Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autores: Priscila Akemi Beltrame e Yuri Sahione
A figura do whistleblower vem sendo inserida em diversos ordenamentos jurídicos como uma forma de aprimorar os mecanismos de conhecimento, pelas autoridades, das infrações cometidas contra interesses públicos, contribuindo para uma cultura transparente e responsável no ambiente de trabalho.(1) Ao se permitir a figura do informante, confia-se que serão aprimorados os mecanismos internos de prevenção de violações às leis, resultando em limitação do risco de dano patrimonial decorrente de sanções pecuniárias e reputacional da organização. No Reino Unido, após o Public Disclosure Act de 1998,(2) instrumentos de proteção ao whistleblower induziram o aprimoramento dos processos internos de empresas para conhecimento dos possíveis desvios, a fim de que medidas preventivas fossem adotadas antes que estes se tornassem públicos. O outro modelo é o norte-americano, inserido pelo Whistleblower Protection Act, de 1989, sendo mais conhecido o programa criado pela Securities and Exchange Commission a partir do Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act,(3) de 2010, em resposta aos escândalos financeiros de 2008.
O whistleblower corresponde ao informante que leve ao conhecimento da autoridade pública o relato de indícios da ocorrência de uma infração contra interesse público, garantindo sua não retaliação, anonimato e, quando da apuração do fato resultar em recuperação de ativos aos cofres públicos, o recebimento de uma porcentagem do valor a título de recompensa.(4) Como se vê, a prática desafia diversas regras do nosso ordenamento, sendo as principais a vedação ao anonimato e a criação do incentivo por meio de recompensa para uma atuação que seja em benefício da sociedade. Conforme Ragués Vallès, “en los países citados el término whistleblower parece emplearse exclusivamente para los casos en que el delator es o ha sido empleado de una empresa o de la administración, no tanto cuando pertenece a una organización per se delictiva, como puede ser una banda terrorista o de narcotraficantes”.(5) Em função da complexidade das organizações empresariais, deve-se avaliar o grau de culpabilidade do whistleblower para que não seja premiado, por exemplo, quem seja o principal responsável hierárquico, gerencial ou técnico pela prática denunciada.
A expressão “informante do bem” não deve prevalecer. É comezinho que a lei não deva ter palavras inúteis e muito menos tendenciosas. O uso de um termo que adjetiva a qualidade do informante revela recurso retórico binário para reforçar a imagem do que se é, no intuito de acusar para proteger o interesse público – que é “ do bem ” . A qualidade da informação deverá ser apurada em processo específico; por esse motivo, qualificar o emissor da informação como “do bem” é nomear antes de se saber se ela é verdadeira, útil ou não para o processo .
A previsão do “informante do bem” (nomenclatura que repudiamos) pode ser acolhida por nosso ordenamento dentro de uma técnica que melhor se compatibilize com nosso sistema jurídico e, principalmente, respeite as garantias processuais de todos os envolvidos. Os melhores anseios de fortalecer os instrumentos de investigação de crimes corporativos não podem justificar as violações ao nosso sistema de garantias.
A proposta de alteração da Lei 13.608/2018 para a inserção do whistleblower não é a melhor forma de previsão de uma figura complexa e que requer uma sistematização mais robusta. Essa lei, de apenas seis artigos, prevê que as empresas de transporte terrestre que operam sob concessão deverão exibir em seus veículos a expressão “Disque Denúncia” e que os Estados ficam autorizados a estabelecer serviço de recebimento de denúncias por telefone, assegurando o “sigilo dos seus dados” e que pode prever um sistema de “recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, repressão ou apuração de crimes ou ilícitos administrativos”.
Tem-se, portanto, que, pela dimensão e complexidade da regulação que a inserção do whistleblower encerra, a norma deveria ser mais detalhada e inserida num corpo legislativo mais robusto do que numa norma de escopo tão reduzido, dando à lei uma dimensão que ela não possuía originalmente.
A previsão do whistleblower não deve deixar de tratar de aspectos essenciais, como o procedimento especial para apuração da razoabilidade do relato, requisitos do relato, situações específicas de revelação da identidade do informante (a SEC, por exemplo, prevê que, em processos administrativos ou judiciais, podem ser produzidos documentos que terão que revelar a identidade(6)). Da mesma forma, o relato não deve ser apenas “razoável”, mas original, voluntário (ou seja, não decorrente de um dever regulatório), verossímil diante da qualidade e pertinência dos dados apresentados.
