deverá ser redirecionada contra a pessoa física do agente público apenas (governador, ministro de Estado, etc.).

Notas

(1) Para tanto, ver o resumo das posições doutrinárias a respeito do tema no artigo de Carvalho, Ivan Lira de, "A Empresa e o Meio Ambiente", in Revista da AJURIS, nº 74, nov/98, pp. 36-37.

(2) "La Responsabilidad Penal de las Personas Jurídicas", Barcelona, Bosch, 1998.

(3) Op. cit., p. 374.

(4) "A Pessoa Jurídica Criminosa - Estudo Sobre a Sujeição Criminal Ativa da Pessoa Jurídica", Curitiba, Juruá, 1997.

(5) Op. cit., p. 212.

(6) "De lo contrario, se cometería un tratamiento desigual difícil de justificar" (Bacigalupo, Silvina, op.cit., p. 374). "A autonomia decorrente da personalidade que o Direito lhes outorga é semelhante a das pessoas jurídicas de Direito Privado. Conseqüentemente, condutas faticamente realizadas por seres humanos na qualidade de órgãos ('presentantes') devem ser creditadas ao próprio ente coletivo" (Rothenburg, Walter, op. cit., p. 212).

(7) Em verdade, podemos afirmar que a própria vontade criadora, germe dos entes coletivos, é distinta. Para tanto, basta ver que, no caso das pessoas jurídicas de Direito Público Interno, é a Constituição Federal (no caso da CF/88: art. 18, caput) quem as cria, através do poder constituinte originário concedido ao Parlamento, onde resta traduzida a vontade de um povo, que em nada se identifica com aquele convergente direcionamento psicológico ensejador da criação de uma empresa privada através da pessoa dos sócios.

(8) "O Princípio da Igualdade em Perspectiva Histórica: Conteúdo, Alcance e Direções", in Revista de Estudos Jurídicos, São Leopoldo, UNISINOS, v. 30, 1997, p. 130.

(9) Apenas alguns exemplos dentre vários: o procedimento especial da execução fiscal — Lei nº 6.830/80 —, o procedimento distinto da execução contra a Fazenda Pública — CPC, arts. 730 e seguinte —, o pagamento por precatórios — CF, art. 100 —, os prazos processuais privilegiados — CPC, art. 188 —, o juízo privativo — Código de Organização Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul, art. 84, V —, a disciplina da tutela antecipada contra a Fazenda Pública — Lei nº 9.494/97, art. 10 —, etc.

(10) "Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica - De Acordo com a Lei nº 9.605/98", São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998.

(11) Op. cit., p. 144. Rothenburg, Walter, que acredita ser possível a punição dos entes públicos, afirma a estranhíssima situação que adviria deste procedimento: "Admitida a capacidade criminal das pessoas jurídicas de Direito Público, em particular o próprio Estado, teremos uma interessante configuração dos papéis assumidos pelos órgãos públicos (oficiais) envolvidos no processo judiciário. O Estado estará, como de ordinário, encarregado da investigação (Polícia), da persecução/acusação (Ministério Público), do julgamento (Magistratura), e também ao Estado incumbirá a sua defesa — através da Procuradoria/Advocacia Geral (à medida que cabe privativamente a ela a defesa judicial e extrajudicial dos interesses do Estado)", (op. cit., p. 215).

(12) É que, segundo a melhor doutrina, Estado é o "todo, ou seja, o complexo constituído da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, dotado de personalidade jurídica de Direito Público internacional" (Silva, José Afonso, "Curso de Direito Constitucional Positivo", São Paulo, Malheiros, 1992, p. 431).

(13) "La Responsabilidad Penal de las Personas Jurídicas", in "Empresas y Derecho Penal (II), Cuadernos de Derecho Judicial, Escuela Judicial del Consejo General del Poder Judicial", Madrid, 1999, pp. 272-329).

(14) Op. cit., p. 328.

(15) Tribunal Supremo da Holanda.

(16) Coletânea jurisprudencial obtida no artigo da lavra do prof. dr. J. A. E. Vervaele. "La Responsabilidad Penal de y en el Seno de la Persona Jurídica en Holanda. Matrimonio Entre Pragmatismo y Dogmática Jurídica", in "Revista de Derecho Penal y Criminología", Universidad Nacional de Educación a Distancia - Faculdad de Derecho, 1998, pp. 153-184.

(17) Op. cit., pp. 178-179.

(18) Op. cit., pp. 179-180.

(19) "Responsabilidade Penal das Pessoas Jurídicas", in Boletim Informativo Saraiva, Ano 7, Número 2, Ago/98, p. 12.

Pedro Krebs

Professor de Direito Penal da UNISINOS/RS, na Escola Superior da Magistratura (AJURIS), especializando em Direito Penal na UFRGS e procurador do Estado do Rio Grande do Sul.



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