INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 317 - Esp. Pac. Anticrime





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Editorial

Pacote anticrime: remédio ou veneno?

Infelizmente, estamos diante de mais um Projeto de Lei que pretende ‘reduzir a violência/criminalidade’ por meio do fetiche normativista (Binder), do efeito simbólico e sedante, da venda de uma ilusão: a de que aumentar penas, endurecer regimes e dar mais ‘efetividade’ ao processo penal (leia-se: utilitarismo e eficientismo punitivista) vai ‘resolver o problema da criminalidade’. Não é preciso fazer uma longa anamnese legislativa e política para ver que essa é uma fórmula fracassada. Incrivelmente, contudo, seguem a utilizá-la e – o que é pior – muita gente continua acreditando que isso realmente irá funcionar.

O Pacote do Ministério da Justiça – e assim deve ser pensado, ainda que convenientemente tenha sido desmembrado – inicia por uma arrogância sem igual: os diversos “novos” artigos foram apresentados ao público sem qualquer diálogo prévio com a academia e com a sociedade civil, sem justificativa ou mínima fundamentação. É o mais extraordinário exemplo de “solipsismo legislativo” (parafraseando Lenio Streck e toda a crítica fundada que faz ao “solipsismo judicial”). Inacreditavelmente, o Ministro Sérgio Moro parece pensar que sua obra é um “marco zero” de compreensão, na medida em que desconsidera completamente a existência de um Projeto de Código de Processo Penal que tramita há mais de 10 anos; desconsidera também o Projeto de Código Penal e seus substitutivos, e ainda ignora que existe um Projeto de Reforma da Lei de Execuções Penais aprovado desde 2017 pelo Senado, aguardando deliberação da Câmara dos Deputados.

É preciso advertir que se trata de “mais uma reforma pontual”, ainda que ambiciosa por sua extensão, em nosso tão combalido e retalhado ordenamento. No que toca ao Código de Processo Penal, todas essas reformas pontuais contribuíram para gerar uma “colcha de retalhos”, um Frankenstein jurídico, pois lhe falta coerência sistêmica, ainda que muitas reformas tenham sido elaboradas por comissões compostas por juristas bem intencionados. Não é esse o caso agora, já que não se conhece (se é que existe) a comissão que teria elaborado a proposta encampada em um ato individual pelo Ministro. De toda forma, obviamente, a boa intenção não bastaria. Reformas pontuais servem para manutenção da estrutura autoritária do Código de 1941, seja por conveniência, seja por não encontrarem força para rompê-la.

> A arrogância da proposta é tamanha que, já de largada , propõe-se a ‘resolver’ a complexa pendenga criada pelo STF no HC 126.292 – a famigerada e inconstitucional execução antecipada da pena – por meio de uma lei ordinária. Inacreditável! Mas isso não é algo isolado. O pacote repristina temas com inconstitucionalidade já reconhecida pelo STF, como a vedação à concessão de liberdade provisória (art. 310), já declarada inconstitucional no HC 104.339/SP. Na mesma linha de inconstitucionalidade está a proposta de novamente estabelecer o regime inicial fechado obrigatório, considerado inconstitucional no Agravo em RE 1.052.700 e na Repercussão Geral 972.
Talvez por isso o Ministro, ao apresentar seu Projeto, fez questão de dizer que buscava efeitos ‘práticos’ e não ‘agradar’ professores de processo penal, consciente de que qualquer professor de processo penal minimamente comprometido com a Constituição desconstruiria sua proposta. Mas esse recado também é sintomático (e novamente vêm a arrogância e o solipsismo) de que, para muitos juízes brasileiros, a academia e a doutrina são absolutamente desconhecidas ou despiciendas.

O projeto quer criar marcos interruptivos para evitar a prescrição. Ignora que, antes da prescrição, existe o direito de ser julgado em um prazo razoável (art. 5º, LXXVIII da CF), que se orienta por prazos significativamente inferiores aos prescricionais. O Brasil, por conveniência dos magistrados, adotou a “teoria do não prazo”; aproveitando-se da ausência de previsão legal sobre prazos fatais para os juízes, e somando-se à leniência sobre o controle dos prazos para a acusação, o cumprimento de prazos, na prática, é exigido apenas da defesa.  Uma alteração nos já longos prazos prescricionais, nesse contexto de absoluto descontrole sobre a duração do processo, permitirá que os processos demorem ainda mais. Ora, essa é uma fórmula surrada que, além de ir de encontro ao eficientismo pretendido, só gera mais demora jurisdicional.
Diversos são os pontos polêmicos e inadmissíveis, que vão muito bem tratados pelos autores dos artigos deste Boletim, mas existe ao menos um que constitui o “ovo da serpente”, perigoso e sedutor: o plea bargaining.

