INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 319 - Junho/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

CORTES INTERNACIONAIS E SUAS DECISÕES COMENTADAS - Um convite a pensar as Ciências Criminais a partir de uma perspectiva de direitos humanos

Autora: Isabel Penido de Campos Machado e Surrailly Fernandes Youssef

Nesta edição, o Boletim do IBCCRIM inaugura uma nova proposta de pensar as ciências criminais a partir de parâmetros desenvolvidos pela jurisprudência internacional. A coluna denominada “Cortes internacionais e suas decisões comentadas” buscará trazer uma reflexão sobre como os atores do sistema de justiça e pesquisadores podem repensar sua prática a partir das decisões de tribunais internacionais e estabelecer um espaço para provocação, estudo e a reflexão crítica das/os associadas/os.

A ideia surgiu a partir do diagnóstico de que ainda é escassa a mobilização por parte dos atores do sistema de justiça pela incorporação dos parâmetros desenvolvidos pelos tribunais internacionais de direitos humanos. Sem dúvidas, esse é um campo com potencial para proposição de novas estratégias jurídicas e ampliação da garantia de direitos na seara criminal. De outro lado, observa-se que a menção a alguns precedentes internacionais é muitas vezes desvinculada dos discursos e da interpretação das Cortes Internacionais, o que gera o risco de esvaziar o seu conteúdo.

Nos últimos anos, algumas discussões relevantes travadas pelas Ciências Criminais invocaram tratados de direitos humanos como fundamento jurídico, corroborando esse potencial da jurisprudência internacional de transformar sua prática.

A adoção das audiências de custódia, hoje regulamentadas por Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça,(1) se baseou no art. 7(5) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e na jurisprudência consolidada da Corte Interamericana de Direitos Humanos,(2) que exige a condução imediata da pessoa presa a uma autoridade judicial, como forma de prevenir violências e evitar prisões ilegais.

A inclusão do feminicídio no Código Penal como qualificadora crime de homicídio também é um exemplo, no campo penal, de incorporação de uma discussão inicialmente travada na esfera internacional, principalmente em decorrência das mortes de mulheres na cidade de Juarez, em razão de seu gênero, levando a Corte Interamericana de Direitos Humanos a responsabilizar o Estado Mexicano no Caso Campo Algodoneiro.(3) Na América Latina, essa decisão internacional foi catalisadora da tipificação do crime de feminicídio, sendo utilizada como instrumento pelo movimento feminista e de mulheres em sua atuação pela erradicação da violência de gênero.(4)

Do mesmo modo, a discussão sobre a aplicação de alternativas à prisão para mulheres foi permeada pelo compromisso internacional assumido pelo Brasil de implementação das Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok).(5) O Habeas Corpus Coletivo n. 143.64(6) do Supremo Tribunal Federal, mobiliza em diversas passagens tal instrumento normativo internacional e é um exemplo importante da articulação de parâmetros internacionais sobre justiça criminal e gênero para priorizar solução judicial que facilite a utilização de alternativas penais ao encarceramento feminino.

As decisões internacionais ainda impõem obrigações aos Estados submetidos à jurisdição das Cortes Internacionais no campo da justiça criminal. Exemplo claro é o caso Favela Nova Brasília vs Brasil,(7) no qual a Corte Interamericana determinou que a investigação de violência policial deverá ser feita por um órgão independente e diverso da força pública envolvida no incidente e que expressões como “Autos de Resistência” devem ser excluídas do Ordenamento Jurídico.

Esses exemplos são indicativos da urgência de se promover uma reflexão séria sobre a aplicação de decisões internacionais no âmbito das ciências criminais. As discussões oriundas do Direito Internacional já não se apresentam como algo distante e inacessível, mas passam a integrar o cotidiano dos operadores do Direito e de pesquisadores.

Do processo de internacionalização dos direitos humanos ao controle de convencionalidade

Se de um lado o Estado é garantidor primário dos direitos humanos, o processo de internacionalização dos direitos humanos propiciado após o final da Segunda Guerra Mundial possibilitou uma proteção complementar, em caso de atuação estatal insuficiente para reparar, prevenir e proteger direitos.

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos apresenta diferentes âmbitos de atuação. Ao lado do sistema universal de proteção, representados pelos órgãos criados no berço das Nações Unidas, surgiram sistemas regionais destinados a supervisionar o cumprimento de obrigações internacionais em determinadas regiões, com o escopo de considerar as especificidades e os valores históricos desses povos. As decisões dessas instâncias internacionais oferecem um importante instrumento para responder aos principais desafios enfrentados por países da região.

Em âmbito regional, a adoção da Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres do Homem, de 1948, elenca o rol de direitos e materializa a pretensão da OEA de promover e proteger direitos humanos, como também simboliza o nascimento de um sistema regional de proteção interamericano. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), adotada em novembro de 1969 e que celebra sessenta anos em 2019, amplia o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, ao instituir a Corte Interamericana e incorporar a Comissão.

