Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autores: Ricardo Jacobsen Gloeckner e Leonardo Costa de Paula
Para compreender o estágio atual do tratamento dado aos embargos infringentes e de nulidade, há que se ter em mente que, embora pudesse ser muito melhor a sua formulação legislativa e organizacional no conteúdo do CPP, o texto legislativo de 1952 garante ao réu submetido a alguma condenação não unânime, o poder de ingressar com recurso para tornar a parte divergente em maioria em julgamento realizado por outro órgão colegiado distinto do que o condenou. Esse novo julgamento só poderá tratar da parte divergente da decisão. Em síntese, esta a normativa contida no art. 609 e seu parágrafo único atualmente vigente no CPP. O Código informa duas espécies de recurso em um mesmo dispositivo: os embargos infringentes, cabíveis contra decisão não unânime que trate de matéria de fundo (direito material) e os de nulidade, quando o objeto da controvérsia estiver circunscrito a questões relativas à validade de atos processuais.
A nova redação dada ao art. 609 do CPP prevê exclusivamente o cabimento dos aludidos recursos (infringentes e de nulidade) em caso de decisão divergente que absolva o réu. Outrossim, a nova redação informa que a interposição do recurso interrompe a execução da pena.
Preliminarmente, o projeto parte de um pressuposto tão difundido quanto equivocado, de que grande parte do problema da justiça criminal se situa nos exagerados recursos à disposição do acusado. Trata-se de um discurso que se nutre especialmente do abuso de dados distorcidos, como demonstraram Graziano e Bottino (2018). De toda sorte, se há efetivamente um problema quanto aos recursos no processo penal brasileiro, ele se situa no verdadeiro simulacro de um julgamento colegiado, como sustentam Giacomolli (2015, p. 316) e Cruz (2013, p. 19), ao afirmar que, no âmbito recursal brasileiro, não é uma decisão colegiada, mas um segundo julgamento monocrático. Dessa maneira, o problema correlato ao segundo grau de jurisdição é o de que se tem, na verdade, uma aparência de revestimento de órgão colegiado substituído, que acaba se confirmando em um mero “de acordo com o relator”. Seguindo essa lógica, então, os únicos casos em que se tem a certeza de que o segundo grau de jurisdição não atuou como mero órgão aparentemente colegiado são justamente os casos de cabimento dos embargos infringentes ou de nulidade. O desembargador vencido percebe que a situação é tão grave que passa a atuar e se obriga a elaborar um voto divergente sobre algum aspecto que ele julga tão relevante que decide ir contra a maré e demonstrar a insatisfação contra o julgamento da maioria.
Ainda em consonância com a questão da celeridade processual e da discussão em torno dos recursos no processo penal, pesquisa realizada em 2010 demonstra que o número de embargos infringentes no Estado do Rio de Janeiro do ano de 2009 constituíram um total de 252, compreendidos entre os meses de janeiro a novembro de 2009. Ou seja, o julgamento de menos de 23 embargos infringentes ou de nulidade por mês.(1) Naquele ano, para um total de recursos ou decisões de segundo grau, se alcançou um resultado total de 9.184 decisões; para cada mês, então, 765,33 decisões. Ou seja, nem 3% (2,993348%) do total de decisões do Estado do Rio de Janeiro tratavam-se, em 2009, de decisões em embargos infringentes ou de nulidade.
Com metodologia similar, ao se consultar o sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para o ano de 2018, se procedeu a uma pesquisa semelhante.(2) Com os termos “embargos e infringentes” chegou-se a 685 resultados; e, deles, 223 não tratavam de embargos infringentes ou de nulidade, (casos de recurso com efeitos infringentes, por exemplo). Ou seja, num total de 462 recursos no ano de 2018, quase 10 anos depois da pesquisa acima referida, alcançou-se um total de 38,5 embargos infringentes por mês no Estado do Rio de Janeiro. Pode até parecer um crescimento exacerbado, isoladamente comparado com o ano de 2009. Entretanto, o fluxo de recursos que aparecem em atos jurisdicionais de segunda instância no Rio de Janeiro, para o mesmo período de 2018, soma o número de 21.613; ou seja, mais de 1.801 decisões por mês dadas em segunda instância com o termo recurso. Ora, não parece ser razoável que alterar a previsão do número de 38,5 recursos, num total de 1.801 por mês, deva ser considerado um problema de política criminal sério. Para que fique mais claro, 2,137% das decisões no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em 2018, são de embargos infringentes. Se, em 2009, quase 3% (2,993348%) dos recursos eram decisões oriundas de embargos infringentes, os dados de 2018 indicam queda nesse percentual (2,137%). Como reverso da moeda, nota-se que a pergunta que deveria orientar uma política criminal minimamente racional é justamente aquela de como é possível, num fluxo de 21.613 decisões, se ter a unanimidade em 21.151 desses julgados. Portanto, o primeiro aspecto da reforma é desprovido de qualquer dado ontológico, pois parte de um axioma irrevogavelmente desmentido pelas práticas punitivas brasileiras.
