INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 237 - Agosto /2012





 

Coordenador chefe:

Fernanda Regina Vilares

Coordenadores adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Considerações sobre o dever do advogado de comunicar atividade suspeita de “lavagem” de dinheiro

Autor: Rodrigo de Grandis

I. Introdução

Depois de quase 15 anos de vigência da Lei 9.613/1998, o Brasil contará com uma nova Lei de “Lavagem” de Dinheiro. No dia 10 de julho foi publicada a Lei 12.683/2012, cujo objetivo principal, segundo apontado no próprio texto (art. 1.º), é “tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro”.

Adianto, de saída, que a nova Lei de “Lavagem” não nasce perfeita, imune a críticas, como, aliás, sucede com qualquer comando normativo, de modo que a lapidação doutrinária e, principalmente, jurisprudencial, será imprescindível para a correta aplicação dos novos preceitos legais. Malgrado, a Lei 12.683/2012 apresenta mais pontos positivos do que negativos, não merecendo, portanto, a excomunhão maior.

Certo, a Lei em comento deixou passar a oportunidade de regulamentar, de modo minucioso, a colaboração premiada, instituto essencial na persecução penal de crimes complexos, repetindo, em essência, a redação do art. 1.º, § 5.º, da revogada Lei 9.613/1998, com o acréscimo de que ela poderá, agora, ser efetivada a qualquer tempo, ou seja, inclusive depois do trânsito em julgado da sentença condenatória. A nova Lei de “Lavagem” também criou um insólito afastamento do servidor público em caso de indiciamento, até que o juiz competente autorize, em decisão fundamentada, o seu retorno (art. 17-D). Note-se: ressalvado o fato de que o indiciamento nada ou pouco significa em termos processuais penais,(1) a Lei 12.683/2012 estatuiu uma medida cautelar pessoal que poderá ser concretizada sem prévia intervenção do Poder Judiciário (art. 282, § 2.º, do CPP) e que não se reveste de instrumentalidade hipotética e acessoriedade. A razão é simples: o MP não participa da elaboração do indiciamento e, assim, não raro o afastamento do funcionário público ocorrerá sem que ele guarde qualquer vínculo com o conteúdo da eventual ação penal.

Nada obstante, a Lei 12.683/2012 avançou em, pelo menos, dois aspectos: (i) eliminou a lista taxativa de crimes antecedentes de “lavagem” de dinheiro; e (ii) ampliou o rol de pessoas obrigadas à manutenção de cadastro e comunicação de atividade suspeita de “lavagem” (art. 9.º, parágrafo único, XIV). O presente artigo pretende abordar este último ponto.

II. O dever do advogado de comunicar atividade suspeita de “lavagem” de dinheiro (art. 9.º, parágrafo único, XIV, da Lei 12.683/2012)

O art. 9.º, parágrafo único, XIV, da Lei 12.683/2012 ampliou o rol de pessoas sujeitas ao mecanismo de controle, fazendo-o nos seguintes termos: “Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: (...) Parágrafo único. (...) XIV – as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações: a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza; b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos; c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários; d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas; e) financeiras, societárias ou imobiliárias; e f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais”.

As obrigações contidas nos arts. 10 e 11 da Lei 12.683/2012 referem-se, em suma, ao dever de manutenção de cadastro de clientela, atendimento às requisições do Coaf, identificação e comunicação de atividade suspeita de “lavagem” de dinheiro ao Coaf ou ao órgão fiscalizador da atividade, abstendo-se de dar ciência de tal ato a qualquer pessoa, inclusive àquela à qual se refira a informação, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

É inegável que o art. 9.º, parágrafo único, XIV, da nova Lei de “Lavagem” foi influenciado pelo contexto normativo vigente no plano internacional, haja vista a existência, no âmbito da Comunidade Europeia, das Diretivas 91/308/CEE, 2001/97/CE, 2005/60/CE e 2008/20/CE, emitidas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu, relacionadas à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.(2) E não poderia ser diferente, ante a constatação da comunidade internacional de que, por se tratar de um crime marcado pela nota da internacionalidade,(3) o esforço isolado dos países na sua prevenção e repressão seria inútil e que, por seus próprios instrumentos legais, não fariam frente a esse novo fenômeno. Daí a harmonização dos ordenamentos jurídicos e a uniformização das ferramentas de prevenção, repressão e cooperação.(4)

Veja-se, contudo, que a Diretiva 2001/97 isentou os notários, profissionais forenses independentes – aí incluídos os advogados –, auditores técnicos de contas externos e consultores fiscais das obrigações de identificação de clientes, manutenção de registros e notificação de transações financeiras suspeitas em relação às informações recebidas de um dos seus clientes ou obtidas sobre um dos seus clientes ao ensejo de determinar a situação jurídica por conta do cliente ou no exercício da sua missão de defesa ou de representação desse cliente num processo judicial ou a respeito de um processo judicial, inclusive quando se trate de conselhos relativos à forma de instaurar ou evitar um processo judicial, quer essas informações tenham sido recebidas ou obtidas antes, durante ou depois do processo. Por conseguinte – justificou-se na Diretiva – “a consulta jurídica permanece sujeita à obrigação de segredo profissional, excepto se o consultor jurídico participar em actividades de branqueamento de capitais, se a consulta jurídica for prestada para efeitos de branqueamento de capitais ou se o advogado souber que o cliente pede aconselhamento jurídico para efeitos de branqueamento de capitais”.