A Comissão Interamericana (CIDH) é um órgão da Organização dos Estados Americanos criado desde 1959 com o objetivo de promover e proteger os direitos humanos dos Estados membros da OEA. A partir da adoção da CADH, a Comissão foi incorporada e ampliada pelo referido tratado, adquirindo o formato atualmente consolidado. A CIDH é a porta de entrada para o sistema, uma vez que recebe as petições individuais e realiza um filtro inicial de admissibilidade,(8) contando com um rigoroso procedimento de apreciação para análise de violação a direitos humanos nos casos concretos.

Já a Corte IDH é uma instituição judicial autônoma, com competência para interpretar a Convenção em casos contenciosos e em opiniões consultivas, desde que os Estados tenham ratificado a CADH e aceitado a competência jurisdicional obrigatória da Corte IDH (artigo 62.1, CADH). A Corte IDH ainda é competente para emitir medidas provisórias em casos de urgência, para evitar danos irreparáveis a direitos consagrados pela CADH (art. 63.2, CADH), como já fez em diversos casos brasileiros, a exemplo do Complexo de Curado, da Penitenciária de Urso Branco, entre outros. Como o Brasil ratificou a CADH em 1992 e se submeteu à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998, se uma demanda for admissível, é potencialmente viável a sua submissão à jurisdição contenciosa da Corte IDH. Além disso, as sentenças da Corte Interamericana proferidas em face do Brasil são juridicamente vinculantes ao Estado, sendo que o conteúdo daquelas proferidas em face dos demais países também o são, em face do dever de exercer um “controle de convencionalidade”.

Em sua atividade jurisprudencial, a Corte Interamericana denominou de controle de convencionalidade a obrigação dos Estados de compatibilizar as normativas e políticas internas não apenas com as disposições da Convenção Americana, mas também com a interpretação atribuída pela Corte a esses direitos.

No caso Almonacid Arellano y otros Vs. Chile, pela primeira vez restou estabelecido que o Poder Judiciário dos Estados deve ter em conta não apenas o tratado, mas que deve também incorporar a interpretação assentada pela Corte IDH, uma vez que esta é a intérprete última da CADH.(9) Em Gomes Lund vs Brasil, a Corte foi além ao determinar que esse controle de convencionalidade deve ser realizado ex officio, pelos juízes e juízas locais,(10) independentemente da alegação das partes.

Já em Andrade Salmon vs Bolívia, o conceito se expandiu para estabelecer que o dever de efetuar o controle de convencionalidade é imposto a todas as autoridades do Estado (e não apenas aos juízes). Isso significa que os agentes do Estado têm a obrigação de seguir os tratados de direitos humanos e a sua interpretação tal como consolidada pela jurisprudência da Corte IDH. Tal fato decorre da obrigação imposta pelo art. 2 da CADH, que obriga os Estados, seus órgãos e agentes a adotarem medidas para compatibilizar o Direito interno com as obrigações internacionais assumidas sobre direitos humanos.(11) A Corte ainda foi além nesse caso, para, com base no princípio da subsidiariedade no sistema internacional, estabelecer que a responsabilidade internacional do Estado pode ser afastada quando este demonstrar ter incorporado os parâmetros interamericanos por meio do controle de convencionalidade.

Assim, o controle de convencionalidade se irradia para todas as esferas do Estado e exige um comportamento positivo dos mais diversos atores para implementar os critérios estabelecidos pela Corte Interamericana na proteção dos direitos consagrados. É nesse cenário que André de Carvalho Ramos(12) propõe que os direitos humanos devem ser protegidos por uma dupla garantia. A propósito, o autor compreende o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade internacional como esferas autônomas, motivo pelo qual os tribunais deveriam realizar um duplo controle. A partir dessa teoria, os atos internos devem se conformar não só ao teor da jurisprudência do STF, mas também ao teor da jurisprudência interamericana.

A mobilização de precedentes internacionais como estratégia jurídica e política

Com a consolidação dos tribunais regionais de Direitos Humanos (Corte Europeia, Corte Interamericana e Corte Africana), as experiências de análise de violações a direitos humanos demonstram que o Sistema de Justiça Criminal é uma fonte frequente de graves violações.

Conhecer os parâmetros interpretativos desenvolvidos por essas cortes é um caminho possível para repensar estratégias jurídicas e políticas que promovam maior proteção do indivíduo não só em face ao Estado, mas também nas relações entre particulares no âmbito do sistema penal.

A leitura dos precedentes internacionais não é uma tarefa fácil.(13) É importante se apoiar em ferramentas jurídicas para compreender a estrutura e lógica sobre a qual as sentenças da Corte IDH se constroem. A proposta da coluna “Cortes Internacionais e suas decisões comentadas” é fornecer subsídios que tornem mais acessível o contato com as decisões internacionais e, ao mesmo tempo, indicar caminhos possíveis para sua mobilização na prática por parte dos atores que atuam no campo das ciências criminais.