Quanto à perspectiva do sigilo dos dados do informante, há que restar incontroverso que qualquer decisão condenatória com base no relato somente poderá ser prolatada havendo levantamento do sigilo da identidade do informante e permitindo o contraditório, sob pena de perda do valor probatório da prova.
Seguindo a mesma lógica, na hipótese de deferimento de medidas cautelares preparatórias fundamentadas no relato do informante, o exercício do contraditório diferido deve contemplar conhecer a identidade do informante e demais dados do seu relato, sob pena de se perder o controle judicial sobre a prova, abrindo-se a porta para a introdução de provas ilícitas sob o manto da proteção do anonimato.
Na perspectiva das empresas brasileiras, especialmente considerando o grau de maturidade organizacional – a maioria das estruturas empresariais ainda é familiar –, a figura do whistleblower tal como proposta poderá servir de complicador para a evolução de seus programas de integridade. De um lado, há muitas empresas que possuem estruturas voltadas para receber denúncias e remediá-las; do outro, uma pessoa pode não querer usar o canal interno, mas ir diretamente ao Poder Público fazer uma denúncia em troca de recompensa.
A recompensa tem que representar estímulo à denúncia, mas também um certificado de incompetência do programa de integridade empresarial – especialmente dos mecanismos de detecção e remediação de ilícitos – sob pena de se criarem canais simultâneos que concorrem de forma desleal (com e sem recompensa). Portanto, é fundamental que a denúncia somente possa ser recompensada depois de ser minimante demonstrado que o assunto foi levado ao conhecimento dos canais internos da empresa e foi negligenciado.
Importante observação que deve ser feita é quanto à falta de participação do Ministério Público, especialmente quando o informante receberá imunidades legais. Há que se buscar uma racionalidade entre a recompensa e a eventual obrigação de reparação do dano ao erário quando o informante houver concorrido.
A participação do MP também se justifica para que o indivíduo não opte pela prática do whistleblower quando lhe assistiria apenas instrumentos colaborativos mais rigorosos, como a colaboração premiada, em que a concessão de imunidades tem sido duramente questionada.
Por fim, deve-se prever que o whistleblower deverá ser assistido por advogado, diante da gravidade das consequências para si e para os envolvidos no relato, inclusive para acompanhamento do procedimento de avaliação dos requisitos da informação (razoabilidade, originalidade, espontaneidade) e do informante (relação dele com o fato narrado). Nesse particular, a assistência deveria ser obrigatória quando do ato de prestar as informações à Administração Pública.
A proposta legislativa é meritória por avançar na regulação do tema, mas se lamenta o açodamento na sua apresentação. Ao se apresentar um projeto inédito, incompleto e inacabado no bojo de um pacote que discute temas completamente diferentes entre si, corre-se o risco de aprovar a figura do informante e criar grande desordem no sistema jurídico de combate aos delitos contra a Administração Pública.
Notas
(1) Também presente em diversos instrumentos internacionais de combate à corrupção, como as diversas recomendações da OCDE para melhoria da ética no setor público (1998, 2003, 2009) e no G-20 Anti-Corruption Working Group, que apoiaram o documento da OCDE intitulado Guiding Principles for Whistleblower Protection Legislation.
(2) Disponível em: <https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1998/23/contents>. Acesso em: 28 fev. 2019.
(3) Disponível em: <https://www.govinfo.gov/content/pkg/PLAW-111publ203/html/PLAW-111publ203.htm>. Acesso em: 28 fev. 2019.
(4) Conforme o modelo do programa da Securities and Exchange Commission, previsto pelo Dodd-Frank Act.
(5) RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. “¿Héroes o traidores? La protección de los informantes internos (whistleblowers) como estrategia político-criminal”. Dret, n. 3, 2006. Disponível em: http://www.indret.com/pdf/364.pdf. Acesso em: 28 fev. 2019.
(6) Conforme §240.21F-7, Confidentiality of submissions. Disponível em: <https://www.sec.gov/about/offices/owb/reg-21f.pdf#nameddest=21F-7>. Acesso em: 26 fev. 2019.
Priscila Akemi Beltrame
Doutora em Direito Penal e mestra em Direitos Humanos.
Coordenadora do Departamento de Direito Penal Econômico e Compliance do IBCCRIM.
Advogada.
pb@bslaw.com.br
Yuri Sahione
Mestre em Direito pela UERJ.
Presidente da Comissão Permanente de Estudos sobre Compliance do CFOAB.
Advogado.
yuri@sahione.com
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