Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi, Rafael Lira e Renato Stanzio
Autor: Maria Thereza Rocha de Assis Moura
A vigente Constituição da República estabeleceu, em seu art. 5.º, XLIII, que: “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
Em 25 de julho de 1990 entrou em vigor a Lei 8.072, que definiu, em seu art. 1.º, os crimes considerados hediondos; dispôs, no art. 2.º, II, que os crimes hediondos e os a ele equiparados são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória; e no § 1.º do art. 2.º, estabeleceu que, nesses casos, a pena deveria ser cumprida integralmente em regime fechado.
Nos seus 20 anos de existência, o Boletim IBCCRIM dedicou espaço a inúmeras manifestações contrárias à formulação contida na mencionada lei, sendo Alberto Silva Franco um de seus mais enfáticos críticos.(1) Na palavra do nosso sempre Mestre: “Crime com tal denominação jurídica não tem antecedente no Direito Penal brasileiro, nem origem em Direito Penal alienígena. Além disso, a expressão crime hediondo é totalmente estranha ao discurso criminológico. Cuida-se portanto, de nomenclatura penal sem passado, não demarcada com precisão pelo legislador constituinte e carente de explicitação, nos seus elementos de composição, por parte do legislador infraconstitucional. Por que um crime se torna hediondo? Essa é a indagação fulcral que demanda resposta. Não basta recorrer aos dicionários da língua portuguesa para desvendar a área de significado do conceito de hediondez. Definir a partir daí o que seja crime hediondo é um mero exercício de tautologia. Não é essa a missão do legislador penal; ela é bem outra. Sua obrigação, diante de bem jurídico necessitado de tutela penal, consiste em descrever as ações mais significativas que possam ofendê-lo, cominando sanções punitivas a quem as infringir”.(2)
Além da problemática contida na consideração típica da hediondez,(3) a Lei trouxe várias distorções jurídicas, sobressaindo-se duas delas, a saber: a proibição do regime progressivo de penas e da liberdade provisória. Abordaremos, em breves linhas, a problemática do regime de cumprimento de penas, tanto na redação original da Lei dos Crimes Hediondos como na redação dada pela Lei 11.464/2007.
A proibição do regime progressivo de penas na redação original da Lei 8.072/1990
A Lei 8.072/1990, ao estabelecer em seu art. 2.º, § 1.º, que a pena deveria ser cumprida integralmente em regime fechado, negou aos condenados por crimes hediondos e a ele equiparados o regime progressivo de penas, ferindo o princípio constitucional da individualização da pena (art. 5.º, XLVI).
O IBCCRIM, atento à necessidade de se respeitar a garantia da individualização da pena e de se adotar um sistema de progressividade pelo legislador ordinário, sustentou que, como a Constituição da República não deu poder para que o legislador comum tornasse inócuo o cânone constitucional, a Lei 8.072/1990 andou na contramão de direção da constitucionalidade ao proibir o regime progressivo de cumprimento de pena. Como advertiu o Instituto: “Ademais, se a intenção do legislador constituinte fosse deixar, à livre disposição do legislador comum, o preenchimento integral do conceito de individualização da pena, não seria mais apropriado suprimi-lo do contexto constitucional? O § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/90, na medida em que submetia o condenado, por crime hediondo, a um regime prisional integralmente fechado, sem oportunidade de uma abertura progressiva para a liberdade, atritava com o art. 5.º, inc. XLVI, da Constituição Federal. O legislador comum dispõe, na matéria, de um amplo raio de atuação: não lhe é reconhecida, porém, a competência para violar o núcleo essencial da individualização da pena enquanto direito e garantia fundamentais”.(4)
Somente em fevereiro de 2006, quando decorridos quase dezesseis anos da entrada em vigor da Lei 8.072/1990, o STF proclamou, em histórica decisão, a inconstitucionalidade da proibição do regime progressivo nos crimes hediondos e a eles equiparados, ao julgar o HC 82.959, de que relator o Min. Marco Aurélio. O Plenário daquela Corte, por apertada maioria de votos (6x5), passou a admitir a progressão de regime aos condenados por tais crimes.
E, embora a decisão do STF tenha ocorrido em sede de controle difuso de constitucionalidade, acabou por conferir efeitos ex nunc (isto é, a partir da decisão de inconstitucionalidade) e operando os seus efeitos com extensão erga omnes, independentemente de resolução do Senado Federal, como explica Fernanda Teixeira Zanoide de Moraes.(5) É que aquela Corte explicitou, no acórdão, que “a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará consequências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão”.
A alteração trazida pela Lei 11.464/2007
Logo após o julgamento do HC 82.959/SP, pelo STF, o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional projeto de lei alterando a Lei 8.072/1990, para tornar suas disposições compatíveis com a Constituição da República. Tal projeto, com as modificações levadas a efeito nas Casas Legislativas, resultou na Lei 11.464/2007.
De acordo com a nova redação dada ao art. 2.º, § 1.º, da Lei 8.072/1990, a pena por crime previsto nesse dispositivo deveria ser cumprida inicialmente em regime fechado. E a dúvida persistiu: esse dispositivo, em sua nova redação, continuaria a violar o princípio constitucional da individualização da pena?
