Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira
Autor: Ana Maria de Souza Belotto, Antenor Madruga e Mariana Tumbiolo Tosi
Analisamos neste breve artigo a exigência de dupla incriminação (ou dupla tipificação) como requisito para a cooperação jurídica internacional em matéria penal, solicitada (cooperação ativa) ou provida (cooperação passiva) pelo Brasil, para investigação ou persecução penal de crime de lavagem de dinheiro.
Em regra, a cooperação jurídica internacional em matéria penal pode ser negada se os fatos objeto de investigação criminal ou de ação penal relacionada ao pedido não forem tipificados como crime no Estado Requerido. Princípio ainda firme na extradição,(1) a exigência de dupla incriminação começa a ser afastada em outras modalidades de cooperação penal, especialmente quando as providências ou diligências requeridas não têm caráter coercitivo. Nesse sentido, o Brasil, como adiante demonstraremos, já assinou tratados que dispensam a dupla incriminação em determinadas modalidades de cooperação.
Tratando-se de cooperação para investigação ou persecução de crimes de lavagem de dinheiro, a dupla tipificação, quando exigível, deve ser verificada também em relação ao crime antecedente, quer considerem as infrações antecedentes como elementos normativos do tipo ou condição objetiva de punibilidade. A ausência de tipificação penal da evasão de divisas na Suíça, por exemplo, tem sido uma das principais causas de rejeição de pedidos de cooperação provenientes do Brasil para a investigação de lavagem de dinheiro, que tem como antecedente essa modalidade de crime contra o sistema financeiro nacional.
Note-se que a alteração da Lei 9.613/1998 para eliminar a relação exaustiva de crimes antedentes do tipo penal da lavagem de dinheiro não alterará a exigência de que o requisito da dupla incriminação continue a ser verificado em relação às infrações penais que originam os ativos posteriormente empregados nas condutas típicas do crime de lavagem. A lavagem de dinheiro continuará, apesar da eliminação do rol exaustivo, sendo crime parasitário, que depende da existência de crime antecedente para sua configuração. Dessa forma, diante da existência do requisito de dupla tipicidade, será sempre necessário aferir se os fatos objeto de investigação ou ação penal são, também no Estado Requerido, considerados infrações penais.
Os tratados de cooperação jurídica em matéria penal assinados entre o Brasil e outros Estados (tratados bilaterais) tratam do requisito da dupla incriminação de três modos diferentes:
(i) mantêm-no para toda e qualquer cooperação; (ii) limitam-no a pedidos de cooperação que impliquem medidas coercitivas; e (iii) afastam-no expressamente.
O Brasil possui acordos bilaterais de Cooperação Jurídica em matéria penal com 14 diferentes países,(2) além dos tratados multilaterais sobre o tema.(3) No acordo firmado com a Espanha, por exemplo, há a expressa previsão de que a ausência de tipificação dos fatos no Estado Requerido não impede o auxílio.(4) O mesmo entendimento pode ser extraído do tratado celebrado com o Canadá que, embora não exclua expressamente o requisito da dupla tipificação, dispõe que a cooperação abrangerá “investigações ou processos judiciais relativos a qualquer crime previsto por uma lei de um dos Estados contratantes”.(5)
No extremo oposto, os acordos celebrados com China, Coreia, Cuba, França e Portugal preveem a hipótese de recusa de cooperação nos casos em que os fatos investigados/processados não constituam delitos nos Estados Requeridos.
Situação diferente é aquela dos demais acordos bilaterais (Colômbia, Estados Unidos, Itália, Peru, Suíça, Suriname e Ucrânia), segundo os quais embora a dupla incriminação não constitua, a priori, óbice à cooperação, as medidas de auxílio direto (principalmente algumas medidas coercitivas), poderão ser limitadas caso os fatos não sejam criminalizados em ambos os países. A esse respeito, cabe referência especial a dois instrumentos principais por sua particular relevância e peculiaridade.
No MLAT Brasil/EUA, em que pese a expressa disposição no sentido de que “a assistência será prestada ainda que o fato sujeito a investigação, inquérito ou ação penal não seja punível na legislação de ambos os Estados” (art. I.3), o art. XVI.2 estabelece que a assistência em medidas de apreensão de produtos, instrumentos de crime, restituição às vítimas, cobrança de multas impostas por sentenças penais e congelamento temporário de produtos ou instrumentos do crime só serão prestadas “na medida em que seja permitida pelas respectivas leis que regulam o procedimento”.
