INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 317 - Esp. Pac. Anticrime





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Delinquente habitual, por tendência e profissional no projeto “anticrime”: em algum lugar do passado

Autor: Leonardo Isaac Yarochewsky

1 O princípio da culpabilidade

O princípio da culpabilidade, no Direito brasileiro, encontra-se de maneira implícita abrigado, em nível constitucional, no artigo 1º, inciso III (dignidade da pessoa humana),(1) corroborado pelo artigo 4º, inciso II (prevalência dos direitos humanos), e artigo 5º, caput (inviolabilidade do direito à liberdade), todos da Constituição da República.

Na concepção atual do Direito Penal, inscrito no Estado Democrático de Direito e comprometido com os valores fundamentais da pessoa humana, não há como negar que os princípios de um Direito Penal garantista estão, de uma forma implícita ou explícita, assegurados na Constituição da República. Assim, uma vez reconhecido o princípio da culpabilidade como um dos princípios constitucionais, necessário verificar a compatibilidade do projeto “anticrime” apresentado pelo atual ministro da Justiça ante os princípios constitucionais, notadamente o princípio da culpabilidade.

Sem embargo das diversas concepções ou teorias acerca da culpabilidade, teoria psicológica e teorias normativas, está assentado atualmente no Direito Penal a responsabilidade pela prática de fatos (Direito Penal do fato) comissivos ou omissivos, afastando-se igualmente qualquer responsabilidade pelo modo de ser do agente, fundada no modo de vida ou no caráter (Direito Penal do autor). Sendo certo que o agente somente poderá ser punido por sua conduta e jamais pelo que ele é ou deixa de ser.

Destaca-se que, em razão do princípio “nullum crimen sine culpa”, a culpabilidade pela conduta de vida do agente vai de encontro ao Direito Penal do fato e, portanto, deve também ser rechaçada.

Punir uma pessoa pelo que ela é (quia peccatum) e não pelo que fez (quia prohibitum)  é, segundo Salo de Carvalho, abandonar “as amarras impostas pelos princípios da secularização e da legalidade (mala prohibita) no que tange ao aumento da pena, substituindo-os por valorações potestativas de cunho subjetivo na reconstrução da personalidade de autor rotulado como intrinsecamente mau (mala in se)”. (2)

Assim, no Direito Penal que se pretende minimamente comprometido com a dignidade do ser humano e com os postulados do Estado Democrático de Direito, tem-se um Direito Penal do fato – descrição de modelos de condutas proibidas – que considere também o autor, sem, contudo, descrever tipos de autor.  No dizer de Toledoo direito penal moderno é, basicamente, um direito penal do fato. Está constituído sobre o fato-do-agente e não sobre o agente-do-fato”.(3)

2 Delinquente habitual, por tendência e profissional

Embora tenha o conceito de habitualidade se firmado no século XX, nos séculos anteriores já se trabalhava com conceitos e noções equivalentes, como a “consuetudo delinquendi”,(4) que determinava em relação a certos crimes, em especial o furto, um agravamento da pena.

Além de tratar da reincidência, o Código Penal italiano de 19 de outubro de 1930 tratava da habitualidade (abitulità – arts. 102 e 103), da profissionalidade (professionalità – art.105) e da tendência a delinquir (tendenza a delinquere – art. 108).

No Brasil, o Código Penal de 1969, que não chegou a vigorar, além de distinguir o reincidente do criminoso habitual e por tendência, conforme dito alhures, tratava tanto o criminoso habitual quanto o criminoso por tendência com mais rigor. O natimorto Código previa a figura esdrúxula da “pena indeterminada”, bem como presumia, de maneira absoluta e absurda, a periculosidade e até mesmo a habitualidade, que poderia ser considerada sem que tivesse sido o agente condenado por sentença transitada em julgado, em nítida afronta ao princípio da presunção de inocência.(5) De igual modo, o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969).(6)

Raúl Zaffaroni não poupa críticas ao conceito de criminoso habitual ou de habitualidade, bem como ao tratamento dado ao reincidente pela maioria das legislações penais . De acordo com o jurista argentino, “Desde la desviación positivista la ‘habitualidad’ es un producto del afán clasificador de esta corriente, cuyo anarquismo nosotáxico llega a ser desesperante. La diferencia entre el reincidente y el habitual esnebulosísima, pudiendo aventurarse la opinión de que, por debajo de las complejas y contradictorias clasificaciones el ‘habitual’ sería algo como el reincidente ‘desahuciado’ y, por ende, sometido a una segregación o a un tratamiento intensivo”. (7)

3 O projeto “anticrime”

O projeto “anticrime” apresentado pelo ex-juiz e atual ministro da Justiça Sergio Moro, contrariando a melhor doutrina e a experiência legislativa, ressuscita os lapidados e ultrapassados conceitos de criminoso habitual e por tendência, além de continuar incidindo no equívoco de tratar o reincidente com maior severidade.

