Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira
Autor: Celso Sanchez Vilardi
1. Introdução
A Lei 12.683, de 2012, foi anunciada como aquela que “endurece a repressão à lavagem de dinheiro”.(1) Apesar de ser, realmente, mais rigorosa, a impunidade não deve diminuir. Sem o rol taxativo, que contemplava apenas alguns crimes antecedentes, a nova Lei perde o foco.
Agora, o sistema brasileiro tem por objetivo punir qualquer lavagem de bem, direito ou valor provindo de infração penal. Uma lei como essa pode ser considerada moderna – ou de última geração – em alguns países da Europa. No Brasil, pesa dizer, é retrocesso: nosso Judiciário não está preparado para o número de processos novos; as polícias estaduais ainda não sabem investigar o crime de lavagem; e muitos operadores do Direito ainda confundem a ocultação da lavagem com o exaurimento do crime anterior, sem falar que, 14 anos após a edição da Lei 9.613, são poucos os casos que apuraram, de fato, a dissimulação e a reintrodução do bem, direito ou valor no sistema econômico com aparência de licitude.
Dentre as inúmeras alterações trazidas pela nova Lei, merece destaque a nova redação do inciso I do § 2.º do art. 1.º: “utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”. A redação antiga consagrava a ciência da proveniência ilícita: “utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo”.
Ao excluir a expressão “que sabe” o legislador, ao que parece, pretendeu tornar criminosa qualquer utilização de bem, direito ou valor na atividade econômica ou financeira. Ao que parece, tentou “endurecer” também essa conduta.
A tentativa, se é que foi essa, parece-me inócua. A ciência, pelo agente, da infração penal anterior e a vontade de utilizar o bem, direito ou valor, com aparência de licitude, na atividade econômica ou financeira permanecem inalteradas. Vejamos.
2. A utilização no processo de lavagem
De início, deve-se lembrar de que a lavagem é um processo(2) pelo qual o criminoso objetiva reintroduzir o bem, direito ou valor na economia legal, com aparência de licitude. Esse processo, em regra, é formado por três etapas distintas: a da ocultação, em que o criminoso distancia o bem, direito ou valor da origem criminosa; a etapa da dissimulação, por meio da qual o objeto da lavagem assume a aparência de lícito, mediante algum tipo de fraude; e a etapa da reintegração: feita a dissimulação, o bem, direito ou valor reúne condições de voltar à economia legal, ou seja, de ser reintegrado no sistema, como se lícito fosse.
Sendo assim, comete o crime de lavagem de dinheiro quem, dolosamente, pratica um ato que integra esse processo, seja na primeira fase de ocultação, seja na segunda, participando de qualquer forma da dissimulação, seja na terceira, utilizando o bem que, em virtude do procedimento dissimulatório, adquire aparência de licitude.
A utilização há de ser na atividade econômica. Segundo o Prof. Aclibes Burgarelli, a atividade econômica, em seu sentido mais amplo, “encerra no seu conteúdo, como espécie, três segmentos fundamentais, dentre os quais a atividade mercantil. Além dessa, tem-se a atividade de produção, de circulação de bens necessários, úteis ou desejados por um mercado de consumo; tem-se a atividade financeira, por meio da qual se utiliza a moeda como forma de ser propiciado o crédito, mediante certa remuneração (juros) e tem-se a atividade de prestação de serviços ou de tecnologia”.(3)
Pois bem. Na redação anterior o legislador considerava crime a utilização do bem, direito ou valor, com aparência de licitude, desde que o sujeito ativo soubesse da origem criminosa. O crime, então, consistia no fato de o sujeito aderir ao processo de lavagem, sabedor da origem do objeto da lavagem.
Na redação atual foi excluído o “que sabe” ser proveniente de infração penal. É de se perguntar: a mera utilização de um bem, direito ou valor proveniente de infração penal configura o crime de lavagem?
Está claro que não. Em primeiro lugar, ninguém pratica o crime de lavagem de dinheiro sem aderir ao processo acima comentado.
Não se deve falar em ocultação, tipificada pela lavagem, se não se provar que o agente oculta o dinheiro, com o objetivo de reintroduzi-lo na economia legal, após alguma dissimulação que vai lhe conferir aparência de licitude. Do contrário, será crime esconder o dinheiro embaixo da cama, após um roubo. É evidente que o legislador não pune a mera ocultação do objeto do roubo, mas apenas aquela que integra um processo de lavagem. Sem integrar esse processo, estamos diante de mero exaurimento da infração anterior.
Da mesma forma, não há como punir a mera utilização do dinheiro que provém de infração penal. De início, porque não se pune a utilização de bem, direito ou valor “sujo”, mas apenas daquele que possui aparência de licitude, ou seja, que passou por um processo dissimulatório, sem o qual não poderia ser inserido na economia; não poderia ser considerado “lavado”. Como bem pondera Marco Antonio de Barros, para configurar a utilização prevista no art. 1.º, o agente deve utilizar “o lucro ou patrimônio lavado, o qual se apresenta com aparência de legalidade”.(4) William Terra de Oliveira, ao comentar a redação antiga, lembra que “o tipo é de dolo direto” e que “se a fruição do dinheiro, bens ou valores é em proveito próprio, gerando uma vantagem para o próprio agente, estaremos diante de um tipo que muito se assemelha ao crime de receptação”.(5)
Mesmo sem a consagração da ciência inequívoca pelo legislador, o agente só poderá praticar o crime de lavagem se aderir ao processo ou não agirá com dolo: para tanto, deverá ter ciência de que o dinheiro provém de infração penal e que está sendo reinserido na economia após conquistar aparência de licitude, por meio de dissimulação.