Um segundo aspecto merece atenção. A reforma pretende tratar, através de uma lógica binária (absolvição x condenação), aspectos absolutamente complexos do fenômeno recursal. Aparentemente, dada a debilidade e a precariedade técnicas da proposta de reforma, ficariam fora do objeto recursal questões atinentes à aplicação de majorantes, concurso de crimes e causas de aumento, aplicação da lei penal no tempo, aplicação da pena-base e do regime de cumprimento da pena. Além do mais, tecnicamente também ficariam fora do alcance dos embargos as questões referentes às causas extintivas da punibilidade, que não se coadunam com a lógica binária da absolvição ou condenação. Também ficariam de fora os recursos destinados à ampliação da cognição quando o objeto da divergência for o tipo penal cabível (desclassificação), ou ainda, o afastamento de qualificadora, que trata de questão afeita ao campo da tipicidade. Questões complexas como a discussão em torno da culpa e do dolo não poderiam ser reexaminadas na lógica deformada do projeto. E isso para ficar apenas no campo do Direito Penal. Outra questão que o projeto de forma velada e perversa propõe é a abolição tácita dos embargos de nulidade. Apesar de o projeto manter a terminologia “embargos de nulidade”, uma vez cabível o recurso apenas contra decisão não unânime que absolva o acusado (como conta na proposta), os embargos de nulidade deixam substancialmente de existir. Com efeito, se o objeto dos embargos de nulidade é a discussão em torno dos requisitos de validade de um determinado ato processual(3) (atingindo também a importantíssima questão da prova ilícita), evidentemente a sua aplicabilidade deixa de encontrar amparo formal no art. 609 do CPP.
Em pesquisa brevíssima no sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, examinando-se por amostragem 100 acórdãos (do universo bruto de 2.190 acórdãos encontrados entre 20.12.2017 e 20.01.2019 – não havendo exclusão por matéria e, portanto, o número total deve passar por filtros de adequação), observou-se que 40 tratavam da dosimetria da pena, 40 tratavam de absolvição, 12 examinavam nulidades processuais, 5 cuidavam de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, 3 tratavam de desclassificação. Diante de tais dados, verifica-se facilmente que a proposta de reforma afetaria, nessa amostragem, 60% dos casos, mantendo-se os embargos para apenas 40% das apelações.
O que causa espécie é justamente que a maior parte das divergências (e em que efetivamente se realizou um julgamento minimamente colegiado) estaria a descoberto dos embargos na formulação do projeto, deixando de lado questões relevantes como nulidades, dosimetria da pena, regime de cumprimento da pena, etc. O projeto é inviável à sua máxima potência, pois, em primeiro lugar, parte do senso comum de que o processo penal é um jogo de soma zero,(4) desconsiderando toda a complexidade das operações que se sucedem nesse campo. Do universo de questões que podem ocorrer em um determinado procedimento, relegar os embargos à discussão em torno da absolvição e da condenação é epistemologicamente pobre e moralmente órfão, pois a grande maioria dos julgados não ocorre segundo uma all or nothing fashion. E, além disso, encobre a revogação de um recurso (os embargos de nulidade).
O que também deve ser sinalizado é que, em sendo os embargos infringentes uma expressão da própria presunção de inocência aplicada ao órgão colegiado, não deve surpreender que ela advenha em um momento no qual se procura fustigar e debelar essa norma constitucional, bastando rapidamente olhar-se para a “execução provisória” da pena. Ninguém revestido de mínima seriedade acadêmica pode duvidar de que a existência dos embargos, baseados na divergência originária de órgão colegiado, possa encontrar sua raiz na presunção de inocência (mesmo que a “causa” da reforma do processo penal em 1951 fosse ampliar a possibilidade do recurso, por extensão ao cível).(5) Se a “execução provisória” da pena toca na norma de tratamento originária da presunção de inocência (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ex vi art. 5º, LVII da Constituição da República), a dúvida quanto ao julgamento integra a norma de juízo in dubio pro reo. Evidentemente, a existência de voto divergente significa a verificação de pressuposto de autorização da ampliação da cognição objeto de recurso anterior, a ensejar a integração de mais julgadores para que uma decisão possa ser tomada, sem estar maculada pela dúvida.
O projeto inclusive anda na contramão do próprio Código de Processo Civil, que, apesar de nominalmente “abolir” os embargos infringentes, acaba por integrá-los na técnica de julgamento ampliado da apelação, consoante o art. 942 do CPC, que prevê apenas três exceções em seu § 4º.
A proposta é absolutamente inviável e perigosa, por todos os motivos já expostos. Admitida a proposta, torna-se absolutamente paradoxal e teratológica a admissão de uma técnica de julgamento ampliado no Direito Processual Civil e a sua redução à ineficácia no campo do Direito Processual Penal, onde estão em jogo interesses ainda mais importantes.
