Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autores: René Ariel Dotti e Gustavo Britta Scandelari
O “Projeto de Lei Anticrime” (doravante denominado Projeto) apresentado ao Congresso pelo Governo Federal busca promover uma série de alterações relevantes nos sistemas penal e processual penal brasileiros. Uma das mais importantes diz respeito à implementação de instituto de origem estrangeira conhecido como plea bargain ou plea deal (algo como “pleito de barganha” ou “pedido de acordo”). Trata-se, em linhas gerais, de mecanismo pelo qual o acusado pode, logo no início das apurações pré-processuais, reconhecer a responsabilidade pelo fato, abrindo mão de seu direito a um processo e ao consequente julgamento judicial de mérito para receber, desde logo, uma pena. A principal vantagem ao jurisdicionado é a possibilidade de que a sanção seja menor do que a que seria aplicada caso houvesse sentença de conhecimento após a regular produção de provas. É, no fundo, uma análise de riscos a ser feita pelo investigado em conjunto com sua assistência jurídica.
Há críticas tanto na literatura estadunidense quanto na brasileira. As principais são: (a) réus pobres não teriam condições de arcar com bom advogado para fazer acordo justo; (b) a acusação poderia ameaçar com imputações desproporcionalmente graves para coagir a defesa a um acordo ruim; (c) o modelo afastaria a população do Judiciário. Essas críticas já são de conhecimento da Suprema Corte norte-americana, a qual tem recomendado cautela às autoridades. E tem mantido o seu uso.
No Brasil, os mesmos problemas podem surgir. Porém, nenhum sistema de justiça criminal é perfeito. É notório que, entre nós, tais defeitos inclusive já existem: (a) condenações injustas; (b) acusados mal defendidos; (c) denúncias ineptas e outros vícios que, lamentavelmente, são comuns há muito tempo. O que se busca com a inovação é resolver outro mal crônico: o altíssimo custo público e social com um número excessivo de processos. Segundo pesquisa do CNJ, o Poder Judiciário brasileiro teve taxa anual de cerca de 4% de crescimento desde 2011, sendo que, em 2017, custou mais de R$ 90 bilhões. Boa parte desse custo advém dos mais de 80 milhões de processos atualmente em trâmite e sem perspectiva clara de encerramento. Deles, 94% estão em 1º grau, precisamente a instância em que ocorreria o acordo (Justiça em Números, 2018, p. 56, 73 e 197).
Ou seja, os defeitos que a mudança possivelmente trará não justificam a permanência do atual sistema criminal brasileiro, que obriga à litigiosidade exacerbada em centenas de milhares de situações que poderiam ser rapidamente encerradas de forma satisfatória para as partes. Por ora, não há razões fortes o suficiente para que se impeça o avanço dessa proposta e a instauração dos indispensáveis debates. A maior ou menor qualidade do novo sistema dependerá de sua redação legislativa.
A proposta, basicamente, é de alteração do Código de Processo Penal para que se lhe insira o art. 28-A, com cinco incisos e quatorze parágrafos. A definição fundamental do instituto consta do caput desse dispositivo: “o Ministério Público ou o querelante poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, se não for hipótese de arquivamento e se o investigado tiver confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima não superior a quatro anos (...)”, mediante o cumprimento de condições, cumulativas ou não. De início, evidencia-se o nome escolhido para batizar essa modalidade de plea bargain em nosso país (abaixo será vista outra modalidade): é o acordo de não persecução penal. Não é uma formulação inédita, pois a Resolução 181, de 7 de agosto de 2017 (doravante referida como Resolução), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), veicula, em seu art. 18, esta cláusula: “não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática (...)”, também mediante condições cumulativas ou não. Para a aferição da pena máxima cominada, “serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto” (Resolução, art. 18, §13º; Projeto, art. 28-A, §1º).
A expressão “acordo de não persecução” parece trazida da experiência norte-americana, por inspiração nos seus deferred prosecution agreement (ou adjudication, conforme o Estado) e non-prosecution agreement. Ambos, muito parecidos, implicam, lá, a assunção de responsabilidades e o cumprimento de condições pelo réu para que, em troca, receba sanções potencialmente mais leves do que as que poderia ter que cumprir caso fosse submetido a processo penal. Para a melhor compreensão da mudança que o Projeto veicula, é importante comparar o acordo de não persecução já existente em nosso ordenamento (tal qual disciplinado na Resolução) com aquele ainda pendente de debate e aprovação (o constante do Projeto).
Os institutos delineados na Resolução e no Projeto não se assemelham somente em nome: os cinco incisos que preveem as condições ao aceite do acordo têm o mesmo teor. São elas, em síntese: I – reparar o dano; II – renunciar a bens e direitos indicados pelo MP; III – prestar serviços; III – pagar prestação pecuniária; IV – outra condição a ser indicada pelo MP.
