INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 237 - Agosto /2012





 

Coordenador chefe:

Fernanda Regina Vilares

Coordenadores adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

O combate à lavagem de dinheiro

Autor: Ricardo Andrade Saadi

Em tempos modernos, a expressão lavagem de dinheiro voltou a ganhar força no âmbito internacional na Convenção de Viena sobre o tráfico de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988, a qual foi uma resposta da comunidade internacional em face do crime de tráfico de drogas, bem como a ligação que aquele delito tem com a criminalidade organizada. Caracteriza-se por ser o primeiro texto internacional que indicou aos países a criminalização da conduta considerada lavagem de dinheiro. A partir de então, os países signatários da convenção comprometeram-se a tipificar o crime de lavagem de dinheiro em suas legislações. O Brasil, por ser um país pouco atraente à época para a lavagem de dinheiro, demorou a editar sua Lei, o que ocorreu somente em 1998.

Diversos organismos internacionais são preocupados com o tema e imbuídos no combate ao delito, entre os quais o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), criado em 1989 pelos países membros do G7 com o propósito de desenvolver e promover uma resposta internacional para combater a lavagem de dinheiro. Podemos considerar o estabelecimento das 40 Recomendações como as ações mais importantes do Gafi. Amplamente reconhecidas em todo o mundo, trata-se de um conjunto de princípios a serem seguidos pelos países no combate à lavagem de ativos. São princípios básicos, uma vez que as legislações dos países são diferentes, de forma que o cumprimento das 40 recomendações do Gafi(1) é o mínimo essencial no combate à lavagem de ativos. O relatório da última avaliação do Brasil pelo Gafi foi apresentado em junho de 2011. Entre outras críticas, foram citadas:

- poucas condenações finais por lavagem de dinheiro;

- problemas sistêmicos no sistema judiciário dificultam seriamente a capacidade de se obter condenações finais e penas;

- pequena variedade de crimes antecedentes;

- falta de responsabilização civil ou administrativa direta às pessoas jurídicas por crimes de lavagem de dinheiro;

- o número de confiscos é muito baixo, dado o tamanho da economia e o risco da lavagem de dinheiro;

- os sistemas de gerenciamento de ativos são deficientes, o que deprecia os bens apreendidos;

- a não colocação de advogados, tabeliães, outras profissões jurídicas independentes, contadores, prestadores de serviços de assessoria e consultoria de empresas e corretores de imóveis pessoas físicas como “pessoas obrigadas”;(2)

- as instituições financeiras não são expressamente proibidas de estabelecer ou manter relações de correspondência bancária com bancos “de fachada”; e

- estatísticas insuficientes sobre investigações, denúncias e condenações por lavagem de dinheiro, bem como sobre o número de casos e os valores dos bens confiscados.

A aprovação pelo Congresso Nacional do texto que altera a Lei 9.613/1998 sana algumas dessas críticas apontadas pelo Gafi. Merecem destaque nesse novo texto:

1. Término do rol de crimes antecedentes

Alinhando-se às legislações mais modernas, e aos padrões recomendados pelo Gafi, o Brasil excluiu o rol de crimes antecedentes à lavagem de dinheiro. Segundo o novo art. 1.º da Lei 9.613/198, com redação dada pela Lei 12.683/2012, a lavagem de dinheiro será caracterizada por:

“Art. 1.º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Importante destacar que o legislador escolheu usar a expressão infração penal de forma que as contravenções penais também podem ser antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro.

2. Previsão da alienação antecipada

Nos termos do § 1.º do art. 4.º do novo Diploma Legal, “§ 1.º Proceder-se-á à alienação antecipada para preservação do valor dos bens sempre que estiverem sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação, ou quando houver dificuldade para sua manutenção”.

Sem sombra de dúvida, essa é uma medida de extrema utilidade prática. A alienação antecipada é a medida de precaução mais adequada a ser realizada, pois é a que representa menor risco de depreciação do valor do bem, possibilitando uma melhor preservação do seu valor real até o final da prestação jurisdicional. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, em julho de 2011, esse Conselho “aferiu, por meio do SNBA, que, desde a implantação do sistema, houve o cadastramento de R$ 2.337.581.497,51 em bens. ‘Deste valor, 0,23% foi objeto de alienação antecipada, representando R$ 5.330.351,89, e 1,85%, correspondendo a R$ 43.334.075,60, houve perdimento em favor da União e dos Estados.’ Além disso, em 4,43% desses valores, importando R$ 103.452.804,44, ocorreu a restituição dos bens, e em 0,15%, ou seja, R$ 3.404.456,34, restou a destruição. A conclusão que se extrai com esses dados é que o alto percentual de 93,35% dos bens apreendidos ainda permanece aguardando destinação, com situação ‘a definir’, representando o expressivo valor de R$ 2.182.059.809,24 sob a responsabilidade do Poder Judiciário” (Manual de bens apreendidos, CNJ, 2011, p. 4).

3. Utilização dos bens após o perdimento

De acordo com o § 1.º do art. 7.º, a União e os Estados, no âmbito de suas competências, regulamentarão a forma de destinação dos bens, direitos e valores cuja perda houver sido declarada, assegurada, quanto aos processos de competência da Justiça Federal, a sua utilização pelos órgãos federais encarregados da prevenção, do combate, da ação penal e do julgamento dos crimes previstos nesta Lei, e, quanto aos processos de competência da Justiça Estadual, a preferência dos órgãos locais com idêntica função.