Ao tratar das “medidas para endurecer o cumprimento das penas”, o projeto determina – afrontando a jurisprudência do STF – que o condenado reincidente ou considerado habitual ou profissional inicie o cumprimento da pena em regime fechado, in verbis:

Art. 33 ...

§ 5º . No caso de condenado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, o regime inicial da pena será o fechado, salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas ou de reduzido potencial ofensivo” (art. 33, § 5º do “Projeto Anticrime”).

Como já assentado, ao ressuscitar os conceitos de criminoso habitual, por tendência ou profissional, o projeto “anticrime” atropela o princípio da culpabilidade no qual se assenta a responsabilidade do agente pelo fato praticado (Direito Penal do fato) e jamais pela responsabilidade pela condução de vida ou pelo caráter (Direito Penal do Autor).

Certo é que os conceitos, bem como os requisitos e pressupostos do que vem a ser delinquente reincidente, habitual, por tendência ou profissional e outras expressões utilizadas pela doutrina e por diversas legislações – e agora ressuscitados pelo projeto “anticrime” – estão longe de uma pacificação ou de um consenso, principalmente no tratamento que deve ser dado a cada uma dessas espécies, muitas vezes tratadas como sinônimas, outras de maneiras completamente distintas, atribuindo-se ora a uma ora a outra maior ou menor gravidade.

As legislações que distinguem o delinquente habitual, o delinquente por tendência, o delinquente profissional e o reincidente, elevando ainda mais a pena e restringindo vários benefícios e mutilando direitos destes – como faz o projeto em comento –, só podem encontrar seu fundamento na chamada teoria absoluta da pena, de caráter nitidamente retributivo, que tem a pena como um fim em si mesma.

Qualquer que seja a teoria adotada (absoluta, prevenção, funcionalista etc.), e a finalidade que se pretenda dar à pena, ela não pode se converter em um fim em si mesmo e se contrapor ao princípio da culpabilidade.O fim das penas, já notava Beccaria, “não é atormentar e afligir um ser sensível...”.(8)

Punir o ser humano pelo seu caráter, pelo seu modo de ser ou pela pessoa que ele é, trata-se de repugnante hipótese de direito penal do autor, próprio de regimes autoritários e de exceção.

4 Conclusão

Parece claro que os códigos que definem e diferenciam o reincidente do criminoso habitual, profissional ou por tendência(9) como fez, outrora, o Código Penal italiano, o Código Penal Militar do Brasil e o Código Penal brasileiro de 1969, por exemplos, o fazem com base no modo de viver do agente, na sua conduta de vida ou em razão de uma classificação do agente. Somente encontram respaldo na concepção de culpabilidade de autor, a qual se opõe à concepção de culpabilidade do fato, segundo a qual deverá ser considerado o fato delitivo e não o comportamento anterior do agente.

O problema da criminalidade, é, antes de tudo, um problema social e vem condicionado pelo modelo de sociedade. Seria ilusório, portanto, analisar a criminalidade a partir de um ponto de vista natural, ontológico ou puramente abstrato, desconectado da realidade social em que a mesma surge. (10)

Do ponto de vista criminológico, para a compreensão da criminalidade é necessário estudar a ação do sistema penal, iniciando pelas normas abstratas até a ação das chamadas instâncias oficiais (polícia, ministério Público, juízes e o sistema penitenciário).(11)

Por tudo, verifica-se que o projeto “anticrime”, apostando no recrudescimento do sistema penal, fruto de uma política equivocada da lei e da ordem e do Direito Penal Simbólico, despreza conceitos fundamentais do Direito que decorrem da evolução doutrinária e da própria experiência legislativa. Como concebido, o projeto em comento levará, ainda mais, ao encarceramento em massa e da massa.

