A globalização é um termo utilizado há vários anos pelos economistas para descrever um processo apresentado como recente mas, de fato, existente desde o início do século e descrito por Lenin, em sua obra "Imperialismo", como o "estágio supremo do capitalismo". Ele significa crescimento e primazia das exportações de capital, desenvolvimento da divisão internacional do trabalho, dos trustes multinacionais, interconexão das economias dos diferentes países, etc. A expressão foi retomada com uma amplitude particular nos anos 80 quando a desregulamentação generalizada acelerou as condições da concorrência no plano mundial e o desenvolvimento dos meios de transporte e telecomunicações suprimiram um a um os obstáculos à deslocalização de centros de produção. Ao mesmo tempo, as crises financeiras, que no passado levavam meses ou anos para se propagar, agora tocam todas as praças financeiras em alguns instantes.(1)
A globalização é um fenômeno de múltiplas faces, algumas positivas e outras negativas. Quanto às primeiras, pode-se destacar o benefício da maior integração entre as nações e os povos, as facilidades de comunicação e o aprimoramento dos sistemas de informação; relativamente às segundas, é possível indicar a colonização cultural, a insegurança emocional e a perda da paz de espírito. Um marcante exemplo dessa erosão foi experimentado em nosso país, no início de 1999, quando as notícias sobre o fechamento em queda das bolsas da Ásia e o risco da estabilidade econômica provocaram a evasão dos capitais flutuantes(2) estrangeiros depositados no mercado financeiro. O impacto produziu formidáveis situações de pânico, geradas pela incerteza dos prognósticos econômicos e pelo sensacionalismo dos meios de comunicação.
Um dos efeitos maléficos da globalização é o descarte do humanismo como fenômeno de relação e de sensibilidade para com os valores imutáveis do ser. Dentro de tal perspectiva cresce a importância dos Direitos do Homem que são modelados na realidade e na fantasia do cotidiano. Na avaliação entre as conquistas e as perdas no cenário do mundo, da vida e da História, é importante ter presente um dos trechos sagrados das declarações de direitos. Ao proclamar que o governo existe para garantir ao ser humano a fruição de seus direitos naturais e imprescritíveis e que a lei não pode ordenar senão o que for justo e útil à sociedade, uma das consideranda à Constituição francesa de 1793 enfatizou: "O esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem são as causas das desgraças do mundo".(3)
Em uma de suas inúmeras entrevistas, Norberto Bobbio foi perguntado sobre as características de nosso tempo que despertam viva preocupação, especialmente quanto ao aumento cada vez maior e descontrolado da população; o progresso cada vez mais rápido e inevitável da degradação ambiental e o aumento astronômico e insensato do poder destrutivo das armas. E, ao final, se em meio a tantas previsíveis causas de infelicidade, ele via algum sinal positivo. Bobbio respondeu que sim, que descortina pelo menos um desses sinais: "a crescente importância atribuída, nos debates internacionais, entre homens de cultura e políticos, em seminários de estudo e em conferências governamentais, ao problema do reconhecimento dos direitos humanos".(4)
Essa perspectiva de sagração dos Direitos do Homem deve pautar a reforma do sistema penal positivo, especialmente quanto a dois aspectos: a dignificação do ser humano e a rigorosa seleção dos bens jurídicos protegidos.
É certo que as reformas penais do próximo século devem incorporar os progressos da ciência e da tecnologia e aproveitar a interação proporcionada pela ideologia e os instrumentos da globalização. Mas também é inegável que os valores relativos aos Direitos do Homem devem constituir os pontos nucleares para todo e qualquer projeto relacionado ao sistema criminal envolvendo a Constituição, o Direito Penal, o Direito Processual Penal, o Direito de Execução Penal e as ciências afins.
A globalização poderá contribuir para a padronização de tipologias e de procedimentos visando a punibilidade de alguns crimes de repercussão supranacional (genocídio, apartheid, lavagem de dinheiro, terrorismo, atentados contra o meio ambiente, falsificação de moeda, etc.), estimulando a cooperação na luta contra o crime e o funcionamento de tribunais internacionais. Mas, por outro lado, o globalismo(5) poderá provocar o eclipse da condição humana e até mesmo a perda de referenciais axiológicos que sempre devem iluminar os interesses penalmente protegidos.
Com muita propriedade acentuam Juarez Machado(6) e Alberto Silva Franco(7) que o respeito à dignidade humana e a proteção do bem jurídico constituem vertentes indispensáveis em todo projeto de elaboração das normas penais. É certo que existem outras coordenadas referidas pelos aludidos mestres, por exemplo: a) a necessidade da pena justa; b) a intervenção mínima; c) a proporcionalidade da pena; d) a obediência ao princípio de intervenção mínima; e) a adoção de melhor técnica na composição de tipos, para proporcionar maior garantia e eficácia do Direito. Mas aquelas duas primeiras caracterizam os vasos comunicantes de todo o proceder legiferante.
Trata-se, no dizer de Silva Franco, de algumas "idéias-força" que não podem ser desprezadas pelo legislador do próximo século, sob pena de se deletarem as virtudes do espírito e de arrastar a condição humana para os arquivos da informática até jogá-la na última das lixeiras.
Notas
(1) Size, Pierre. "Dicionário da Globalização", trad. de Goulart, Serge. Florianópolis, Livraria e Editora Obra Jurídica Ltda., 1997, p. 55.
(2) Capitais flutuantes são os capitais de curto prazo altamente especulativos, que passam de um mercado financeiro, ou de uma região para outra em questão de instantes em função de ganhos imediatos. Os capitais flutuantes constituem o elemento central das ondas especulativas e as suas conseqüências principais são a desestabilização econômica e monetária.
(3) Cf. as introduções à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (26.08.1789) e da Carta Política de 1793.
(4) "A Era dos Direitos", trad. Coutinho, Carlos Nelson, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1992, p. 49.
(5) Ao sugerir esse neologismo penso denunciar muito mais a perda de substância do ser humano que um novo tipo de moda social e econômica.
(6) "Critérios de seleção de crimes e cominação das penas", em Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, RT, 1992, p. 75.
(7) "A reforma da Parte Especial do Código Penal – Propostas preliminares", em Revista Brasileira de Ciências Criminais, cit. n.º 3, de 1993, pp. 70 e sgs.
René Ariel Dotti
Professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná e membro de comissões de reforma do sistema criminal brasileiro.
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