Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autor: Gustavo de Souza Preussler
1 Introdução
É muito comum, em períodos de comoção social, que as leis sejam mudadas, reformadas ou suprimidas. Também é uma percepção dos juristas, segundo Kirchmann, que são suficientes três palavras do legislador para transformar bibliotecas inteiras em papel de embrulho.(1) Entretanto, isso nem sempre ocorre.
O avanço jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal na área criminal, há algumas décadas, dava ao Direito certa estabilidade e segurança, em razão de sua função de Guardião das Promessas Constitucionais.(2) Há alguns anos, inicia-se uma escalada de instabilidade jurisprudencial. Se a jurisprudência, por muitas vezes, sofre o efeito backlash,(3) por outras vezes, a lei pode ser considerada propulsora dessa forma de agir. Isso ocorre porque muitas leis têm como pretensão a reafirmação de um posicionamento jurisprudencial, em especial na área criminal, mais repressivo do que ainda está em discussão, como é o caso da prisão em segunda instância, prisão em decorrência de condenação no júri e endurecimento de penas. São todas provenientes de uma forma de reação da coletividade diante de uma mudança política no nível jurídico , decorrente, em grande parte, da Operação Lava Jato.
Em fevereiro de 2019, o ex-Juiz Federal e atual Ministro da Justiça e Segurança Pública apresentou a proposta de Lei Anticrime. Seria ela uma reforma que visa à exteriorização de uma forma de agir do Poder Judiciário, em especial o STF? Ou estaríamos diante de um modo de isomorfismo reformista, onde muito se reforma e nada muda? Ou ainda, estaríamos diante de palavras que converterão bibliotecas inteiras de Direito em papel de embrulho?
O Projeto de Lei Anticrime tem os seguintes aspectos: (i) modificações processuais penais fundadas na eficiência; (ii) modificações penais fundadas na emergência; e (iii) processos de (des)criminalização.
O primeiro conjunto de modificações, ou seja, as (i) modificações processuais penais fundadas na eficiência, busca alcançar, no imaginário coletivo, uma percepção de eficiência e de que o processo penal não é uma forma de impunidade, como reproduzido pelo senso comum. É fundado na celeridade e, conforme a experiência estadunidense, poderá produzir maus negócios,(4) aumentando o encarceramento em massa e graves problemas quando se trata de contraditório e ampla defesa.
O segundo conjunto de modificações, ou seja, (ii) modificações penais fundadas na emergência, define os inimigos da sociedade em sentido lato: (ii.1) restrição à legitima defesa; (ii.2) endurecimento do sistema de penas aos ditos criminosos habituais; e (ii.3) um sistema de comportamento pós-delitivo positivo.
O terceiro e último conjunto de propostas pode ser organizado como (iii) processos de (des)criminalização. Amplia-se a repressão ao crime de resistência e criminaliza-se o caixa 2.
2 Modificações processuais penais e penais de emergência
2.1 Modificações processuais penais fundadas na eficiência
Um dos principais assuntos que permeia o imaginário coletivo é que a Justiça Penal brasileira não funciona. Os institutos responsáveis por essa percepção seriam o recurso e o direito de defesa do acusado. O projeto de Lei Anticrime deixa muito claros a demanda por ordem e o pensamento repressor, que encontra no sistema processual campo fértil ao seu desenvolvimento.
O primeiro tópico é a prisão em segunda instância, sem o trânsito em julgado, mesmo que pendente de Recurso Especial e Extraordinário. Os principais fundamentos foram decorrentes de decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Aqui fica claro o efeito backlash.
O Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus 126.292, admitiu a execução provisória da pena. Excluiu, assim, do conceito de trânsito em julgado, o processamento de recursos especial, extraordinário (recursos constitucionais). Posteriormente, o ingresso de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade teve como objeto o artigo 283 do CPP, buscando limitar a prisão em casos de flagrante delito, prisão preventiva/provisória e em decorrência de sentença transitada em julgado.
Outro fator de eficiênciaé a prisão decorrente da pronúncia e a execução imediata de condenações proferidas por Tribunal do Júri, ampliando a conceituação de prisão de decorrência em primeira instância.
O artigo 584, § 2.º da Lei Anticrime determina que “o recurso da pronúncia não tem efeito suspensivo”, gerando assim uma nova categoria, a de execução provisória sem pena.