Mesmo sem mencionar expressamente os profissionais da área jurídica, a Lei 12.683/2012 optou por obrigar as pessoas físicas que prestem, ainda que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria e aconselhamento de qualquer natureza nas citadas operações financeiras. Ora, é certo que os advogados, notadamente os tributaristas e os societários, comumente prestam assessoria e consultoria na compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza, na gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos, na criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas. Dessa forma, como negar que eles se encontram abrangidos pelo novo art. 9.º ?

A imposição de deveres de identificação e comunicação de operação que veicule “lavagem” de dinheiro não é inconstitucional. Dada a enorme gama de atividades desempenhadas pelos advogados e o fato de os Estados terem estabelecido uma clara política-criminal de combate ao delito de branqueamento de capitais, a realização de uma interpretação razoável do dispositivo legal em tela demanda resposta à seguinte pergunta: a quais advogados podem ser impostas tais obrigações?

A solução parte, preliminarmente, do alcance outorgado ao segredo profissional: se considerado de modo amplo, quase absoluto, porquanto essencial ao exercício da profissão, ele somente pode ser mitigado em situações específicas. De outro lado, em uma via intermediária, a primazia do segredo profissional apenas seria prestigiada naqueles casos em que o advogado assessora o cliente sobre determinada situação jurídica ou, ainda, quando atua na defesa ou representação desse cliente em um processo judicial, administrativo, de arbitragem ou mediação. Finalmente, ainda seria possível cogitar uma terceira posição, de caráter restritivo, segundo a qual o interesse em comunicar atividade suspeita de “lavagem” de valores prevaleceria em todas as circunstâncias, excetuados os casos de defesa judicial.(5)

Tenho que a admissão das obrigações de identificação e de comunicação de operações suspeitas impostas aos advogados pressupõe a análise do conteúdo normativo e consequente conjugação de, pelo menos, quatro dispositivos previstos na Constituição da República:

(i) o art. 5.º, caput, que assegura, como direito fundamental, a inviolabilidade do direito à segurança; (ii) o art. 5.º, XIII, que contempla o livre exercício de qualquer atividade profissional, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (iii) o art. 5.º, LIV, ao assentar, como imperativo, o devido processo legal; e, por fim, (iv) o art. 133, que trata da indispensabilidade do advogado à administração da justiça. E isso sem olvidar, de um lado, a advertência de Konrad Hesse no sentido de que a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica, ou seja, a sua interpretação não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo(6) e, de outro, o fato de que os direitos fundamentais não se revestem de caráter absoluto ou ilimitado, de modo que, sob as balizas do Estado Democrático e Social de Direito, o exercício dos direitos vincula-se inexoravelmente a uma compreensão de responsabilidade social e de integração aos valores da comunidade.(7)

Dessa forma, os aludidos preceitos constitucionais não podem ser cotejados ao largo da ideia de que os seres humanos, independentemente da profissão desempenhada, convivem, na atualidade, em uma sociedade globalizada, de risco, complexa, de informação, tecnológica e em rede. Assim, a conformação constitucional conferida à advocacia no art. 133, ao direito de livre exercício de profissão (art. 5.º, XIII) e à concretização do due process of law (art. 5.º, LIV), delineia, a meu ver, um reforço de proteção da atividade advocatícia vinculada estritamente à administração da justiça, ou, mais precisamente, à defesa de direitos e garantias em juízo, de sorte que o advogado que atua na defesa de seu constituinte em um processo judicial não pode ser obrigado a comunicar à Unidade de Inteligência Financeira (Coaf) ou ao órgão regulador da atividade (OAB) quaisquer fatos que, no estrito exercício de sua atividade profissional,(8) tomou conhecimento, ainda que eles se amoldem às figuras típicas da “lavagem” de dinheiro, sob pena de reduzir a um ponto inaceitável os postulados da ampla defesa e do contraditório.