A ampliação dos espaços de consenso é uma tendência inexorável e necessária, diante do entulhamento da justiça criminal em todas as suas dimensões. Contudo, é preciso compreender que nosso sistema jurídico (civil law) impõe limites que não permitem a importação de uma negociação tão ampla e ilimitada no que se refere à quantidade de pena que se assemelhe ao plea bargaining norte-americano (common law). Uma negociação dessa magnitude representa o fim do processo penal, na medida em que legitima em larguíssima escala a aplicação de pena privativa de liberdade sem processo (o que é incontestavelmente inconstitucional). Nos Estados Unidos, “acordos” assim são realizados em mais de 90% dos casos. Significa dizer que nove de cada dez casos criminais são resolvidos com a aplicação de uma pena sem processo, sem contraditório e sem produção de provas.

Assim, acerca desse tema, o ponto nevrálgico é: qual o espaço de negociação que nosso sistema admite e tolera, sem prejuízo grave para a qualidade da administração da Justiça? É preciso pensar esse limite a partir da compreensão da nossa realidade social marginal e do estado de coisas inconstitucional que vige no sistema prisional. O plea bargaining no processo penal brasileiro pode se constituir como um perverso intercâmbio. Não é pouco provável que o acusador público, disposto a constranger e obter o acordo a qualquer preço (até por comodismo), utilize a acusação formal como um instrumento de pressão, solicitando altas penas e pleiteando o reconhecimento de figuras mais graves do delito, ainda que sem fundamento. A tal ponto pode chegar a degeneração do sistema que, de forma clara e inequívoca, o saber e a razão são substituídos pelo poder atribuído ao Ministério Público. O processo, ao final, é transformado em um luxo reservado a quem estiver disposto a enfrentar seus custos e riscos de sofrer a aplicação de penas duríssimas. Do contrário, o sistema negocial perde força, pois seu poder está exatamente na gestão de riscos. O problema é que o processo penal constitucional deve ser uma garantia para o cidadão e não uma aventura perigosa.

Schünemann critica o suposto princípio de consenso, frequentemente invocado para legitimar o modelo negocial, taxando-o de “eufemismo” por trás do qual se ocultaria uma sujeição do acusado à medida de pena pretendida pelo acusador, colocando-se a pessoa acusada em posição de submissão por meio da pressão exercida pela Justiça Criminal. É uma ficção desde o ponto de vista prático, conclui o autor. Não existe consenso ou voluntariedade, porque não existe paridade de armas. Existe uma submissão do acusado a partir de uma visão de redução de danos (para evitar o “risco” do processo). Existe semelhança com um “contrato de adesão”, onde não há liberdade plena e real igualdade para negociar, mas apenas de aceitar o que lhe é imposto ou arcar com as consequências de desejar exercer o direito ao devido processo legal.

Mais um questionamento: já foi elaborado um sério e profundo “estudo de impacto carcerário” da expansão do espaço negocial no Brasil? A expansão da possibilidade de concretização antecipada do poder de punir, por meio do reconhecimento falsamente consentido da culpabilidade, não representará um aumento significativo da nossa já gigantesca população carcerária?

Ao que parece, o Ministério da Justiça quer que legislemos primeiro, para vermos o que vai ocorrer depois. Nunca é demais lembrarmos que o plea bargaining levou os Estados Unidos a terem a maior população carcerária do mundo. Aliás, se a sujeição aos Estados Unidos parece ser uma tônica do atual governo, nos parece que seria o caso de copiarmos experiências positivas daquele país, e não as negativas. No que diz respeito às questões de Justiça e Segurança, não há por que apontarem-se os Estados Unidos como exemplo, já que aquele país, a par da incomensurável população prisional e expansão dos mecanismos penais de controle, mantém taxas proporcionais de homicídios que superam 500% aquelas de outros países com nível socioeconômico similar, como Alemanha, França, Itália, Coreia do Sul e Reino Unido.

Tal coerção apelidada de “acordo”, no Brasil, seria ainda muito mais grave que nos Estados Unidos, na medida em que o acusado ficará preso em um sistema prisional ainda mais violador de direitos que o norte-americano; e onde o risco de morte é real e concreto. Um dia de prisão cautelar no Brasil pode representar uma pena de morte, sem qualquer exagero.

Enfim, trata-se de um retrocesso que pode representar o fim do processo penal brasileiro e o agravamento não dimensionado do superencarceramento, especialmente dos clientes preferenciais do seletivo sistema penal. Em suma, cuida-se mais uma tentativa de dar respostas fáceis a problemas complexos por meio do punitivismo populista: penas mais graves, regimes mais duros e processo utilitarista. Como cantava o poeta Cazuza, vemos o “futuro repetir o passado”, sendo que o pacote do Ministro Moro, em resumo, não passa de um “museu de grandes novidades”.



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040