A propósito do tema, ao comentar a consagração da ciência da proveniência ilícita no tipo penal, Blanco Cordero coloca uma pá de cal na discussão, ao afirmar que a menção ao conhecimento da origem criminosa é supérflua, tendo em vista que o dolo exige o conhecimento do delito prévio: “puesto que el dolo ha de abarcar todos os elementos del tipo, y dado que el elemento típico del delito de blanqueo es que el bien tenga origen delictivo, se infiere que ela autor a de conocer la comisión de um delito prévio”.(6)
Há mais, no entanto: além de conhecer que o dinheiro provém de uma infração penal, o agente deve estar ciente da aparência de licitude, sem a qual não estaria participando do processo de lavagem de dinheiro, mas da utilização de um dinheiro “sujo”.
Resta saber se é possível cogitar do dolo eventual. Em outras palavras, se o agente deve presumir que o bem tem origem em atividade criminosa e, ainda assim, o utiliza na atividade econômica financeira, estaria a praticar o crime de lavagem de dinheiro?
Novamente, penso que a resposta é negativa.
O fato de o agente utilizar bem, direito ou valor, ainda que tenha condições de intuir que a origem é criminosa, não se enquadra na hipótese de lavagem de dinheiro, por dolo eventual. Para demonstrar essa tese, cabe traçar um paralelo com o crime de receptação.
É que, como apontado acima, o tipo penal da utilização, no crime de lavagem de dinheiro apresenta grande semelhança com a receptação prevista no Código Penal. O art. 180 do CP, lembre-se, pune a conduta de “adquirir, receber transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar em proveito próprio ou alheio, no exercício da atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime”. Além disso, pune a receptação culposa quando o agente adquire ou recebe “coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, dever presumir-se obtida por meio criminoso”.
Ora, já se demonstrou acima que atividade comercial ou industrial integram a atividade econômica. Se é assim, a ocultação prevista no art. 180 do CP, só não é a mesma consagrada na lavagem, porque a última está atrelada a uma posterior dissimulação e tem por objetivo a reintrodução do bem, direito ou valor na economia. Tampouco a utilização no exercício da atividade comercial ou industrial se confunde com a utilização prevista na lei de lavagem, porque na receptação não é necessário que a utilização seja precedida de uma dissimulação a lhe conferir aparência de licitude.
Mas, as condições são muito semelhantes. Tal qual na receptação, a utilização na lavagem pode ser precedida do recebimento do bem, direito ou valor que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço ou mesmo pela condição de que a oferece deva-se presumir de origem ilícita. Mas, em função dessas características, a receptação é culposa.
Da mesma forma, pelo princípio da isonomia, quando tal ocorrer na lavagem, o crime deveria ser culposo, mas, como se sabe, o legislador não consagrou a forma culposa e, assim, não me parece razoável admitir o dolo eventual onde só se verifica culpa.
Daí se concluir que não há que se cogitar de dolo eventual.
3. Conclusão
Ao alterar o tipo previsto no inciso I do § 2.º do art. 1.º da Lei 9.613/1998, a nova lei excluiu a expressão “que sabe serem provenientes”, passando a tipificar a utilização de bem direito ou valor proveniente de infração, independentemente da ciência da origem criminosa.
A modificação, no entanto, não alterou o sentido da redação anterior. Sendo a lavagem de dinheiro um processo a que o agente adere dolosamente, só se pode cogitar de utilização de bem, direito ou valor, se ele souber da origem criminosa, da aparência de licitude e, ainda assim, decidir utilizá-lo.
A menção expressa à ciência da infração anterior, consagrada no antigo tipo penal, era supérflua, tendo em vista que o conhecimento da infração anterior integra o dolo típico do delito de lavagem de dinheiro.
O legislador não consagrou a lavagem culposa, não tendo sentido falar em dolo eventual na utilização de bem, direito ou valor, que por circunstâncias diversas deveria se presumir de origem ilícita, porque isso feriria o princípio da isonomia, quando se observa o crime de receptação culposa.
Notas
(1) Folha de S. Paulo, edição de 10.07.2012, A6.
(2) Segundo Blanco Cordero: “El proceso en virtud del cual los bienes de origen delictivo se integran en el sistema económico legal con apariencia de haber sido obtenidos de forma lícita”. (El delito de blanqueo de capitales en Derecho Español. Barcelona: Cedecs Editorial, 1996. p. 92).
(3) Burgarelli, Aclibes. Reflexões sobre sociedades simples no direito de empresa. Disponível em: www.professoramorim.com.br.
(4) Barros, Marco Antônio. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 185.
(5) Gomes, Luiz Flávio; Cervini, Raúl; Oliveira, William Terra de. Lei de Lavagem de Capitais: comentários à Lei 9.613/98. São Paulo: RT, 1998. p. 336.
(6) Cordero, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de capitales. 2. ed. Navarra: Aranzadi, 2002. p. 356.
Celso Sanchez Vilardi
Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP.
Coordenador e Professor do Curso de Especialização em Direito Penal Econômico da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (GV/Law).
Advogado.
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