Diferenças começam a aparecer nos requisitos negativos para a oferta do acordo de não persecução. Na Resolução, o acordo não terá lugar quando o dano causado for superior a vinte salários mínimos (art. 18, §1º, II), ao passo em que, na proposta de lei, não há limite de natureza econômica. A Resolução veda o acordo quando “o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal” (art. 18, §1º, IV), enquanto que, na proposta de lei, houve solução prática: “não correrá a prescrição durante a vigência de acordo de não persecução penal” (art. 28-A, §14º).
Consta como proibitivo na Resolução, mas sem correspondência no Projeto, a prática de crime hediondo ou previsto da Lei 11.340/2006 (Maria da Penha) (art. 18, §1º, V). A Resolução também veda o acordo em casos de crimes praticados por militares “que afetem a hierarquia e a disciplina” (art. 18, §12º); novamente, não há proibição correspondente no Projeto.
Permanecem iguais em ambos os textos os requisitos do não cabimento, para o caso, de transação penal (Resolução, art. 18, §1º, I; Projeto, art. 28-A, §2º, I); de circunstâncias demonstrarem ser o acordo necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime (Resolução, art. 18, §1º, VI; Projeto, art. 28-A, §2º, IV); não ter sido o autor beneficiado nos últimos cinco anos com transação penal ou já ter sido condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva – este somente na Resolução, art. 18, §1º, III – ou, apenas cfe. Projeto, art. 28-A, §2º, III; não ter ele sido beneficiado nos cinco anos anteriores em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo. Embora pudesse se encaixar no requisito da necessidade e suficiência da medida, o Projeto inclui requisito sem correspondente na Resolução: “se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas”, proíbe-se o acordo (art. 28-A, §2º, II).
Vencidos os requisitos, vêm os dispositivos de procedimento, também muito similares. São equivalentes na norma em vigor e na norma proposta estes itens: o acordo será formalizado por escrito e assinado pelo MP, investigado e seu defensor (Resolução, art. 18, §2º; Projeto, art. 28-A, §3º); a Resolução prevê que a confissão será gravada por meio audiovisual como parte integrante do acordo, que será formalizado nos autos (art. 28-A, §3º), enquanto que o Projeto determina que, “para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade” (art. 28-A, §4º). Homologado o acordo, o juiz deverá devolver os autos ao MP, para que inicie sua implementação perante o juízo da execução (Resolução, art. 18, §5º; Projeto, art. 28-A, §6º); caso recusado, o Projeto estabelece simplesmente que o MP poderá oferecer denúncia ou continuar as investigações (art. 28-A, §§7º e 8º), não sem antes permitir que as partes refaçam os seus termos para insistir na homologação (art. 28-A, §5º). Já a Resolução determina que, em caso de não homologação, o juiz envie os autos ao procurador-geral, que poderá oferecer denúncia, continuar as investigações, reformular a proposta de acordo ou mantê-lo como está, o que “vinculará toda a instituição” (art. 18, §6º e incisos). Ambos determinam que a vítima seja comunicada da existência do acordo, mas somente o Projeto prevê que ela seja cientificada também de seu eventual descumprimento (Resolução, art. 18, §4º; Projeto, art. 28-A, §9º). Somente a Resolução proíbe a celebração do acordo na mesma ocasião da audiência de custódia (art. 18, §7º) e diz ser “dever do investigado comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail, e comprovar mensalmente o cumprimento das condições, independentemente de notificação ou aviso prévio, devendo ele, quando for o caso, por iniciativa própria, apresentar imediatamente e de forma documentada eventual justificativa para o não cumprimento do acordo” (art. 18, §8º). Em todo caso, descumprida condição do acordo, ele será rescindido e poderá o MP oferecer denúncia diretamente (Resolução, art. 18, §9º; Projeto, art. 28-A, §10º), sendo que tal descumprimento poderá ser utilizado pelo membro do Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo (Resolução, art. 18, §10º; Projeto, art. 28-A, §11º). Finalmente, a Resolução determina o arquivamento das investigações em caso de cumprimento integral do acordo, enquanto que o Projeto garante ao réu que o acordo não constará em sua ficha de antecedentes e que terá extinta a sua punibilidade (Resolução, art. 18, §11º; Projeto, art. 28-A, §§12º e 13º).
