INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 317 - Esp. Pac. Anticrime





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

O uso do bem apreendido e a lógica empresarial na polícia

Autor: Andrey Henrique Andreolla

O denominado Projeto de Lei Anticrime, elaborado pelo atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, foi organizado tendo como objetivo a instituição de medidas e alterações em determinadas leis visando o combate à corrupção, ao crime organizado e aos crimes praticados com grave violência à pessoa. Dentre as mudanças sugeridas, uma delas busca o aperfeiçoamento na permissão do uso do bem apreendido pelos órgãos de segurança pública, sugerindo o acréscimo do artigo 133-A no Código de Processo Penal.

Referido artigo possui o viés de, constatado o interesse público, permitir ao juiz autorizar o uso do bem sequestrado, apreendido ou sujeito a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública, a fim de auxiliar em suas atividades de prevenção e repressão a infrações penais. Em seus parágrafos, dá prioridade de posse aos órgãos que realizaram a constrição do bem, bem como permite a sua transferência definitiva, quando transitada a sentença penal condenatória, com a decretação de perdimento. À primeira vista, tal medida parece ensejar um fortalecimento aos órgãos de segurança pública, os quais teriam um acréscimo de armas, veículos e outros subsídios que, por vezes, poderiam ser de boa qualidade, para atuarem no combate ao crime; por outro lado, uma história parecida já ocorreu na América do Norte, e os resultados não foram aqueles que se esperavam previamente à implantação do projeto.

Como se sabe, os Estados Unidos da América, em especial a partir da década de 60, viveram um intenso período de combate às drogas consideradas ilícitas,(1) tanto é que tais psicoativos foram declarados, pelo então presidente norte-americano Richard Nixon, os  primeiros inimigos da América – o que o levou a manifestar a famosa declaração de guerra às drogas, em 1971.(2) Desde então, pode-se dizer que naquele país criou-se um estado de guerra permanente, em face de cada um dos cidadãos do próprio país.(3) Alimentava-se a ideia de um inimigo também permanente, e o modo pelo qual os norte-americanos passaram a governar, utilizando-se do medo e do crime,(4) moldou toda a política criminal do país, bem como repercutiu seus efeitos nas instituições, no sistema carcerário e na segurança pública daquela nação.

Como consequência dessa guerra contra o crime e, em especial, contra as drogas, várias medidas foram colocadas em prática a fim de endurecer a repressão penal.(5) Uma dessas medidas foi importante para o aumento na taxa de encarceramento: o governo Reagan concedeu aos órgãos estaduais e locais autoridade para se apropriar, para uso próprio e por meio de leis de confiscos, da grande maioria de valores e bens apreendidos na guerra às drogas, de modo que, repentinamente, os departamentos de polícia eram capazes de aumentar o tamanho de seus orçamentos substancialmente apenas tomando dinheiro, carros e casas de pessoas suspeitas de usar ou vender drogas; como a lei previa a possibilidade de apreender ativos de pessoas supostamente envolvidas com qualquer questão relacionada às drogas, sem que as próprias pessoas fossem processadas, culminava em uma espécie de lucro na aplicação da referida lei, pois, se tais ativos pudessem ser apreendidos dessa maneira, os órgãos estaduais e federais, bem como os departamentos de polícia, sempre teriam um interesse pecuniário na lucratividade e longevidade da guerra às drogas.(6)

Um personagem dessa guerra, o ex-xerife de Los Angeles, Robert Juarez, inclusive, foi enfático ao afirmar que, antes de entrar em ação, ouvia de seus superiores que a garantia do emprego era a própria apreensão de dinheiro oriundo do tráfico realizado nas ruas; em suas palavras, “a ganância tomou conta. Tínhamos passado de policiais a ladrões, e estávamos vivendo como eles”.(7) A sobrevivência dos órgãos de segurança pública dependia do que apreendiam nas ruas; logo, a apreensão se tornava atividade-meio pela qual a polícia deveria subsistir, funcionando em uma lógica de lucro que a transformava em uma empresa na busca por ganhos financeiros.