A partir das próximas edições, temas importantes relacionados à justiça criminal presentes na jurisprudência internacional serão objeto de reflexão de pesquisadores/as, atores do sistema de justiça e ativistas de direitos humanos. Pretende-se problematizar parâmetros jurídicos desenvolvidos por Cortes Internacionais para tratar de temas como tortura, proporcionalidade no uso da força, o papel da vítima no processo penal, os critérios para o uso das prisões cautelares nas Américas, o impacto da prisão nos direitos das mulheres, a expansão dos métodos ocultos de investigação, entre outros. Um enfoque especial será dado ao sistema regional interamericano, diante das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro e da importância de se ampliar a realização do controle de convencionalidade por parte não só dos atores estatais, mas também da sociedade civil.

Por meio deste espaço, busca-se difundir a jurisprudência internacional, com o objetivo de propiciar a sua propagação, incorporação nas argumentações internas e oxigenação de antigos debates, que ainda permanecem muito relevantes. Acreditamos que é possível pensar as ciências criminais a partir de uma perspectiva de direitos humanos e convidamos a todas/os as/os associadas/os a fazer essa reflexão de forma coletiva.

Notas

(1) CNJ. Resolução 213/2015. Disponível em: . Acesso em: 21 de mai. 2019.

(2) Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Ecuador. Mérito, Reparações e Custas. Série C, n. 129, 2005; Caso Cabrera Gacia e Montiel Flores vs. México. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Série C, n. 2016, 2010.

(3) Caso Gonzalez e outras (“Campo Algodonero”) vs México. Exceções Preliminares, Fundo, Reparações e Custas. Série C, n. 205, 2009 .

(4) A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos não é apenas marcada pelo estabelecimento de parâmetros de proteção dos direitos humanos das pessoas em contato com a justiça criminal. A interpretação dos direitos da CADH pela Corte é permeada pela obrigação dos Estados em garantir o acesso à justiça e à verdade, inclusive na seara penal, como mecanismo de reparação e proteção dos direitos humanos das vítimas, afastando a prescrição e a coisa julgada em casos de graves violações de direitos humanos, a exemplo dos casos relacionados ao contexto ditatorial latino-americano. Para uma discussão aprofundada, ver LIMA, Raquel da Cruz. O direito penal dos direitos humanos: paradoxos no discurso punitivo da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 1. ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2018. 210 p. Essa discussão será aprofundada nas próximas edições do Boletim.

(5) CNJ. Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok). Brasília, 2016. Disponível em: . Acesso em: 21 mai. 2019.

(6) STF. Habeas Corpus n. 143.641, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, jul. 20/02/2018. Disponível em: . Acesso em: 21 mai. 2019.

(7) Corte IDH. Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Série C, n. 345, 2018. Ver também: Carvalho Ramos, André; Machado, Isabel Penido de Campos. Atos de violência pela polícia contra a população civil violam direitos humanos. Conjur, 17 mar. 2018. Disponível em: . Acesso em: 21 mai. 2019.

(8) Além do sistema de petição individual, a CADH prevê em seu artigo 41 uma série de competências à Comissão Interamericana para promover a observância e a defesa dos direitos humanos, como formular recomendações aos governos dos Estados membros, quando considerar conveniente, preparar estudos e relatórios, além das possibilidades de visitas in locu, conforme prescreve o Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de 2013.

(9) Corte IDH. Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Série C n. 154, 2006, par.124

(10) Corte IDH. Caso Gomes Lund y otros (Guerrilha do Araguaia) Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Série C n. 219, 2010, par. 176

(11) Corte IDH. Caso Andrade Salmón Vs. Bolivia. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 1 de diciembre de 2016. Série C n. 330, par. 93.

(12) Carvalho Ramos, André de. O Supremo Tribunal Federal Brasileiro e os Tratados de Direitos Humanos: O “Diálogo das Cortes” e a Teoria do Duplo Controle. In: Figueiredo, Marcelo; Conci, Luiz Guilherme Arcaro (coord.); Gerber, Konstantin (org). A jurisprudência e diálogo entre tribunais: a proteção dos direitos humanos em um cenário de constitucionalismo multinível. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 1-40.

(13) Rodriguez Rescia, Víctor. Las sentencias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos: guía modelo para su lectura y análisis. IIDH: San Jose, 2009.

Isabel Penido de Campos Machado
Doutoranda em Direito Internacional pela USP.
Defensora Pública Federal.
Atualmente exerce o mandato de Defensora Pública Interamericana (2016-2019).
isabelpcmachado@gmail.com

Surrailly Fernandes Youssef
Mestranda em Direito Internacional Público pela USP.
Fundadora do projeto Transmissão Direitos Humanos.
surrailly@gmail.com



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