Não se pode ignorar que, mesmo quando se trata de crime hediondo ou a ele equiparado, a fixação do regime há de levar em consideração as circunstâncias do art. 59 do CP, além das disposições relativas à quantidade da pena, devendo ser avaliadas as circunstâncias do caso analisado. E, dentro deste contexto, a nova previsão legal também pecou pela ofensa ao princípio da individualização da pena, ao impor que todos os condenados, nesses casos, indistintamente, iniciem o cumprimento da pena em regime fechado. Como bem ressaltado pelo Min. Og Fernandes: “Olegislador pátrio, atento à referida evolução jurisprudencial, editou, em 28.3.07, a Lei 11.464, que, modificando a redação da Lei 8.072/90, derrogou a vedação à progressão de regime, estabelecendo que a pena a condenados por crimes hediondos, tortura, tráfico de drogas e terrorismo devem ser descontadas apenas inicialmente no regime fechado. No entanto, persistiu – e ainda persiste – a ofensa ao princípio da individualização pena. Ora, se o dispositivo responsável por impor o integralcumprimento da reprimenda no regime fechado é inconstitucional, também oé aquele que determina a todos – independentemente da pena a ser descontada ou das nuances do caso a caso – que iniciem a expiação no regime mais gravoso”. Para então concluir: “(...) a aplicação literal do dispositivo inserido na Lei dos Crimes Hediondos, alheia às peculiaridades do caso concreto acarretaria inafastável ofensa aos princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da efetivação do justo. Isso porque se estaria a lançar o condenado a uma pequena sanção a cumpri-la no regime mais rigoroso”.(6)
Certo é que, em 27 de junho de 2012, o Plenário do STF concluiu o julgamento do HC 111.840/ES, tendo como relator o Min. Dias Toffoli, e, por maioria de votos (8x3), declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/1990, com a redação dada pela Lei 11.464/2007, por entender que o dispositivo contraria a Constituição da República, especificamente no ponto que trata do princípio da individualização da pena (art. 5.º, XLVI).(7) A ordem foi concedida para remover o óbice constante do art. 2.º, § 1.º, da Lei 8.072/1990, desta feita com a redação dada pela Lei 11.464/2007, sendo certo que a declaração incidental de inconstitucionalidade tem efeito ex nunc. O acórdão ainda não foi publicado.
É bem verdade que o Pleno do STF, no julgamento do HC 97.256, em 16.12.2010, sendo relator o Min. Ayres Britto, já havia declarado incidentalmente a inconstitucionalidade, também com efeito ex nunc, da proibição de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos, removendo o óbice da parte final do art. 44 da Lei 11.343/2006, bem como a expressão análoga constante do § 4.º do art. 33 do mesmo diploma legal, e remetendo a análise dos requisitos ao Juízo da execução penal. Como decorrência, sobreveio, em 16.03.2012, a Resolução 5 do Senado Federal, que suspendeu a execução da expressão “vedada a conversão em penas restritivas de direitos”, prevista na Lei 11.343/2006. Com tal julgamento, era mesmo de se esperar que o regime de penas viesse a receber igual tratamento.
Em ambas as oportunidades em que o STF declarou a inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/1990, fez prevalecer a garantia constitucional da individualização da pena, para admitir o início do cumprimento da pena em regime diverso do fechado aos condenados pela prática de crimes hediondos ou a ele equiparados. Isso fortalece os ideais democráticos, defendidos de forma enfática pelo IBCCRIM, nos seus 20 anos de existência, e engrandece o papel da Suprema Corte, de guardiã das garantias constitucionais
Notas:
(1) V. entre outros, Crimes hediondos: uma alteração inútil. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 16, p. 8, maio 1994; O regime progressivo em face das Leis ns. 8.072/90 e 9.455/97. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 58, p. 2, E. Esp., set. 1997;Crime hediondo: um conceito-fantasma à procura de um legislador penal. Boletim IBCCRIM,São Paulo, v. 13, n. 161, p. 12-13, abr. 2006.
(2) Cf. Crime hediondo: um conceito... cit., p. 12-13.
(3) Veja-se mais uma vez Alberto Silva Franco: “Como atribuir um juízo correto de constitucionalidade ao crime hediondo que não passa de verdadeiro conceito-fantasma, um simbólico saci-pererê, que se sustenta apenas com o pé da repressão punitiva e se diverte usando seus poderes mágicos para dar à população a ilusória ideia de que adquiriu segurança? Como não considerar a conflitância escancarada entre o princípio constitucional da legalidade e a carência de definição do crime hediondo, provocadora, no entanto, de penas arbitrariamente valoradas pelo legislador infraconstitucional?” (idem, ibidem).
(4) Cf. Crimes hediondos: inconstitucionalidade da proibição do regime progressivo. Editorial do Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 13, n. 161, abr. 2006.
(5) Cf. O STF foi além da progressão do regime prisional. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 13, n. 161, abr. 2006, p. 2-3.
(6) Cf. voto proferido no HC 149.807/SP, 6.ª T., j. 06.05.2010, DJe 20.09.2010.
(7) Cf. Noticia do Portal do STF, Quarta-feira, 27.06.2012.
Maria Thereza Rocha de Assis Moura
Ministra do Superior Tribunal de Justiça.
Professora Doutora de Direito Processual Penal da USP.
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