INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 237 - Agosto /2012





 

Coordenador chefe:

Fernanda Regina Vilares

Coordenadores adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

O DIREITO POR QUEM O FAZ - Direito Processual Penal. Regime ditatorial. Sequestro e cárcere privado. Crime permanente. Crimes contra os Direitos Humanos. Anistia (Crimes políticos). Constitucionalidade da Lei. Denúncia inepta. Falta de pressuposto processual. Falta de justa causa.

10.ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP Processo nº 0004204-32.2012.403.6181 j. 22.05.2012

“Decido.

As questões trazidas pelo Ministério Público Federal já foram objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da (...) ADPF - nº 153/DF.

(...)

Por todo o exposto, pode-se asseverar que os crimes praticados durante o período do regime militar foram anistiados.

(...)

O Ministério Público Federal busca com esta denúncia reabrir a questão, dando aos fatos nova qualificação jurídica. E o faz supostamente apoiado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal manifestada nos processos de Extradição nºs 974 e 1150. Conquanto o crime de homicídio não possa mais ser punido, quer por estar prescrito quer por estar abrangido pela Lei de Anistia, o mesmo não ocorre em relação ao delito de seqüestro, sustenta o Parquet. Este delito tem natureza permanente e, consoante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o prazo prescricional começa a fluir a partir da cessação da permanência e não da data do início do seqüestro. Aduz que há prova material apenas no que se refere ao delito de seqüestro, não havendo certeza quando à morte da vítima. (...) Desta forma, como não é possível afirmar-se que a vítima esteja morta, conclui-se que está viva e mantida ilegalmente privada de sua liberdade sob o poder e responsabilidade dos dois denunciados. (...) entendo que o pedido do Parquet não encontra amparo na realidade fática.

A vítima foi levada às dependências do DOI-CODI no dia 6 de maio do ano de 1971. Conforme relato de testemunhas, no dia 13 de maio do mesmo ano foi transferida para uma residência em Petrópolis, permanecendo no local até o dia 15 do mesmo mês. Em seguida, retornou para o DOI-CODI. São do mês de maio de 1971, portanto, as últimas notícias que temos dela.

A.P.P.F. nasceu em 5 de setembro de 1922. Portanto, teria hoje cerca de noventa anos. A tese ministerial já mereceria descrédito apenas considerando-se a suposta idade atual da vítima em um país cuja expectativa de vida, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, é de aproximadamente setenta e três anos - idade que, com certeza, não atingiria caso ainda estivesse em cativeiro.

(...)

Na hipótese dos autos, são decorridos mais de quarenta anos sem notícias da vítima. Há mais de trinta o país vive período de estabilidade institucional. E mais, há relato nos autos de que A.P.P.F. teria sido morto sob tortura. Sob tais circunstâncias, é improvável que ainda esteja vivo e mantido privado de sua liberdade pelos denunciados.

O Ministério Público Federal argumenta que o Ministro Cezar Peluso teria afirmado, no mesmo julgamento, que, em caso de desaparecimento de pessoas seqüestradas por agentes estatais, somente uma sentença na qual esteja fixada a data provável do óbito seria apta a fazer cessar a permanência do crime de seqüestro, pois sem ela o homicídio não passaria de mera especulação, incapaz de desencadear a fluência do prazo prescricional:

(...)

Impende ressaltar que a hipótese que estava em apreciação quando do julgamento da Extradição nº 974 era diferente da que ora se apresenta, envolvendo sequestro de menores. Ademais, o voto do Ministro Cezar Peluso deve ser interpretado dentro de um contexto de razoabilidade e tendo em vista o caso concreto. No caso em apreço, teríamos que aceitar estar a vítima em cárcere há mais de quarenta anos e ainda viva, mesmo aos noventa anos de idade!

Esta discussão, todavia, é irrelevante, pois, não obstante não haja notícia de declaração judicial de morte presumida, há lei com tal teor. Com efeito, foi promulgada a Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

(...)

Assim, de duas situações, uma terá ocorrido. Ou a vítima faleceu em 1971, situação mais provável, vez que dela não se teve mais notícias após esta data, hipótese que estaria

albergada pela Lei de Anistia; ou, utilizando-se a tese ministerial, teria permanecido em cárcere até 4 de dezembro de 1995, data que foi sancionada a Lei nº 9.140, não se podendo falar na continuidade do delito a partir de então, em razão de ter sido reconhecida a sua morte.