O fundamento da construção do artigo 492, I, CPP, que determina a execução provisória da pena, tem precedentes no Supremo Tribunal Federal e fundamenta-se na soberania dos veredictos. Segundo a leitura constitucional (art. 5.º, LVII da Constituição Federal) e convencional (art. 8.º, “2” do Pacto de San José da Costa Rica), a execução provisória sem ou com pena é grave ofensa à garantia da presunção de inocência.
2.2 Modificações penais fundadas na emergência
2.2.1 Aspectos da legítima defesa extensiva no Brasil
Propõe o projeto, como uma das medidas do Direito Penal e emergência, a subtração do excesso extensivo na legítima defesa. Esclarece que “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo [23], responderá pelo excesso doloso ou culposo. § 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
A legítima defesa, segundo Hans-Henrich Jescheck e Thomas Weigend, refere-se a uma ação necessária para repelir um ato antijurídico atual e que resulte no menor resultado ofensivo ao agressor. Os limites da reação devem ter como premissa se são excessos intensivos e excessos extensivos. O disposto no § 2.º nada mais é do que uma cópia do § 33 do Código Penal Alemão, que diz que não será castigado se ultrapassa os limites da legítima defesa em decorrência de perturbação, medo ou pânico.(5)
De outro lado, exclui-se da situação de legítima defesa o excesso extensivo da defesa, resguardando, assim, a punição por crime doloso. É o exemplo em que o defensor repele o ataque com um disparo, mas realiza mais outros dois sobre o agressor que está indefeso e jogado no chão.(6)
2.2.2 Regime inicial fechado e delitos por tendência menos e mais graves
O projeto declara a necessidade de endurecimento das penas para determinados crimes considerados graves. Declara, em seus aspectos ideológicos, quem seriam os inimigos sociais, aplicando regime inicial fechado contra os denominados criminosos profissionais, reincidentes ou habituais.
Assim, deveria haver uma separação entre os tipos de criminalidade por tendência, dividindo-se entre criminalidade por tendência grave e criminalidade por tendência menos grave. Segundo Jorge Figueiredo Dias, os delitos por tendência menos grave são aqueles com pena superior a dois anos e praticados duas ou mais vezes. Já os delitos por tendência mais grave são aqueles em que o delito praticado concretamente acarretaria pena de prisão , ou seja, não sendo passível de sursis ou outro meio alternativo à prisão e que tivesse sido praticado quatro vezes. Essa observação do Direito Penal português poderia servir de parâmetro ao projeto para que pudesse readequar esse tipo de criminalidade habitual e o regime inicial de pena.(7)
2.2.3 Comportamento pós-delitivo e sua previsão no Projeto de Lei Anticrime
Comportamento pós-delitivo é aquele que tem uma previsão de atenuação ou não aplicação da pena se, em decorrência de ação do agente, após o cometimento do delito, contribui para a sua própria responsabilização criminal ou restabelecimento dos efeitos danosos de sua conduta.(8)
O Projeto de Lei Anticrime traz as seguintes hipóteses de comportamento pós-delitivo positivo: (i) confissão e colaboração em decorrência de acordo criminal (art. 395-A, CPP), com destaque para a atuação do colaborador, que poderá ter sua pena diminuída até a metade ou ter sua pena substituída por restritiva de direitos; (ii) solução negociada na Lei de Improbidade Administrativa, matéria estranha à natureza penal e que constitui, na verdade, meios coativos análogos ao sistema de justiça criminal;(9) e (iii) reparação do dano à vítima (art. 28-A, inciso I do CPP).
A reparação do dano, apesar de prevista no instituto Ação Civil ex Delicto, agora ganha roupagem de verdadeiro comportamento pós-delitivo positivo. Em microssistemas também inspirados pelo Direito germânico continental, o sistema de reparação é uma forma de terceira via da punição e está, assim, ao lado da pena de prisão e medida de segurança, formando um sistema que integra processo penal e Direito Penal, em que a reparação do dano por acordo (comportamento pós-delitivo) terá suas repercussões na aplicação da pena.(10)
3 A crítica à retirada da criminalização do Caixa 2 em campanhas
Enuncia o projeto a sua finalidade: “Esta Lei estabelece medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa”.
Não há lei penal que seja a favor do crime; existem, sim, formas de condutas de legisladores que têm como intuito não criminalizar determinados comportamentos delituosos graves, como o Caixa 2 em campanhas eleitorais, como mostra da retirada de tal medida do projeto original da Lei Anticrime.
