INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 265 - Dezembro/2014





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.

Conselho Editorial

O problema da prisão provisória e o impacto da Lei das Cautelares na cidade de São Paulo

Autor: Marcello Fragano Baird e Natália Pollachi

Introdução

O Brasil tem a 3.ª maior população carcerária do mundo, sendo que 32% dos presos são provisórios, o que equivale a 229 mil pessoas mantidas presas antes de serem julgadas. Em São Paulo, estado com a maior população carcerária do país, o número de presos provisórios atinge 71 mil, ou 24% do total de presos.(1)

Esses números causam enorme perplexidade por diversos motivos. Em primeiro lugar, de um ponto de vista estritamente legal, trata-se de uma afronta a princípios constitucionais como a presunção de inocência e o devido processo legal. Da mesma forma, diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário vão na mesma linha, definindo que a privação de liberdade durante o processo deve ser a exceção, e não a regra. Como se evidenciará adiante, no entanto, mais de 60% dos presos em flagrante na cidade de São Paulo recebem como primeira medida cautelar a prisão. Trata-se, portanto, de um uso abusivo da prisão provisória.

A prisão provisória deveria ser aplicada somente por 1) conveniência da instrução criminal, nos casos em que o processado estiver destruindo evidências, coagindo testemunhas, peritos etc.; 2) para assegurar a aplicação da lei penal, quando há real risco de fuga do processado; 3) com vistas a garantir a ordem pública e a ordem econômica, quando há alta probabilidade de que novo crime seja cometido.

Ainda no tocante ao respeito à lei e aos direitos humanos, o uso abusivo da prisão provisória é medida extremamente deletéria. Além de desrespeitar garantias básicas do cidadão, a imposição da prisão em caráter provisório gera também altos custos sociais contribuindo para diluir laços familiares, profissionais e submetendo os presos a estigmas sociais. Não à toa, os índices de reincidência no país chegam a 85%.(2)

Os elementos supramencionados já seriam suficientes para uma condenação ao uso desmedido da prisão provisória. De todo modo, ainda é possível elencar outras razões que justificam um debate franco sobre o tema e a premente necessidade de mudanças.

A segurança pública também é penalizada com o uso excessivo da prisão provisória, pois o encarceramento desses acusados deteriora a situação das já superlotadas e precárias penitenciárias brasileiras. Novamente, abre-se enorme espaço para a violação de direitos humanos, especialmente tendo em vista casos recentes, como as penitenciárias de Pedrinhas, Cascavel e Porto Alegre. Mas não apenas isso. A alocação desses acusados em presídios sem garantia à integridade física e, muitas vezes, sem qualquer separação entre presos aguardando julgamento e presos cumprindo pena nem entre presos que cometeram crimes com diferentes graus de violência, expõe essas pessoas a um possível recrutamento pelo crime organizado, que tem ganhado cada vez mais força em nosso sistema penitenciário e cujas consequências sentimos todos na segurança pública.

Por fim, do ponto de vista da gestão pública, a manutenção desses presos custa R$ 1.350(3) por mês, além de toda a estrutura subjacente a esse processo, significando um enorme desperdício de recursos públicos, o que é absolutamente injustificável em um país como o Brasil, carente de recursos para investimento em todas as áreas. A gestão mais eficiente da justiça criminal brasileira passa necessariamente por uma abordagem mais racional à questão dos presos provisórios.

Tendo em vista essas preocupações, em 2011 o Congresso Nacional aprovou e a presidente da República sancionou a Lei 12.403, conhecida como a Lei das Cautelares. Essa lei alterou o Código de Processo Penal para permitir que juízes possam aplicar diversas medidas cautelares e, em alguns casos, delegados possam arbitrar fiança aos presos em flagrante, de modo que estes possam aguardar o julgamento sem estarem em cárcere. As medidas cautelares diversas da prisão são as seguintes:

pagamento de fiança;

proibição de ausentar-se da comarca;

monitoração eletrônica;

prisão domiciliar;

comparecimento periódico em juízo;

recolhimento domiciliar em período noturno;

proibição de acesso ou frequência a determinados lugares;

proibição de manter contato com determinada pessoa;

suspensão do exercício da função pública e internação provisória.

É importante observar que, até a aprovação da Lei das Cautelares, os magistrados apenas podiam optar entre a privação da liberdade (prisão provisória) e a liberdade com ou sem condições impostas – as condições previstas eram o pagamento de fiança, o comparecimento periódico em juízo e a proibição de se ausentar da comarca. Nesse sentido, a lei representou um importante marco com o propósito de introduzir relevante rol de alternativas à prisão provisória. No entanto, como as leis nem sempre produzem os resultados esperados quando de sua concepção, é fundamental seu monitoramento e avaliação constantes.

