INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - Ed. Especial 20 anos





 

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Conselho Editorial

IBCCRIM - 20 ANOS: sem medo de existir

Autor: Sérgio Salomão Shecaira

Aqueles que têm a chance de dedicar suas vidas ao estudo do mundo social não podem recolher-se, neutros e indiferentes, diante da luta da qual a aposta é o futuro do mundo
(Pierre Bourdieu)

O nascituro IBCCRIM, ainda no ventre da mãe, acolhido e recolhido, amparado e confortável, não tinha o medo de existir. Queria viver a vida, refletida. Pois são essas as vidas que valem à pena serem vividas.

Recém-nascido, tateava como se fosse um carro na neblina. Sua vista, embora certeira e descansada pelo pouco uso, tinha sua visão reduzida pelo entorno. Evitar buracos, fugir de valetas ou contornar as adversidades estavam dificultados pela redução da visibilidade. O caminho, certeiro, da defesa incondicional dos valores humanistas tão caros ao Estado Democrático de Direito, já estava traçado, não importando que o legislador, alguns operadores do direito e a mídia somente valorizassem o Direito Penal em seu aspecto simbólico.

Nos últimos 20 anos, o Brasil viveu – e vive – uma verdadeira fobia: um medo exagerado e desproporcional que fomenta uma verdadeira indústria punitiva. A fobia no Brasil ganhou foros de um resíduo irresolvido de nossa história recente, que projeta para os outros as falhas de nossa própria existência. O medo, diferentemente da fobia, é um sentimento que nos avisa de um perigo, exige do ser humano uma atitude de retirada de um local ou um ataque para se evitar um dano efetivo à pessoa. Nesses momentos, o organismo humano se prepara para uma ação rápida, forte e intensa que se consubstancia em um sentimento fundamental para a proteção da espécie, pois nasce de algo iminente.

A Modernidade Líquida, como nos diz Bauman, aprofundou os medos. Se na Idade Média, os cidadãos estavam abraçados pelos muros das cidades, e, por isso, sentiam-se protegidos; os medos estavam muito mais nas estórias de atores errantes que na realidade de seu cotidiano. Na Modernidade, o acolhimento, quase como um útero materno, era a guarida que o Estado de Bem-Estar oferecia. Proventos na velhice ou pensão na doença tinham o mesmo significado da mão forte paterna que transmite segurança ao filho no atravessar a rua. Mas a Modernidade Líquida liquida os valores da segurança e acolhimento. Pensões, aposentadorias e outros direitos são revistos. Empregos são sacrificados em nome dos valores do mercado. Fábricas antigas são levadas para mercados mais emergentes que o nosso emergente mercado. Novos pobres se somam aos velhos convivendo com a sempre florescente riqueza. Alguns poucos novos ricos convivem com muitos novos pobres. Dessa delicada tensão nascem novos abismos sociais que aprofundam o sentimento de medo. Medo do novo que desconhecemos e do velho que já conhecemos.

Quem não sentiu receio pelo sinistro “bug do milênio”? Temor pelo mal da vaca louca? Apreensão pela gripe aviária ou suína, pandemias que ameaçariam a humanidade? Ansiedade com alimentos geneticamente modificados ou com as poderosas gorduras trans?(1) Quem não temeu por ataques terroristas – tão distantes e tão pertos – que se somariam aos velhos criminosos de rua, muito conhecidos dos moradores de nossas grandes urbes?

Traiçoeiros e sinistros criminosos, homicidas que atiram filhas pelas janelas, criminosos seriais, ladrões cada vez mais ousados, criminosos de colarinho branco que saqueiam o tesouro, empresários sonegadores, políticos que ganham salários extras do Executivo, banqueiros evadidos e capturados gastando nosso dinheiro em Mônaco, piratas que abandonarão um dia o Chifre da África para enterrarem o chifre aqui no Brasil, tudo e todos nos assustam criando uma demanda por nova punição.

A cegueira obtusa que turva a lucidez da mente está sempre exigindo novas medidas penais. Já criança, o IBCCRIM tinha sua ideia de Direito Penal: mínimo e efetivo. Antítese do máximo e simbólico. As penas poderiam integrar-se ao processo de formação do povo, mas nunca serem elas próprias exemplos para o povo. A privação da liberdade – remédio extremo – estaria para o sistema punitivo como a morfina está para outros medicamentos. Mas o medo de doenças potencializam os remédios, assim como novos crimes e novas penas são resultado da fobia penal. A febre do uso de álcool em gel está para os germes como novas redes punitivas estão para o sistema de controle social.

Se tudo isso não bastasse, depois de inúmeras reformas pontuais maximizadoras do sistema de controle formal, o Senado constitui Comissão de Juristas que pretende cristalizar o novo punitivismo calcado no medo. Já que a criminalidade campeia e nos assusta, melhor do que corrigir nossas disparidades sociais, sanear a economia, dar novos rumos aos empregos e salários, é aumentar o catálogo criminal, com indefectíveis aumentos de pena.

20 anos trouxeram ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais a maturidade para refletir sobre o passado e discernir que, a despeito de alguns erros, o caminho da defesa da substituição do Estado Penal pelo Estado de Bem-Estar ainda é o caminho correto; a faixa etária mais provecta autoriza a pensar que legislar com e pelo medo é a pior receita para combater criminalidade. Ampliar o controle penal não conduz à diminuição da criminalidade, mas ao encarceramento daqueles consumidores falhos de uma sociedade de consumo assimétrica e deformada.

20 anos foram necessários para termos influenciado na formação de uma geração de estudiosos, de doutrinadores e pesquisadores na Academia, Desembargadores e Ministros, na formação de uma doutrina democrática que produz frutos no âmbito da própria criação legislativa. Talvez seja interessante lembrar as possibilidades descortinadas com nosso acesso ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária para que o processo de modificação da legislação em vigor possa, gradativamente, ser adequado aos interesses da maioria por meio da implantação do ideário democrático do IBCCRIM.

Talvez, nos próximos anos, calcado na experiência dos últimos 20, ainda possamos realizar nossos ideais, sem medo de existir.

Nota

(1) Bauman, Zigmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro, Zahar, 2008. p. 14.

Sérgio Salomão Shecaira
Ex-Presidente do IBCCRIM (1997/1998).
Professor Titular da USP.



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