Referido dispositivo tem sido utilizado pelas autoridades americanas para negar pedidos de medidas cautelares em condutas não tipificadas como crime nos EUA, sob a justificativa de que, não constituindo os fatos ilícitos penais, não há fundamento para as medidas coercitivas.(6)
O tratamento conferido pelo tratado celebrado com a Suíça também estabelece que a dupla incriminação é requisito em solicitações de medidas coercitivas e vai além ao dispor expressamente que infrações fiscais (exceto fraude em matéria fiscal) estão excluídas de seu âmbito de abrangência (art. 3.1.c).
Os tratados multilaterais também trazem diferentes requisitos. A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), por exemplo, estabelece que “os Estados Partes poderão invocar a ausência de dupla incriminação para recusar prestar a assistência judiciária”.(7) A Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal (OEA), de outro lado, prevê que a assistência será prestada ainda que “o fato que der origem a esta não seja punível segundo a legislação do Estado requerido” (art. 5.º). O Estado Requerido poderá, contudo, recusar a assistência pela ausência de dupla incriminação nos casos de embargo e sequestro de bens e de inspeções e confiscos, incluindo buscas domiciliares (art. 5.º, a e b).(8)
Em situações em que não existe tratado, o Estado requerido determina as condições de cooperação de acordo com sua lei interna. No Brasil, as normas em vigor permitem inferir regra geral no sentido de que a dupla incriminação configura requisito para a cooperação jurídica internacional. É o que se extrai, por exemplo, do art. 77, II, do Estatuto do Estrangeiro, que impede a extradição “caso o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado Requerente”. A regra, contudo, é excepcionada em situações específicas, como no caso do acordo bilateral celebrado com a Espanha que, conforme se discutiu, não prevê o requisito para as medidas de cooperação. Mesmo nos casos em que a cooperação seja concedida sem o requisito da dupla tipificação, caberá às autoridades brasileiras competentes utilizar outros filtros, como a ordem pública, para determinar a conformidade do pedido de cooperação estrangeiro com o ordenamento interno.
A discussão posta não encontra resposta nos conceitos tradicionais (e, por vezes, ultrapassados) de territorialidade. A dinâmica do processo penal, cada vez mais interjurisdicionalizado, dependerá da compreensão do funcionamento da interação normativa e do esforço na contraposição de valores, por vezes conflitantes, nesse contexto global.
Notas
(1) Lei 6.815, art. 77, II: “Não se concederá a extradição quando: (...) II – o fato que motivar o pedido não for considerado crime no Brasil ou no Estado requerente”.
(2) Canadá (Dec. 6.747/2009), China (Dec. 6.282/2007), Colômbia (Dec. 3.895/2001), Coréia (Dec. 5.721/2006), Cuba (Dec. 6.462/2008), Espanha (Dec. 6.681/2008), Estados Unidos (Dec. 3.810/2001), França (Dec. 3.324/1998), Itália (Dec. 862/1993), Peru (Dec. 3.988/2001), Portugal (Dec. 1.320/1994), Suíça (Dec. 6.974/2009), Suriname (Dec. 6.832/2009) e Ucrânia (Dec. 5.984/2006).
(3) Cite-se, a título exemplificativo, a Convenção de Palermo (Dec. 5.015/2004), a Convenção Interamericana sobre Assistência Mútua em Matéria Penal da Organização dos Estados Americanos (Dec. 6.340/2008) e o Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais do MERCOSUL (Dec. 3.468/2000).
(4) “Art. 2.º Dupla Incriminação
O auxílio será prestado mesmo que o fato pelo qual se processa na Parte requerente não seja considerado delito pelo ordenamento jurídico da Parte requerida.”
(5) Decreto 6.747/2009, art. 1.3.
(6) A mesma estratégia é seguida pela Colômbia e pela Ucrânia.
(7) Decreto 5.015/2004, art. 18.
(8) A mesma lógica é aplicada aos acordos com Itália (execução de revistas pessoais, apreensão e sequestro de bens e interceptação de telecomunicações), Peru (execução de mandados de busca de pessoas e registros, confiscos, indisponibilidade de bens, sequestro com fim de prova, interceptação telefônica e outras medidas que envolvam algum tipo de coerção) e Suriname (rastreamento, busca, bloqueio e apreensão).
Ana Maria de Souza Belotto
Membro da Comissão Especial de Cooperação Jurídica Internacional do IBCCRIM.
Consultora em Direito Estrangeiro.
Antenor Madruga
Membro da Comissão Especial de Cooperação Jurídica Internacional do IBCCRIM.
Advogado.
Mariana Tumbiolo Tosi
Membro da Comissão Especial de Cooperação Jurídica Internacional do IBCCRIM.
Advogada.
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