Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autor: Patrick Cacicedo
O Projeto de Lei “Anticrime” apresentado pelo Ministro da Justiça ao Congresso Nacional prevê uma série de reformas da legislação penal, tendo como um dos eixos a execução penal. As denominadas “medidas para endurecer o cumprimento das penas”, no entanto, partem de premissas equivocadas, contêm erros legislativos grosseiros e propostas já declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. O resultado, em caso de aprovação, será uma drástica piora naquele que é o ambiente mais degradante e violador de direitos humanos em nosso país.
Há três décadas, o sistema penitenciário brasileiro sofre com um aumento populacional sem precedentes em nossa história, o qual vem acompanhado de sensível piora nas condições de aprisionamento. O processo de encarceramento em massa que vive o Brasil e suas deletérias consequências deveriam pautar todos os projetos de reformas penais com responsabilidade constitucional; afinal, o quadro que se apresenta contrasta com os objetivos fundamentais de República ao reproduzir as desigualdades sociais, a marginalização e a pobreza, além de promover preconceitos, especialmente o de raça, e violar de forma cada vez mais acentuada a dignidade humana.
No Projeto “Anticrime”, contudo, as premissas são outras. Velhas ideias permeiam novas velhas propostas. Embora o projeto tenha sido apresentado sem qualquer tipo de exposição de motivos, de seu conteúdo é possível extrair que o movimento político criminal que o fundamenta é muito próximo àquele que resultou na edição da Lei de Crimes Hediondos.
Se em 1990, quando a referida lei foi editada, o Brasil contava com 90.000 pessoas presas, hoje esse número supera 700.000, em grande medida por conta desse mesmo diploma legislativo, um dos motores do processo de encarceramento em massa das últimas três décadas. A Lei de Crimes Hediondos, com efeito, endureceu o cumprimento de penas no Brasil com medidas de inédita crueza, basta lembrar que, da sua edição até fevereiro de 2006, os condenados por crimes hediondos e equiparados cumpriam a pena em regime integralmente fechado, ou seja, sem progressão de regime. A declaração de inconstitucionalidade da medida pelo Supremo Tribunal Federal demorou mais de uma década e meia, quando as prisões brasileiras já ultrapassavam quatro centenas de milhares de presos.
O Projeto “Anticrime” apresentado parte das mesmas premissas político-criminais que motivaram a edição da Lei de Crimes Hediondos, tanto que suas principais propostas modificam justamente essa lei, recrudescendo-a ainda mais. Tais premissas não passam pelo custo humano do encarceramento em massa e do degradante ambiente de cumprimento de pena no Brasil, mas partem justamente das ideias que levaram a esse descalabro: a pena no Brasil é branda e somente seu endurecimento seria capaz de reduzir os índices de criminalidade.
Se a noção de redução da criminalidade por meio do endurecimento das leis penais já foi exaustivamente rechaçada tanto pelos estudos acadêmicos quanto pela experiência histórica dessa receita no Brasil nas últimas três décadas, a ideia de que as penas são brandas demonstra total desconhecimento da realidade da execução penal brasileira. Conforme já apontado pelo Conselho Nacional de Justiça, o funcionamento da maior parte das varas de execução penal é verdadeiramente caótico,(1) o que leva os pedidos de efetivação de direitos demorarem meses ou anos para serem analisados. A ideia de que as pessoas progridem de regime após o cumprimento de um sexto, lapso que não pode ser considerado curto diante das condições em que a pena é cumprida, não se verifica na realidade concreta.
No plano concreto da execução penal, o que ocorre é a alteração dos prazos definidos em lei pelo sistema de justiça. A progressão de regime, por exemplo, é concedida muito após um sexto do cumprimento da pena, no caso de crimes não hediondos – sendo mais frequente até mesmo que ocorra após um terço, marco do livramento condicional para condenados primários. O livramento condicional, por sua vez, por ter lapso temporal maior, na maioria dos casos sequer é analisado antes do cumprimento da pena. O mesmo ocorre com os crimes hediondos ou equiparados, que, por terem lapsos temporais maiores, acabam sendo analisados em data muito próxima do término da pena. O endurecimento dessas frações legais ocasionaria, por via transversa, o retorno normativo do inconstitucional cumprimento de pena em regime integralmente fechado, pois a pena se esgotaria antes que o juiz consiga analisar qualquer dos direitos da execução penal. Infelizmente, o sentido do projeto não é outro.
Nas “medidas para endurecer o cumprimento das penas”, o projeto faz alterações na Lei de Crimes Hediondos para, uma vez mais, endurecer a execução da pena desses crimes e seus equiparados. O projeto aumenta para 3/5 o lapso temporal para progressão de regime nos casos em que houver a morte como resultado, o mesmo lapso que é usado atualmente para reincidentes. Além disso, subordina a progressão de regime de todos os crimes hediondos à “constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir”, o que equivale, na prática, ao retorno obrigatório do exame criminológico. Ainda, o projeto veda a saída temporária para presos no regime fechado, salvo as permissões de saída e audiências no fórum; e no regime semiaberto, salvo permissões de saída e para trabalho e estudo.
