INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 85 - Dezembro / 1999





 

Coordenador chefe:

Berenice Maria Giannella

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A exata dimensão do controle externo da polícia pelo Ministério Público

Abrahão José Kfouri Filho

Professor de Direito Administrativo da UNIP e da Academia de Polícia Civil do Estado, delegado de Polícia aposentado, ex-presidente da ADPESP e ex-delegado geral de Polícia.

Representantes do Ministério Público do Estado, calcados, principalmente, no Ato (N) nº 098/96-CPJ de 30.09.96, publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo, que estabeleceu "normas para o exercício do controle externo da atividade de Polícia Judiciária pelo Ministério Público, previsto no artigo 103, inciso XIII, da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26.11.1993", têm pautado, para aquele fim, visitas às delegacias de Polícia, para exame dos livros de Polícia Judiciária, de registro de ocorrências, de apreensão de armas, etc.

A propósito deste Ato (que curiosamente não abrange a Polícia Militar) e a pedido da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo - ADPESP, já em outubro de 1996, elaborei parecer(1) que entendo ainda atual, do qual, por apego à síntese, transcrevo apenas as conclusões:

"Isto posto, passamos a responder aos quesitos formulados.

Ao primeiro: 'Tem o C. Órgão Especial do Colégio de Procuradores do Ministério Público competência legal para estabelecer normas sobre o exercício do controle externo da atividade de Polícia Judiciária?'

Não! Como demonstrado no corpo do parecer, o C. Órgão Especial, a teor do que dispõe a Lei Complementar Estadual nº 734/93, em seu art. 22, inc. VI, tem competência para 'aprovar, mediante proposta do procurador geral de Justiça, ou da maioria de seus membros, medidas a propósito de matéria, direito ou questão de estrito interesse do Ministério Público'. Ao aprovar e estabelecer, a pretexto de instrumentar o Ministério Público ao exercício do controle externo da atividade de Polícia Judiciária, normas novas, não previstas no inc. XIII do art. 103, da LC nº 734/93, excedeu o C. Órgão sua competência, além do que rompeu os limites do estrito interesse do Parquet. Ademais, na forma estabelecida pela Constituição Federal, em seu art. 129, VII, só a lei complementar, submetida ao prévio crivo do Poder Legislativo, poderia normatizar o exercício do controle externo da atividade policial, abrangendo nesse contexto tanto a Polícia Civil quanto a Polícia Militar.

Ao segundo: 'As normas estabelecidas no Ato (N) nº 098/96, acaso promanadas de órgão competente, circunscrevem-se às hipóteses e limites fixados na Constituição Federal e na Lei Complementar nº 734/93?'

Não! Como detida e circunstanciadamente demonstrado ao longo do parecer, o Ato em tela cria situações, hipóteses, condições, atribuições e procedimentos novos, que só a lei complementar — e ainda assim respeitadas as competências constitucionais de cada órgão — poderia estabelecer. Do ato, na realidade, só remanescem eficazes as normas que disciplinam restritamente a atividade interna do Ministério Público e que, de forma alguma, possam representar, direta ou indiretamente, ingerência nas atividades e atribuições da Polícia Civil.

Ao terceiro: 'Estão a Polícia Civil e os delegados de Polícia do Estado de São Paulo, em face de eventuais ilegalidades contidas nas normas do Ato (N) nº 098/96, obrigados a observá-las e cumpri-las?'

Também não! Nessas circunstâncias, porque eivado de vícios que tornam ilegal o Ato (N) nº 098/96-CPJ, e porque de ato nulo não decorrem e nem se originam direitos ou obrigações (Súmula 473, do Supremo Tribunal Federal), não está a Polícia Civil e não estão seus integrantes, especialmente os delegados de Polícia, sujeitos a observá-lo ou cumpri-lo. Ademais, na forma dos artigos 5º, II, e 37, caput, ambos da Constituição Federal, impera em nosso ordenamento jurídico o princípio da legalidade segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. O que deve a Polícia Civil é observar, única e estritamente, no resguardo de suas atribuições constitucionais e legais, o que consta do inciso XIII, do art. 103, da Lei Complementar nº 734/93."

Era e é nossa opinião não ter o Ministério Público competência legal para, a pretexto de exercer o controle externo da atividade policial, realizar correições ou visitas rotineiras em delegacias de Polícia com o objetivo de fiscalizar indistinta e inespecificamente o conjunto de atos, registros e livros próprios da delegacia de Polícia, tanto de natureza de Polícia Judiciária quanto de natureza administrativa, arvorando-se, indevidamente, em superior hierárquico do delegado de Polícia.

Não há que se confundir controle externo da atividade policial, com controle hierárquico. Também não se há de extrair da permissão legal constante da Lei Complementar Estadual nº 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), art. 103, inc. XIII, alíneas "a" e "b", prerrogativa para controle interno da atividade policial, a pretexto de "ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade de Polícia Judiciária". Por certo, mas em cada caso específico e devidamente motivado, poderá o digno promotor de Justiça da comarca, nos autos de determinado inquérito policial, requisitar, por intermédio do juiz de Direito, informações que entenda convenientes para o desempenho de sua relevante função constitucional, cumprindo ao delegado de Polícia prestá-las, ressalvando-se-lhe, ainda, o mencionado "acesso a quaisquer documentos relativos à atividade de Polícia Judiciária", mas sempre a cada caso e motivadamente.