Seja qual for o termo inicial considerado, o delito já está prescrito. Considerando-se o pior dos cenários, ou seja, ter perdurado o sequestro até o mês de dezembro de 1995, ainda assim teria ocorrido a prescrição, uma vez que a pena máxima do sequestro é de oito anos com lapso prescricional, em abstrato, de doze anos (CP, art. 148, 2º e 109, III).

O Parquet afirma que a Lei nº 9.140/1995 foi editada com o simples objetivo de favorecer os familiares dos desaparecidos políticos e que seria impensável que o Estado pudesse decretar a morte de uma pessoa por intermédio de uma lei. Continua asseverando que nem mesmo para fins civis há uma presunção absoluta de óbito, tanto que seu art. 3º, parágrafo único, determina a justificação judicial em caso de dúvida.

Afirme-se, inicialmente, que, ao contrário do alegado pelo Ministério Público Federal, a Lei reconheceu a morte da vítima para todos os efeitos legais (...). Desta feita, evidentemente, a Lei nº 9.140 pode ser utilizada para reconhecer a morte da vítima, mesmo porque, do contrário, o delito poderia tornar-se imprescritível, haja vista a possibilidade de não se obter a sentença declaratória de ausência após a edição da citada lei.

A par de todos os argumentos já expostos, não se deve olvidar que o Código de Processo Penal dispõe, em seu art. 41, que ‘a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas’.  Cabe, assim, ao Ministério Público Federal demonstrar na peça inaugural a presença dos elementos essenciais para o recebimento da denúncia. (...).

A afirmação é totalmente dissociada da realidade. A prevalecer o argumento do Ministério Público Federal, se tal declaração judicial de morte presumida não for obtida nos próximos cinquenta anos, por exemplo, deveremos concluir que a vítima terá permanecido viva e em cárcere durante todo o período, ou seja, que estaria viva e privada de sua liberdade aos cento e quarenta anos de idade.

Algumas considerações são necessárias acerca da declaração de ausência. A existência da pessoa natural termina com a morte, que pode ser real ou presumida. A declaração judicial de morte presumida pode ocorrer com ou sem a declaração de ausência. Admite-se tal declaração sem decretação de ausência nos casos definidos no art. 7º do Código Civil:

(...)

Quando não estiverem presentes as hipóteses do referido artigo, o caminho a ser seguido consta dos art. 22 e seguintes do Código Civil e requer a declaração de ausência.

Verificado o desaparecimento de uma pessoa do seu domicílio, o juiz declarará a sua ausência e nomear-lhe-á curador. (...) Dez anos após passar em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória poderão os interessados requerer a sucessão definitiva. Assim, presume-se a morte do ausente após dez anos do trânsito em julgado da sentença de abertura da sucessão provisória, conforme disposto no art. 6º do Código Civil: (...).

Maria Helena Diniz observa que a curadoria é dos bens do ausente e não da pessoa do ausente. Deste modo, não havendo bens, não subsistiria interesse na abertura do processo. Não é possível concluir-se daí, entretanto, que o ausente permanece vivo, a despeito de todas as evidências demonstrarem que ele está morto, apenas porque não houve interessado na abertura do processo cível. (...).

Em adição ao quanto já exposto, ressalte-se que o art. 335 do Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária, reza que ‘o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial’. No presente caso, a vítima está desaparecida há mais de quarenta anos. Mesmo após o término do regime de exceção não reapareceu.

Aplicando-se as regras de experiência e de bom senso, há apenas uma conclusão possível: a vítima está morta. Caberia ao Ministério Público Federal o ônus de provar que, contrariando todas as expectativas lógicas, A.P.P.F.,

aos noventa anos, estaria vivo e mantido privado de sua liberdade pelos denunciados. Tal certeza – morte da vítima – seria possível, acredito, independentemente da existência de declaração judicial, dada a realidade subjacente. Todavia, para espancar de vez quaisquer dúvidas, foi ainda reafirmada pela edição da Lei nº 9.140/95: ‘São reconhecidos como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias’.

A inversão do ônus da prova foi expressamente reconhecida pela referida Lei no parágrafo único do art. 3º, que, conquanto tenha reconhecido a morte dos indivíduos discriminados em seu anexo, abriu a possibilidade de comprovação em contrário. E esta era a missão do Ministério Público Federal, provar que a vítima está viva, apesar de todas as provas dizerem o contrário.