A primeira proposta investe no mesmo motivo que levou à criação da própria Lei de Crimes Hediondos: endurecer o cumprimento de penas para reduzir a criminalidade. Trata-se de alteração inconveniente diante de um quadro de colapso do sistema penitenciário, sem que se tenha qualquer garantia de prevenção do delito, como apontado acima. Já a proposta de submeter a progressão de regime ao exame criminológico representa um retrocesso verdadeiro. O exame é criticado pela comunidade científica diante de sua inutilidade como forma de aferir comportamentos futuros. Além disso, atrasa sobremaneira a concessão de progressão de regime, que já é comumente concedida muito tempo depois do que é previsto em lei. Por mais que o Supremo Tribunal Federal, na súmula vinculante 26, permita a sua realização, o que é criticável, o projeto de lei o torna obrigatório, agravando a questão.
Além disso, o projeto comete erro grosseiro ao tratar da saída temporária. Em primeiro lugar, confunde a saída temporária, espécie, com a autorização de saída, gênero. De outro lado, proíbe a saída temporária no regime fechado, o que nunca foi permitido por lei, já que o instituto é exclusivo do regime semiaberto, o qual, no projeto, fica limitado a saídas para trabalho e estudo, vedando a visita à família. Para além do erro grosseiro de limitar algo que não existe no regime fechado, sua alteração no regime semiaberto tem o propósito de equiparar os regimes, uma vez que a diferença mais substancial entre eles é justamente a possibilidade de saídas temporárias para visita à família. O sistema progressivo de cumprimento de pena resta violado por via transversa.
Outra previsão do projeto é a imposição de regime inicial fechado em algumas hipóteses, como “no caso de condenado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional”, salvo em caso de insignificância da conduta ou “reduzido potencial ofensivo”. Além disso, nos crimes de peculato doloso, corrupção passiva (caput e § 1º) e corrupção ativa, salvo se de pequeno valor a coisa apropriada ou a vantagem indevida ou se as circunstâncias do art. 59 forem favoráveis. Por fim, o regime será inicialmente fechado também em caso de roubo com emprego de arma ou explosivo, bem como se do roubo resulta lesão corporal grave (art. 157, §2º A e §3º, I).
No entanto, a previsão de regime inicial obrigatoriamente fechado a priori fere o princípio constitucional da individualização da pena, conforme jurisprudência consolidada do STF, que no HC 111.840 declarou inconstitucional norma que previa a obrigatoriedade de regime inicial fechado em crimes hediondos. Assim, tais propostas são inconstitucionais.
A maior inovação do projeto, com efeito, foi prever no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de o juiz fixar na sentença penal condenatória um período mínimo de cumprimento de pena no regime inicial. O projeto não traz balizas temporais, o que dá total arbítrio ao juiz para fixar o período que bem determinar. O único critério a ser observado pelo juiz são as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal.
A previsão, no entanto, viola o princípio da legalidade. Permite que o juiz, sem critérios claros, decida, por exemplo, que, em uma condenação de 6 anos por um determinado crime, a pessoa só possa progredir de regime após 5 anos e meio de cumprimento de pena. Dadas as circunstâncias fáticas da execução penal com a notória lentidão de análise de pedidos de progressão de regime, cria-se o poder de determinar o regime integralmente fechado, também já declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Além disso, as regras que regem a execução penal no Brasil obedecem o princípio da legalidade em todos os seus aspectos, de modo que devem ser prévias à prática do delito, para que se saiba de antemão a forma de cumprimento da pena. Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça ao editar a súmula 471; e do Supremo Tribunal Federal na súmula vinculante 26. Assim, a proposta em tela viola o princípio da legalidade ao conferir poderes discricionários para o juiz decidir, após a prática do delito, as regras que determinarão a execução da pena.
Por fim, o projeto propõe a alteração da Lei 12.850/13, para que lideranças de organizações criminosas armadas ou que tenham armas à sua disposição iniciem o cumprimento de pena em estabelecimentos penais de segurança máxima. Além disso, o condenado por integrar organização criminosa não poderá progredir de regime, receber livramento condicional ou qualquer outro “benefício” prisional enquanto houver elementos que indiquem a manutenção do vínculo associativo.
Por ser o estabelecimento penal de segurança máxima próprio do regime fechado (art. 33, § 1º, I, do Código Penal), a primeira alteração, por via transversa, impõe o regime inicial obrigatoriamente fechado para o caso previsto, o que recai em inconstitucionalidade por violar a individualização da pena, conforme apontado acima (HC 111840 – STF). Por outro lado, a vedação de progressão de regime, livramento condicional e outros direitos da execução penal implica a igualmente inconstitucional imposição de regime integralmente fechado, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal no HC 82.959. Ademais, há violação ao princípio da legalidade e da presunção de inocência na mera indicação de vínculo com associação criminosa, sem necessidade de efetiva prova do fato.
O Projeto “Anticrime” promete em seu nome o que não pode cumprir. Na execução penal, nenhuma de suas medidas se sustenta, seja por inconveniência, inconstitucionalidade ou mesmo equívoco legislativo típico de projeto elaborado sem o devido debate e participação democrática. Diante de suas fragilidades e de seus propósitos, não resta outro destino ao projeto senão a rejeição integral de suas propostas para a execução penal.
Nota
(1) Cf. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. 2012.
Patrick Cacicedo
Doutorando e mestre em Direito Penal pela USP.
Defensor Público do Estado de São Paulo.
patrickcacicedo@gmail.com
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