Com efeito, além de acarretar a erosão da confiança que permeia a relação cliente-advogado, a imposição de comunicação de atividades suspeitas obstará que os defensores conheçam o fato com todas as suas circunstâncias, jamais chegando a descortinar importantes e úteis detalhes para a concretização da defesa judicial, em nítido detrimento do postulado do devido processo legal. Demais disso, tenho que a restrição ao dever de notificação também deve abarcar as hipóteses nas quais o advogado é consultado sobre uma concreta situação jurídica vinculada a um processo judicial. É o caso, por exemplo, do advogado que é procurado por uma pessoa para aconselhá-lo acerca da conveniência de realizar, ou não, uma colaboração premiada, uma confissão, a suspensão condicional do processo, a reparação do dano, o arrependimento eficaz etc.

Tudo o mais, porém, poderá ser objeto de controle para a plena satisfação de um bem fundamental igualmente contemplado na Carta Magna: o direito à segurança. Vale dizer: a atividade de consultoria jurídica não processual (comercial, tributária, administrativa, sucessória etc.) encontra-se, agora, indiscutivelmente abrangida pelos deveres inerentes ao know your customer, sem que daí se possa extrair qualquer inconstitucionalidade. Digo de outro modo: o advogado que defende interesse em sede de processo ou formula consultoria sobre específica situação jurídica concernente a um processo judicial busca a salvaguarda de um interesse em conformidade com o ordenamento jurídico, isto é, aplica seus conhecimentos técnicos para proteger direitos e garantias inerentes ao devido processo legal.

Na atividade de consultoria, mormente a de natureza tributária, a situação é diversa: o cliente procura o advogado projetando determinada conduta que, a depender das circunstâncias, poderá traduzir crime de “lavagem” de dinheiro. A consultoria recai, assim, sobre a melhor forma ou o modo mais eficaz – ou menos suspeito – de ocultar ou dissimular valores obtidos criminosamente.

Conclusão

A imposição do dever de comunicação de atividade suspeita de “lavagem” ao advogado, estabelecida pelo art. 9.º da Lei 12.683/2012, nada tem de inconstitucional, desde que ela não incida sobre o profissional que defende interesse em sede de processo penal, civil, trabalhista ou administrativo, ou formula consultoria sobre específica situação jurídica relacionada a um processo judicial.

Além disso, ela tem a virtude de atender a um duplo objetivo: uniformiza o sistema nacional antilavagem e proporciona a atuação expedita dos órgãos de prevenção e de repressão penal.

Notas

(1) O indiciamento não vincula, sob qualquer aspecto, a opinio delicti do MP e sua efetivação; como é cediço, tem sido utilizada, não poucas vezes, como veículo de perpetração de crimes funcionais.

(2) No mesmo sentido, as Recomendações do Gafi de n. 5, 6, 8 a 11, e especialmente a Recomendação de n. 12, aplicável expressamente à classe dos advogados.

(3) Cordero, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de capitales. 3. ed. Navarra: Aranzadi, 2012. p. 57.

(4) Dessa comunhão de esforços surgiram, por exemplo, a Convenção de Viena, contra o tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, a Convenção de Palermo, sobre a criminalidade organizada transnacional, e a Convenção de Mérida, versando sobre o crime de corrupção, além de outras iniciativas de caráter supranacional, como a criação pelo grupo dos sete países mais ricos do mundo (G7), do Grupo de Atuação Financeira (Gafi) em 1989 e a emissão de Diretivas pelo Parlamento Europeu e Conselho da Comunidade Europeia.

(5) Durrieu, Roberto. El lavado de dinero en la Argentina: análisis dogmático y político-criminal de los delitos de lavado de activos de origen delictivo (Ley 25.246) y financiamiento del terrorismo. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2006. p. 82-83.

(6) A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 24.

(7) Andrade, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Portugal: Almedina, 2004. p. 283. Sobre a natureza relativa do art. 133 da Carta da República: Silva, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 613.

(8) O que, evidentemente, engloba os fatos narrados ao advogado pelo próprio cliente, mas também aqueles conhecidos pelo causídico no desiderato de obter maiores informações sobre o conteúdo daquilo que foi descrito pelo constituinte, como, por exemplo, a análise de documentos e a inquirição de terceiras pessoas. De outro lado, os fatos aos quais se teve acesso por meio diverso, completamente dissociado da atividade profissional, não se revestem, a toda evidência, de sigilo. Nesse mesmo sentido: Córdoba Roda, Juan. Abogacía, secreto profesional y blanqueo de capitales. Cuadernos de Crítica Jurídica, Madrid: Marcial Pons, n. 1, p. 30, 2006.   

Rodrigo de Grandis
Procurador da República em São Paulo, com atuação nas Varas Criminais especializadas em crimes contra o sistema financeiro nacional e em “lavagem” de ativos ilícitos de São Paulo.
Professor de Direito Penal da Escola Superior do Ministério Público da União e do Curso de Especialização em Direito Penal Econômico-GVLaw da Fundação Getúlio Vargas.