A anemia técnica que tal proposta contém é insuperável. Diante disso, deve o Congresso rechaçar, pura e simplesmente, o projeto, pois contém uma séria ameaça de impossibilitar a revisão de questões por demais relevantes no processo penal. E isso tudo despojado de qualquer tipo de pesquisa empírica que, sequer perfunctoriamente, esboce conexão entre uma “legislação anticrime” e os efeitos reais da atual sistemática dos embargos infringentes e de nulidade no sistema recursal brasileiro. Além disso, o projeto vem destituído de qualquer evidência que pudesse acobertar a reforma, como o tempo para julgamento dos embargos em face de outros recursos, a taxa de reversibilidade das decisões, etc. Nada. O projeto é natimorto pois não dialoga – nem mesmo na epiderme – com a realidade.
O mais incrível mesmo é, em pleno ano de 2019, termos que recorrer aos mesmos argumentos defendidos em 1951, quando do projeto de lei que culminou na reforma do CPP (ou seja, se o recurso existe no processo civil, consequentemente deve existir no processo penal). E, nesse sentido, ainda mais surreal é a conclusão – forçosa – de que a proposta é inconstitucional e antidemocrática, pois debilita ainda mais a já combalida presunção de inocência e proscreve significativas discussões judiciais em torno da divergência, que na maioria das vezes não segue a lógica do “tudo ou nada”. O que o projeto procura é neutralizar a divergência, a ponto de torná-la ineficaz, preparando o terreno para a consolidação de um julgamento monocrático de segundo grau. Colegiado sem divergência não é garantia alguma e, nesse ponto, tem-se o projeto duplamente inconstitucional, pois além da norma de juízo (in dubio pro reo), está a afastar a reboque o duplo grau de jurisdição. Longe de ser um projeto anticrime ele é, mais do que nunca, contra o (anti)cidadão, contra o (anti)indivíduo e contra (anti)decisão de qualidade; pretende por uma fúria punitiva ter um trânsito em julgado precoce e abre mão da diminuição do erro nas decisões; assim, diminui o cidadão e infla a punição sem lastro de racionalidade.
No contexto geral em que chega o presente projeto, não se pode concluir diversamente de que os argumentos liberais dos velhos autoritários eram muito mais liberais do que os argumentos autoritários de nossos “liberais”.
Referências
Cruz, Rogério Schietti. Garantias processuais nos recursos criminais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
Giacomolli, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
Graziano, Sergio; Bottino, Thiago. Encarceramento não é espetáculo nem solução à corrupção. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-08/opiniao-encarceramento-nao-espetaculo-nem-solucao-corrupcao>. Acesso em: 22 fev. 2019.
Notas
(1) Pesquisa realizada por Melchior, Antonio Pedro. Os embargos infringentes e a reforma do código de processo penal (PL 156/09). In: Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda; Carvalho, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. O novo processo penal à luz da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.p. 175 e ss.
(2) Foram excluídas da pesquisa as seguintes classes: recurso em sentido estrito, habeas corpus, embargos de declaração, ação penal, investigação penal, entre outras classes que não se enquadravam exclusivamente na identificação de embargos infringentes e de nulidades.
(3) Cf. Gloeckner, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
(4) “O somatório dos vetores presentes na vontade de cada parte no interior do processo penal, se analisado através de um diagrama, resultará num vetor voltado ao benefício do acusado. Enquanto o acusado carrega o vetor máximo de resistência, com ou sem a confissão do fato delitivo, a parte ex adversa, que em regra é o Ministério Público, que carrega dois vetores, quais sejam, o do poder de punir, cuja realização aponta no sentido de se sobrepor ao vetor do acusado, afastando o in dubio pro reo; e outro, que comporta a sua função de custos legis, que é a de pretender proteger com o processo a lei que em seu patamar máximo seria a de efetivar a vontade presente na Constituição, com todas as garantias inerentes ao acusado em um processo penal”. Paula, Leonardo Costa de. Nulidades no processo penal brasileiro: sua compreensão por meio da afirmação do direito como controle ao poder de punir. Curitiba: Juruá, 2012. p. 124.
(5) Pretende a proposição estender o recurso de embargos perante os Tribunais de Justiça aos processos criminais. A medida é justa. A lei processual fixa o recurso de embargos em material cível. Deve, portanto, ser admitido nos processos criminais onde está em discussão a liberdade humana”. Projeto 62 de 1951. Diário do Congresso Nacional dos Estados Unidos do Brasil. a. VI. n. 57. 5 de Abril de 1951. Brasília, 1951. p. 1800. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD05ABR1951.pdf#page=10>. Acesso em: 22 fev. 2019.
Ricardo Jacobsen Gloeckner
Pós-doutor pela Universidade Federico II.
Doutor em Direito pela UFPR e mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.
Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS.
Advogado.
ricardogloeckner@hotmail.com
Leonardo Costa de Paula
Doutor em Direito do Estado pela UFPR e mestre em Direito Público pela UNESA.
Professor da Faculdade CNEC Ilha do Governador.
Vice-Presidente do Observatório da Mentalidade Inquisitória.
Advogado.
leocdp@gmail.com
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