Pesquisa

Diante desse quadro, o Instituto Sou da Paz elaborou uma análise sobre o impacto da Lei das Cautelares na cidade de São Paulo no ano seguinte à sua aprovação, com vistas a compreender como se dava a aplicação da lei na cidade, os avanços e limitações a ela relacionados.

A pesquisa “O impacto da lei das cautelares nas prisões em flagrante na cidade de São Paulo”(4) comparou 4.614 prisões em flagrante, realizadas na cidade entre os meses de abril e julho de 2011, e 5.517 realizadas no mesmo período de 2012, enquanto seus processos tramitavam no DIPO (Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária). O DIPO reúne os inquéritos policiais em trânsito entre delegacias e o Fórum Criminal da Barra Funda (exceto os que apuram crimes dolosos contra a vida e crimes previstos na Lei Maria da Penha), entre os quais analisamos os flagrantes referentes a crimes dolosos.

É importante ressaltar que a pesquisa apenas atentou para a concessão de liberdades no primeiro momento no âmbito do DIPO, não acompanhando o desenvolvimento do processo nas Varas Criminais. Isso significa que a pesquisa não permite atestar quantos presos em flagrante efetivamente responderam ao processo em liberdade, apenas a quantos deles a liberdade provisória foi concedida nessa etapa. A pesquisa também teve uma análise qualitativa com base em questionários direcionados aos principais operadores de Direito, como delegados, juízes, promotores e defensores.

O perfil dos presos em flagrante manteve-se constante entre os dois períodos, o que permitiu a comparabilidade da pesquisa e a garantia de que as alterações observadas deviam-se à aprovação da nova lei. Vale destacar alguns dados referentes aos presos em flagrante na coleta de dados de 2012: os presos eram majoritariamente homens (93,5%), tinham entre 18 e 25 anos (54%) e haviam cursado apenas o ensino fundamental completo (57,7%). O crime mais cometido foi o roubo (30,6%), seguido do furto (23,4%) e do tráfico de drogas (21,5%). Por último, aparecem a receptação (13,6%) e os delitos previstos no Estatuto do Desarmamento (4,7%), evidenciando que a maioria dos presos é acusada de crimes menos graves, os quais poderiam ser beneficiados pela concessão de medidas cautelares. Reforça essa percepção o fato de que apenas 11% dos presos utilizaram arma de fogo, sendo que 71,2% não utilizaram nenhum tipo de arma. Além disso, 48,1% deles não tinham antecedentes criminais.

Resultados

A Lei das Cautelares trouxe impactos positivos no número de presos provisórios em São Paulo. As liberdades concedidas triplicaram, passando de 12,1% em 2011 para 38,7% em 2012. Destas, 34,3% foram concedidas condicionadas ao cumprimento de medidas cautelares alternativas à prisão, o que mostra o papel relevante que a lei teve na concessão de liberdades. Tendo em vista que a prisão provisória deveria ser utilizada de forma excepcional, é possível dizer que permanece alto o número de prisões em flagrante que são convertidas, como primeira medida cautelar, em prisão provisória.

Gráfico 1 – Comparação da liberdade concedida em 2011 e 2012

É importante destacar que os juízes concederam liberdade provisória sem cautelar a apenas 3,3% dos presos, representando uma diminuição em relação ao ano anterior, o que fundamenta uma percepção expressada por defensores públicos entrevistados ao longo da pesquisa de que, por vezes, passou-se a aplicar fiança em casos em que antes a liberdade provisória era concedida sem cautelares. Nota-se, nesse sentido, uma deterioração de parte da liberdade concedida.

As cautelares foram aplicadas predominantemente a crimes não violentos contra o patrimônio, como furto e receptação. Na sequência aparecem os crimes que se referem a violações ao Estatuto do Desarmamento. Crimes como roubo e tráfico de drogas não foram contemplados com cautelares diversas da prisão.

Gráfico 2 – Distribuição do arbitramento de fiança por autor segundo tipo penal

Esses dados apontam para a possibilidade de expansão na aplicação das cautelares. Se nos ativermos apenas aos crimes sem violência, para os quais há maior aceitação popular e dos operadores do Direito para a aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão, seria perfeitamente plausível estender sua aplicação aos pequenos traficantes – aqueles apreendidos com pouca droga, sem antecedentes criminais, que não integram facção criminosa e não portam armas, exatamente os que compõem a maioria dos presos por tráfico no estado de São Paulo e no país. Retomando o argumento apresentado na Introdução, o encarceramento indiscriminado dos pequenos traficantes é não apenas inócuo para a segurança pública por serem rapidamente substituídos, mas também contraproducente, especialmente tendo-se em vista as condições das penitenciárias e os custos sociais daí advindos.