O governo resolveu retirar do pacote a criminalização de recebimento de doações de campanha não declaradas. Passa, assim, a tramitar em separado a respectiva proposta, com óbvia redução de sua importância, ao declarar para a imprensa que o Caixa 2 não é um crime tão grave.(11) Há dois anos, o Ministro, então na condição de juiz federal, pensava de outra forma, como mostra a seguinte citação: “O juiz Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato em Curitiba, afirmou neste sábado, em uma palestra para estudantes brasileiros na Universidade de Harvard, que a corrupção para financiamento de campanha é pior que o desvio de recursos para o enriquecimento ilícito”.(12)
O comportamento do Ministro da Justiça evidencia uma seletividade política de tipos penais que têm funções específicas no processo de criminalização de determinados políticos.
Considerações Finais
O projeto de Lei Anticrime não é um isomorfismo reformista, no qual muito se reforma, mas nada se modifica; pelo contrário, legitima toda uma jurisprudência autoritária, como é o caso de prisões sem pena ou condenação não transitada em julgado.
Não se pode afirmar que o Projeto de Lei Anticrime também seja capaz de transformar bibliotecas inteiras de Direito e processo penal em papel de embrulho. No entanto, há evidente demolição de diversos princípios constitucionais, como a presunção da inocência, a individualização da pena e até mesmo a ruptura de alguns postulados éticos, como é o caso da recompensa ao whistleblower.
As notas acima apontam para um estado emergencial das coisas. Cria-se um processo penal despreocupado com a presunção da inocência e um Direito Penal obcecado pela punição a todo curso, permeada de referência aos demônios sociais e aos pânicos morais da sociedade, representados, em especial, pelos corruptos.(13)
O Projeto da Lei Anticrime faz o sistema punitivo retroceder no tempo, em verdadeiro efeito backlash, em que legitima todo um imaginário coletivo que busca, acima de tudo, a repressão penal.
Notas
(1) apud Morillas Cueva, Lorenzo. Metodologia y ciencia penal. Granada: Universidade de Granada, 1990. p. 262.
(2) Garapon, Antoine. O juiz e a democracia:O guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
(3) Backlash é o forte sentimento de um grupo de pessoas em reação às mudanças recentes na sociedade e na política. Fica claro o efeito backlash após a Operação Lava Jato.
(4) Michelle Alexander denomina de “mau negócio” os acordos criminais fixados no sistema da plea bargain. Um dos principais motivos é porque tais acordos escondem, dentro de sua estrutura, uma forma de reprimir os mais pobres e negros (Alexander, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 143).
(5) Jescheck, Hans-Henrich. Tratado de Derecho Penal: parte general. Granada: Comares, 2002. p. 527-528.
(6) Idem, ibidem, p. 530.
(7) Dias, Jorge Figueiredo. Direito Penal Português: As consequências do Crime. Coimbra: Editora Coimbra, 2005. p. 564.
(8) Faraldo Cabana, Patricia. El fundamento de la exención de pena por la realización de comportamientos posdelictivos positivos: las causas de levantamiento de la pena. Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal. Buenos Aires, v. 7, n. 11, p. 337-382, p. 338-339, 2001.
(9) Roxin, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. La estructura da teoria del delito. Madrid: Thompson/Civitas, 2008. p. 75.
(10) Sobre o modelo integral de sistema penal: Wolter, Jürgen. Estudio sobre la dogmática y la ordenación de las causas materiales de exclusión, del sobreseimiento del proceso, de la renuncia a la pena y de la atenuación de la misma: estructuras de un sistema integral que abarque el delito, el proceso penal y de la determinación de la pena. In: Wolter, Jürgen (ed.); Freund, Georg. El sistema integral del derecho penal: delito, determinación de la pena y proceso penal. Madrid: Marcial Pons, 2004.
(11) Batista, Henrique Gomes. Nos EUA, Moro diz que Caixa 2 é pior do que corrupção. O Globo, Rio de Janeiro, 08 abr. 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/nos-eua-moro-diz-que-caixa-2-pior-do-que-corrupcao-21183122. Acesso em: 26 fev. 2018.
(12) Idem, ibidem.
(13) Cohen, Stanley. Demonios populares y pânicos morales.Barcelona: Gedisa, 2017.
Gustavo de Souza Preussler
Doutor em Direito pela UERJ e mestre em Ciência Jurídica pela UENP.
Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da UFGD.
guspreussler@hotmail.com
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