Nesse sentido, tendo em vista que a maior parte da população carcerária no Brasil é composta por pessoas relacionadas ao crime de tráfico de drogas,(8) não é de se estranhar que, caso seja aprovada a medida proposta pelo então ministro Sérgio Moro, esses números aumentem ainda mais. Em um país onde a maior parte dos presos são pessoas não-brancas, jovens e com baixa escolaridade,(9) há grandes chances de que o dinheiro e os bens apreendidos com referida parcela da população permaneçam nas mãos de quem efetuou a prisão, e de que virem fundamento para as ações dos órgãos apreensores. Seria uma espécie de teatro, no qual se acreditaria a possibilidade de constrição de bens e valores estar atuando para fortalecer o combate ao crime, mas, na verdade, apenas atuaria como uma lógica empresarial dos órgãos de segurança pública, que passariam a necessitar de maior quantidade de apreensões para basear o sucesso de sua atividade. Quem pagaria a conta, como sempre, seriam “aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos”,(10) e que continuariam a não dispor de outra alternativa senão servirem como atores em uma peça que é muito aplaudida pela população em geral, sem que, contudo, tenha um roteiro científico adequado a embasar suas ações.

Notas

(1)  Para uma melhor compreensão do tema, ver: Valois, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 2. ed., 3. reimp. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2017.

(2)  Como medidas anunciadas, estavam o investimento de centenas de milhões de dólares e pesquisas para produção de herbicidas, desenvolvimento de novos mecanismos de detecção de drogas, maior controle na alfândega, busca e responsabilização do traficante dentro e fora do país e tratamento compulsório a todos os usuários, além de todo um aparato militar para tratar do problema. TIME MAGAZINE. THE new public enemy nº 1. Disponível em: http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,905238-1,00.html. Acesso em: 16 mai. 2018.

(3)  Pavloski, Evanir. A instrumentalização da guerra em 1984 de George Orwell. Muitas Vozes, Ponta Grossa, v. 3, n. 2, p. 363-378/p. 377, 2014.

(4)  Importante, neste ponto, a visita à obra de Simon, Governing through crime: how the war on crime transformed American democracy and created a culture of fear. A chave para o entendimento do livro está no sentido de que, ao se governar tendo a guerra ao crime como referência, o modelo punitivo e vingativo torna-se uma espécie de técnica geral de governo, estendendo-se do Estado nacional à escola, invadindo o âmbito privado e as relações familiares, ameaçando a democracia, assim, em todas as suas instituições.

(5)  Ver Wacquant, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

(6)  Alexander, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Tradução: Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 112-133.

(7)  Freeway: crack in the system. Direção: Marc Levin. Nicarágua/EUA: Al Jazeera America, 2015 (103 minutos).

(8)  26% da população carcerária masculina e 62% da população carcerária feminina, conforme dados do INFOPEN de 2016. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Levantamento nacional de informações penitenciárias (INFOPEN). Atualização – Junho de 2016. Disponível em:   http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf. .

(9)  As mulheres, em sua grande maioria, estão na faixa etária de 18 a 34 anos, são negras (68%) e com baixa escolaridade (50% possuem o fundamental incompleto, 10% o completaram e 14% não concluíram o ensino médio), cfe. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Levantamento nacional de informações penitenciárias (INFOPEN MULHERES). Junho de 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf/view. Acesso em: 27 ago. 2018. Quanto aos homens, também em sua grande maioria estão na faixa etária dos 18 a 34 anos, são negros (64%), e com baixa escolaridade (51% não possuem o fundamental completo, enquanto que 14% o completaram e 15% não concluíram o ensino médio), cfe. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Levantamento nacional de informações penitenciárias (INFOPEN). Atualização – Junho de 2016. Disponível em:  http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf. Acesso em: 27 ago. 2018.

(10)  Bauman, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 57.

Andrey Henrique Andreolla
Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.
Graduado em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, Campus de Erechim.
Professor da Faculdade IDEAU de Getúlio Vargas (RS).
Advogado.
Andrey.henrique@live.com.



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040