Caso aprovado o Projeto nesse tema, estará revogado o conteúdo da norma do CNMP, prevalecendo, por conseguinte, a nova redação do CPP, hierarquicamente superior. Em linhas gerais, o acordo de não persecução está mais simples e claro no Projeto do que na Resolução. Dois pontos da Resolução, no entanto, parecem mais adequados do que no Projeto: primeiro, a obrigação de que haja clareza na redação do acordo e a indicação das datas para a restituição de valores (art. 18, §3º). Já que seu texto será o objeto de escrutínio, exigir simplicidade e segurança quanto ao seu conteúdo nunca é demais. Segundo, a possibilidade de que o investigado justifique eventual descumprimento do acordo (art. 18, §8º) é salutar porque, como se sabe, a vida contempla fatores imprevisíveis e incontroláveis que podem dificultar sobremaneira o adimplemento das condições tais como outrora sedimentadas ou até mesmo inviabilizá-las total ou parcialmente. Seria fundamental que o Projeto ao menos previsse a oportunidade de juiz analisar eventual justificativa. O ideal, portanto, é que, durante a tramitação do Projeto, sejam-lhe incorporadas as citadas modificações.
Mas o Projeto também pretende a inclusão, no CPP, do art. 395-A; desta feita, sem correspondência na Resolução. Aqui, é o Projeto de Lei 8.045/10 (novo CPP), em seu art. 283, que serve como referência de comparação (em seu procedimento sumário). Resumidamente, ambos preveem a possibilidade de acordo para “a aplicação imediata das penas”, desde que após recebida a inicial e até o início da instrução. Da mesma forma, exigem: a confissão da infração penal; que as partem desistam da produção probatória e do direito de recorrer; que as penas sejam aplicadas dentro dos parâmetros legais e estejam adequadas ao caso concreto. Não se trata de um acordo de não persecução, pois a pretensão acusatória já foi ajuizada e “para todos os efeitos, o acordo homologado é considerado sentença condenatória” (PL 8.045/10, art. 283, §8º; Projeto, art. 395-A, §8º). O que há é uma aplicação consensual de pena em fase judicial pré-probatória. Mas ainda se enquadra na versão brasileira do plea bargain, afinal, encurta o processo e possibilita sanção previamente sugerida pelas partes, inclusive com redução relevante de pena e outros benefícios (PL 8.045/10, art. 283, §§2º a 6º; Projeto, art. 395-A, §2º). O acordo não homologado será desentranhado dos autos e não poderá ser objeto de futura referência pelos componentes da relação processual (PL 8.045/10, art. 283, §9º; Projeto, art. 395-A, §9º). No PL 8.045/10, cabe agravo da decisão que recusar a homologação do acordo (art. 473, VII); no Projeto, inexiste previsão do recurso cabível, dando a entender que caberia apelação (CPP, art. 593, II) e/ou ação de impugnação, conforme a urgência do caso. Seria fundamental que o Projeto incluísse dispositivo a respeito.
O Projeto contém alguns dispositivos sem correspondência no PL 8.045/10, como, p.ex.: “se houver vítima da infração, o acordo deverá prever valor mínimo para a reparação dos danos por ela sofridos, sem prejuízo do direito da vítima de demandar indenização complementar no juízo cível”; “para homologação do acordo, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do acusado na presença do seu defensor, e sua legalidade”; “o juiz não homologará o acordo se a proposta de penas formulada pelas partes for manifestamente ilegal ou manifestamente desproporcional à infração ou se as provas existentes no processo forem manifestamente insuficientes para uma condenação criminal”; “a celebração do acordo exige a concordância de todas as partes, não sendo a falta de assentimento suprível por decisão judicial, e o Ministério Público, ou o querelante, poderá deixar de celebrar o acordo com base na gravidade e nas circunstâncias da infração penal” (Projeto, art. 395-A, §§5º, 6º, 7º e 11º, respectivamente). Assim, quanto à aplicação consensual de pena em fase pré-probatória, o Projeto está mais completo do que a redação do PL 8.045/10. À regulação de aplicação imediata de pena e seus efeitos, realmente aproveitam o cuidado com a vítima, a fiscalização pessoal pelo juiz em audiência, a detecção judicial de abusos em casos de inexistência de crime ou de pena desproporcional e rigor com existência material da concordância das partes e com a justiça no caso concreto.
Notas
(1) Coautor dos projetos que se converteram na Lei 7.209/84 (nova Parte Geral do CP) e Lei 7.210 (Lei de Execução Penal). Membro da Comissão para realização de estudos de modernização da legislação penal, instituída pelo Ministro da Justiça (Portaria 315, publ. no DOU de 10.04.1995) que redigiu o Projeto da Lei 9.613, de 03.03.1998 (Lavagem de Dinheiro).
René Ariel Dotti(1)
Professor Titular de Direito Penal.
Professor de Direito Processual Penal na Pós-Graduação.
Vice-Presidente Honorário da Associação Internacional de Direito Penal.
Detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados.
Advogado.
rene@dotti.adv.br
Gustavo Britta Scandelari
Doutorando e mestre em Direito pela UFPR.
Pós-graduado em Direito Constitucional pela UNIBRASIL.
Especialista em Direito Penal e Criminologia pela UFPR, em convênio com ICPC.
Professor de Direito Penal do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.
Advogado.
gustavo@dotti.adv.br
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