Muito embora o pano de fundo desta denúncia tenha sido o sequestro, é nítida a intenção do Ministério Público Federal em reabrir a discussão sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia. Tal objetivo encontra-se estampado a fls. 639: ‘ainda que se entenda, por qualquer motivo, que o fato imputado aos denunciados já se encontre exaurido, sustenta o Ministério Público Federal que a pretensão punitiva estatal não está extinta. Não se pode ignorar o efeito vinculante da Corte Interamericana de Direitos Humanos (...)’  no caso G. L. (Guerrilha do A.) vs Brasil, proferida em 24 de novembro de 2010. (...) o tribunal em questão declarou, com efeitos erga omnes, que as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana (...).

(...)

Ora, não é possível acolher o pedido sem desconsiderar a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 153, decisão esta, impende ressaltar, que tem eficácia erga omnes e efeito vinculante.

O Ministério Público Federal demonstra preocupação com as sanções a que estará sujeito o Brasil caso a denúncia não seja recebida, uma vez que ela tem, entre as suas finalidades, ‘prevenir futura nova condenação do Estado brasileiro pela omissão no cumprimento das obrigações voluntariamente assumidas junto ao sistema regional, notadamente no que se refere ao cumprimento das decisões emanadas da Corte Interamericana de Direitos Humanos’ (fls. 648).

Ocorre que o recebimento ou não da inicial é irrelevante para tal prevenção, pois, independentemente do resultado deste processo, o Brasil continuará a desrespeitar o julgado da Corte Interamericana, pois ainda restarão sem punição os casos de homicídio, tortura, etc. Com efeito, a decisão da referida Corte dispõe, expressamente, que a anistia brasileira não pode impedir a punição dos responsáveis por delitos contra os direitos humanos, ao passo que o teor do julgamento da ADPF nº 153 impede tal efeito.

Constata-se, destarte, a total incompatibilidade entre o decidido pelo Supremo Tribunal Federal e o decidido pela Corte Interamericana e, seja qual for o caminho escolhido, haverá o desrespeito ao julgado de uma delas. Entendo, assim, que somente o Supremo

Tribunal Federal tem competência para rever a sua decisão, devendo a questão ser novamente submetida à sua apreciação. Enquanto isto não ocorrer, não há como negar aplicação ao julgado de nossa Corte Constitucional.

Não vislumbro, por fim, qualquer intenção do Estado brasileiro na punição dos crimes cometidos no período de exceção. Isto foi afirmado pela Lei de Anistia e pela Emenda Constitucional nº 26/95, decidido pelo Supremo Tribunal Federal e reafirmado pela recente edição da Lei nº 12.528, de 18.11.2011. Esta Lei (...), criou no âmbito da Casa Civil da Presidência, a Comissão Nacional da Verdade. Conforme se verifica da leitura de seu texto, não tem o novo dispositivo o intuito de punir os autores dos delitos, mas apenas a finalidade de ‘examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8 o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional’ (art. 1º). Os objetivos da Comissão estão discriminados em seu art. 3º, não havendo, reforce-se, nenhuma menção à punição dos envolvidos.

(...)

Corroborando este entendimento, a presidente Dilma Rousseff, em recente entrevista, afirmou que ‘a comissão não abriga ressentimento, ódio nem perdão. Ela só é o contrário do esquecimento’ . Disse ainda que ‘não revogará a Lei da Anistia, que perdoou crimes cometidos por agentes do Estado no período’.

(...)

Sucede que nem este juízo, tampouco a Comissão da Verdade têm legitimidade para as mudanças propostas. De fato, outra interpretação da Lei de Anistia só poderá ser realizada pelo Supremo Tribunal Federal, ao passo que revogação da lei é de responsabilidade do Congresso Nacional. Mesmo nesta hipótese, nos termos do julgamento da ADPF nº 153, ainda haveria a discussão acerca das implicações desta possível revogação, uma vez que a referida lei teria a natureza de uma lei-medida dotada de efeitos concretos já exauridos.

O recebimento da denúncia implicaria, pois, por um lado, na desconsideração, por via oblíqua, de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em processo concentrado de controle de constitucionalidade e, por outro, na aceitação de tese ministerial comprovadamente dissociada da realidade.

Posto isso, rejeito a denúncia oferecida em desfavor de C.A.B.U. e D.G. quanto ao crime previsto no art. 148, 2º, c.c. o art. 29, ambos do Código Penal, com fundamento no art. 395, II e III, do Código de Processo Penal.

(...)

Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Cumpra-se.”

Márcio Rached Millani
Juiz Federal Substituto.



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