Analisando a matéria, com aguda judiciosidade e pertinência, o E. Superior Tribunal de Justiça, pela sua C. 6ª Turma, relator o ministro Vicente Leal, ao julgar, em 01.09.98, o Recurso de Habeas-Corpus nº 7.640, de São Paulo, interposto por paciente (delegado de Polícia) que teve contra si instaurado inquérito policial por desobediência (sic) em razão de "haver-se recusado a fornecer a promotores de Justiça, em visita oficial ao distrito de que é titular, a relação dos servidores ali lotados, bem como apresentar os livros de registros", concedeu a ordem para determinar o trancamento do inquérito, aos seguintes fundamentos:

"Após demorada reflexão sobre o tema, estou em que, efetivamente, o inquérito policial é desprovido de justa causa.

Na hipótese, não há que se falar, mesmo em tese, de crime de desobediência.

O que se conclui, no caso, é que a questão se situa no campo de mero conflito de atribuições entre promotores de Justiça e delegados de Polícia. Aqueles, escudando-se em ato normativo da Procuradoria-Geral de Justiça, empreendem uma atividade fiscalizadora dos distritos policiais que entendem situar-se na área do controle externo previsto no art. 129, VII, da Constituição. Estes, em contraposição, recusam essa atuação, sustentando que cumprem ordem da Direção Geral da Polícia Judiciária, que determinou a observância pura dos preceitos do Código de Processo Penal.

Ora, a extensão conceitual do controle externo da atividade policial pelo Ministério Público é questão a ser dirimida pela cúpula da Administração, seja, Secretaria de Segurança Pública e Procuradoria-Geral da Justiça, que devem estabelecer os precisos limites de atuação de seus agentes tendo em conta os altos interesses públicos, impondo-se sejam abstraídas as respectivas políticas corporativas.

Daí porque é de se afirmar que eventuais desacordos entre membros dessas duas instituições públicas sobre a zona de limite de suas respectivas atribuições não chegam a configurar crime de desobediência.

Não se pode confundir controle externo com subordinação hierárquica.

Assim, como emoldurado nos autos, não se pode encontrar, mesmo em tese, a ocorrência de crime de desobediência, o que afasta a justa causa para o prosseguimento do inquérito policial.

Isto posto, dou provimento ao recurso e concedo a ordem de habeas-corpus, ordenando o trancamento do inquérito policial" (realcei e grifei).

Declarando voto, aditou o ministro Luiz Vicente Cernicchiaro:

"Evidentemente, há que se fazer a interpretação teleológica, ou seja, como o Ministério Público é o titular da ação penal, interessa-lhe acompanhar a atividade da autoridade policial no tocante aos inquéritos. Não há, entretanto, subordinação hierárquica do ponto de vista administrativo. É claro, se um membro do Ministério Público constatar alguma falha, deverá encaminhar a notícia ao superior hierárquico, no caso debatido, do delegado. No entanto, exercer fiscalização, às inteiras, desvinculada das atividades próprias do Ministério Público, parece-me, não confere com a melhor exegese" (realcei e grifei).

Nos estritos termos do precioso e preciso julgado, não há, pois, como admitir-se o pretendido e corporativo alargamento do controle externo, que não se confunde com "atividade fiscalizadora" ou "fiscalização às inteiras" de que fala o aresto, ao reputá-las indevidas.

De notar-se e dar-se ênfase ao sintomático fato de que o Ato (N) nº 098/96-CPJ, ao reportar-se vagamente ao "uso de suas atribuições legais", deixou de complementar a locução e nela não indicou — e nem poderia — o dispositivo da Lei Complementar nº 734/93 que realmente legitimasse a pretendida faculdade para estabelecer normas da espécie.

A incompetência do C. Órgão Especial manifesta-se também por outra faceta. A Constituição Federal, quando previu o controle externo da atividade policial, atribuindo-o ao Ministério Público, teve a oportuna cautela, justamente para prevenir avanços corporativos, de condicionar seu exercício à prévia lei complementar, precisamente para que o Poder Legislativo, dentro de sua independência e eqüidistância, fosse o árbitro final de sua dimensão. E assim foi feito, daí advindo a Lei Complementar nº 734/93, suficiente e bastante, por si só, para viabilizar, na justa e estrita dimensão, o exercício do aludido controle externo.

Nessa conformidade, pelo seu C. Órgão Especial, o Colégio de Procuradores de Justiça poderia estabelecer, à guisa de regulamento, no restrito âmbito do Ministério Público, normas de procedimento interno, mas sem resvalar para o excesso e para o arbítrio, inovando situações, condições, hipóteses, atribuições e procedimentos não previstos na lei de regência. Como é cediço em Direito Público, o decreto e o regulamento — e o Ato nº 098/96 guarda essa natureza — deve ater-se à lei, limitando-se a compatibilizar o comando da norma com os meios compatíveis e disponíveis de execução.

Com o peso de sua autoridade, o professor José Afonso da Silva(2) escreveu a respeito:

"De duas uma, ou a Lei Complementar nº 734/93 regulou adequada e completamente a matéria, e o Ato 098/96 é absolutamente despiciendo, ou deixou lacunas e o questionado ato não é meio adequado para supri-las. É que a Constituição outorgou à lei complementar competência para regular a forma do controle externo, nada mais; e não admite delegação nem à lei ordinária e menos ainda a ato administrativo para disciplinar a matéria".

Posto isto, fica ao prudente critério de cada autoridade policial, com dignidade e sem subserviência, fiel à sua convicção pessoal, agir em resguardo de suas prerrogativas funcionais e legais, atento ao que de melhor possa advir para o serviço público, para a coletividade e para salvaguarda e prestígio da instituição a que pertence.

Notas

(1) Publicado na íntegra na "Revista ADPESP", nº 22, de dezembro de 1996 (edição especial).

(2) "Controle Externo da Atividade Policial", mesma fonte, p. 21.

Abrahão José Kfouri Filho

Professor de Direito Administrativo da UNIP e da Academia de Polícia Civil do Estado, delegado de Polícia aposentado, ex-presidente da ADPESP e ex-delegado geral de Polícia.



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