Em que pese a grande variedade de medidas cautelares disponíveis, a opção pela fiança predominou em São Paulo, tendo sido aplicada a 70% dos presos em flagrante que obtiveram a decisão de liberdade com cautelar. As demais cautelares foram concedidas a apenas 7,1% dos presos em flagrante sendo que apenas três outras medidas cautelares foram utilizadas: proibição de se ausentar da comarca, recolhimento domiciliar noturno e comparecimento periódico em juízo.

Tabela 1 – Distribuição das prisões em flagrante na cidade de São Paulo em 2012 segundo condição de liberdade com e sem cautelar, por tipo de medida e autor da decisão (em %)

Chama a atenção o fato de que três dessas medidas já estavam previstas na legislação anterior à Lei das Cautelares, o que reforça a necessidade de explorar mais fortemente o potencial trazido pela nova norma. Essa coincidência enfraquece o argumento utilizado antes da aprovação da Lei de que as alternativas à prisão disponíveis eram insuficientes ou inadequadas, mostrando que havia uma boa margem para a ampliação de sua utilização. Além disso, vale destacar que a utilização conspícua da fiança não reflete o principal argumento apresentado pelos juízes nas entrevistas, qual seja, o de que as cautelares têm como objetivo principal manter o réu vinculado ao processo. Tal vinculação estaria mais bem caracterizada pelo comparecimento periódico em juízo, medida que foi aplicada a apenas 1,3% dos casos.

A ampliação da competência atribuída aos delegados de polícia, que passaram a arbitrar fiança às infrações cuja pena máxima não exceda quatro anos, foi fundamental para o constatado aumento das liberdades e ajuda a explicar a ampla aplicação da fiança. Concedendo esta medida cautelar a 62,5% dos casos em que poderiam aplicar a medida, os delegados foram responsáveis pela concessão de liberdade a 15,8% dos presos em flagrante. Tal número só não é maior porque apenas 24% dos presos eram acusados de crimes passíveis de concessão de liberdade pelos delegados.

É importante esclarecer que o predomínio da fiança também está ligado à fragilidade dos mecanismos de fiscalização que restringiram a utilização de outras cautelares. O monitoramento eletrônico, medida mais bem avaliada por juízes e promotores, não era concedido, pois não havia equipamentos disponíveis para sua aplicação. Tal situação permanece até o momento, passados três anos da aprovação da lei. O governo e a Justiça estaduais, que já têm grupo de trabalho sobre o tema, precisam tratá-lo com a devida prioridade e celeridade, dado seu potencial de impacto para a redução do número abusivo de prisões provisórias.

Conclusão

A aprovação da lei foi positiva, pois ampliou o leque de opções aos juízes e delegados em relação aos presos em flagrante e, de fato, impactou de forma positiva reduzindo a quantidade de pessoas que aguardam presas por seus julgamentos.

A despeito dessa constatação, ainda há muito espaço para melhorias. Em primeiro lugar, a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão deve ser estendida, pois não é possível que mais de 60% dos presos em flagrante permaneçam encarcerados enquanto aguardam seu julgamento. Isso é particularmente visível no caso dos pequenos traficantes. Os presos por tráfico de drogas no Brasil já somam 25% da população carcerária, um aumento desenfreado em relação a 2006, quando equivaliam a 14% do total de presos. É sempre importante frisar que o ímpeto encarcerador não veio acompanhado de melhorias nos índices de segurança pública. Por fim, destaca-se a premente necessidade de que os mecanismos adequados para a fiscalização da lei estejam disponíveis. Isso significa que os Poderes Executivo e Judiciário em âmbito estadual não podem furtar-se a dar uma resposta ao problema que já se alonga por três anos.

É urgente racionalizar o sistema de justiça criminal brasileiro, especialmente quanto ao uso indiscriminado da prisão provisória. Modernizar essa política significa frear o uso da prisão como panaceia para os conflitos sociais e incentivar o uso de mecanismos alternativos à prisão para os crimes menos graves, garantindo a responsabilização mais eficiente e capaz de contribuir para a ressocialização dos presos.

Notas

(1) Essas proporções de presos provisórios ocorrem quando se levam em conta as prisões domiciliares no número total de presos. Descontando-se o número de presos domiciliares, a proporção de presos provisórios no Brasil atinge 40% no País e 32% em São Paulo.

(2) Texto sobre Alternativas Penais no portal eletrônico do Ministério da Justiça. Fonte: Ilanud; Nunes, Adeildo, 1996. Disponível em: <http://goo.gl/ex9zzb>.

(3) Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo.

(4) Disponível em: <http://bit.do/leidascautelares>.

Marcello Fragano Baird
Doutorando em Ciência Política pela USP.
Professor de pós-graduação da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo.
Coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz.

Natália Pollachi
Mestranda em Relações Internacionais pela USP.
Assistente executiva do Instituto Sou da Paz.



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