Notas

(1)  De acordo com Juarez Tavares, “Como a premissa da proteção à dignidade é a de que a ordem jurídica não pode tomar o cidadão como simples meio, mas como fim, emerge a consideração de que, por isso, são inconstitucionais as leis que impliquem maior sofrimento, miséria, marginalização ou desigualdades, o que passa a constituir um absoluto impedimento à restauração da pena de morte, ou a assumir na penas privativas de liberdade exclusiva pretensão de prevenção geral ou especial, inobstante o comprovado insucesso de sua execução.” (Tavares, Juarez.  Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 77-78, dez./1992.).

(2)  Carvalho, Salo. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2001. p. 154.

(3)  Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 235.

(4)  “L’abitualità, in largo senso, è quella che i Pratici chiamavano consuetudo delinquendi e designavano altresì con i nomi di perseverantia, geminatio, frequentatio. I giurecosulti romani non ne ebbero un concetto organico: le leggi punivano soltanto in maniera più grave i rei che perseverano in alcuni delitti. Anche il diritto canonico considera l’abitualità (pertinacia), specialmente in riguardo al delito di eresia, e la considera come aggravante della pena, ma, in generale, non distingue l’abitualità dalla recidiva.” (MAGGIORE, Giuseppe. Diritto penale. v. I: parte generale (tomo secondo). Bologna: Nicola Zanichelli, 1951. p. 645).

(5)Criminoso habitual ou por tendência

Art. 64. Tratanto-se de criminoso habitual e por tendência, a pena a ser imposta será por tempo indeterminado. O juiz fixará a pena correspondente ao crime cometido, que constituirá a duração mínima da pena privativa de liberdade, não podendo ser inferior à metade da soma do mínimo com o máximo cominados.

Limite de pena indeterminada

§ 1º . A duração da pena indeterminada não pode exceder a dez anos, após o cumprimento da pena fixada na sentença .

§ 2º . Considera-se criminoso habitual quem:

a) reincide pela segunda vez na prática de crime doloso da mesma natureza, em período de tempo não superior a cinco anos, descontado o que se refere a cumprimento de pena ;

b) embora sem condenação anterior, comete sucessivamente, em período de tempo não superior a cinco anos, quatro ou mais crimes da mesma natureza e demonstra, pelas suas condições de vida e pelas circunstâncias dos fatos apreciados em conjunto, acentuada inclinação para o crime .

§ 3º . Considera-se criminoso por tendência quem, pela sua periculosidade, motivos determinantes e meios ou modo de execução do crime, revela extraordinária torpeza, perversão ou malvadez.

(6)  “Em se tratando de criminoso habitual ou por tendência, a pena a ser imposta será por tempo indeterminado. O juiz fixará a pena correspondente à nova infração penal, que constituirá a duração mínima da pena privativa da liberdade, não podendo ser, em caso algum, inferior a três ano.” (art. 78)

(7)  Zaffaroni, Eugenio Raúl. Reincidencia: un concepto de derecho penal autoritario. In: Derechos Fundamentales y Justicia Penal. San José da Costa Rica: Juricentro, 1992. p. 41.

(8)  Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução: Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 62.

(9)  “Se trata de tentativas de elaborar un concepto de ‘ habitualidade’, con ese o otro nombre, separado del concepto de reincidencia. Es una fórmula legal que ya permite ‘ marcar’ a una persona como delincuente. Si la reincidencia responde a la idea de una classificación entre disciplinados e indisciplinados, que a veces pasa por el requisito previo de la reincidencia y, en otras, ni siquiera se lo requiere, porque su ‘ pésima’ condición se revela con la simple pluralidad delictiva.” (Instituto Interamericano de Derechos Humanos. Sistemas penales y derechos humanos en América Latina (informe final). Zaffaroni, Eugenio Raul (coord.). Documento final del programa de investigación desarrolado por el Instituto Interamericano de derechos humanos (1982-1986). Buenos Aires: Depalma, 1986. p. 90).

(10)  Hassemer, Winfried; Muñoz Conde, Francisco. Introducción a la criminologia. Valencia: Tirant lo blanch libros. 2001.

(11)  Baratta, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.

Leonardo Isaac Yarochewsky
Doutor em Ciências Penais pela UFMG.
Membro do IDDD e do IAB. Advogado.
leonardo@yarochewsky.com.br



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