Tal determinação vem ao encontro das diretrizes internacionais no sentido de que os bens retirados dos criminosos devem ser utilizados pelo Estado para aparelhar as instituições responsáveis pelo combate ao crime organizado. A melhor forma de estimular e fortalecer as instituições de Estado é dando-lhes efetivas condições de trabalho.

4. Aumento do rol de “pessoas obrigadas”

A Lei 9.613/1998 procura coibir a lavagem de dinheiro no Brasil. Para isso, além de criar os tipos penais, a lei traz um regime administrativo de combate à lavagem de dinheiro, de forma que tal combate é feito de forma compartilhada entre o Estado e os setores da economia mais frequentemente utilizados na prática deste crime.

Na exposição de motivos da Lei 9.613/1998, é dito que entre a prática da operação financeira e o usufruto dos recursos dela originados, há necessidade de que seja realizada uma série de operações financeiras e comerciais com o intuito de dar a esses recursos uma aparência de licitude.

Assim, é inevitável o trânsito dos recursos pelos setores regulares da atividade econômica para que possam ser usufruídos pelos criminosos, de forma que esses segmentos, pela proximidade que mantêm com os clientes, bem como pela capacitação específica necessária ao desempenho de seus negócios, dispõem de maiores condições para diferenciar as operações lícitas das operações ilícitas.

A obrigatoriedade de tais setores participarem do combate à lavagem de dinheiro traz uma eficiência muito maior ao sistema. Interessante lembrar que a participação de setores privados no combate à lavagem de dinheiro também se justifica, pois eles mesmos têm prejuízos devido à pratica do ilícito penal.

Entre as obrigações inerentes ao setor privado, destacamos a necessidade de as pessoas físicas e jurídicas sujeitas à obrigação da lei passarem a ser compelidas a identificar os clientes e manter cadastros atualizados, a obrigatoriedade de comunicação às autoridades responsáveis de todas as operações em ativos que ultrapassem o limite fixado.

As chamadas pessoas obrigadas estão previstas no art. 9.º da Lei 9.613/1998. Com a aprovação das alterações na lei, passam, entre outras, também a ter as obrigações mencionadas:

- as bolsas de valores, as bolsas de mercadorias ou futuros e os sistemas de negociação do mercado de balcão organizado;

- as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam atividades de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis;

- as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem bens de luxo ou de alto valor, intermedeiem a sua comercialização ou exerçam atividades que envolvam grande volume de recursos em espécie;

- as juntas comerciais e os registros públicos;

- as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações:

I.  de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza;

II.  de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos;

III.  de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários;

IV. de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais;

- pessoas físicas ou jurídicas que atuem na promoção, intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de direitos de transferência de atletas, artistas ou feiras, exposições ou eventos similares.

5. Aumento da multa pecuniária para as “pessoas obrigadas”

Conforme supraexposto, as “pessoas obrigadas”, listadas no art. 9.º, devem manter cadastro atualizado dos clientes, comunicar a realização ou proposta de realização de operações suspeitas e atender as requisições formuladas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), entre outras obrigações.

Aquelas pessoas que deixarem de cumprir seus deveres, são passíveis de algumas sanções, quais sejam: advertência, multa pecuniária, inabilitação temporária e cassação da autorização para operação ou funcionamento.

A lei vigente estabelece um limite de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), sendo que o novo texto aumentará esse valor para R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais), trazendo a possibilidade de punição equivalente ao porte da pessoa física ou jurídica que deixar de cumprir suas obrigações. O valor anterior, dependendo da situação, era muito baixo e, para determinadas empresas, valia a pena o risco.

6. Acesso da autoridade policial e do Ministério Público a dados cadastrais

O novo texto legal cria o art. 17-B a seguir transcrito: “Art. 17-B. A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito”.

A criação deste artigo teve por objetivo esclarecer a determinadas empresas que os dados cadastrais dos investigados devem ser disponibilizados para a autoridade policial ou para o Ministério Público, independentemente de autorização judicial. O que vem ocorrendo nos dias atuais é que empresas de um mesmo ramo de atuação se comportam de forma diferente quando recebem solicitações de tais dados. Algumas os disponibilizam e outras alegam a violação ao direito da intimidade para negá-los.

Tal fato gera uma situação surreal. Como é possível diversas empresas de concessão de crédito ou mesmo pessoas jurídicas que assinam determinados serviços a elas disponibilizados terem acesso aos dados cadastrais de clientes ou potenciais clientes e as autoridades públicas necessitarem de autorização judicial? Por que haveria violação ao direito da intimidade ao disponibilizar os dados cadastrais para a autoridade policial ou para o Ministério Público e não haveria essa violação ao disponibilizar os mesmos dados para empresas comerciais?

7. Desafios ainda a serem enfrentados

A modernização da lei de combate à lavagem de dinheiro é, sem nenhuma dúvida, um extraordinário avanço no combate à criminalidade. Porém, restam outros pontos ainda a serem atacados, sendo o principal deles a demora no trânsito em julgado das decisões finais em processos penais.

O quadro atual, principalmente se considerarmos os processos relativos ao crime de lavagem de dinheiro, mostra que o trânsito em julgado tem demorado muitos anos. Temos notícias de diversos processos iniciados há muitos anos, tais como aqueles que envolveram investigações contra doleiros, instituições financeiras, funcionários públicos e outros que ainda tramitam no Poder Judiciário, sem qualquer perspectiva de terem uma decisão final. Somente a título de exemplo, podemos citar o processo envolvendo pessoas ligadas ao Banco Santos, o qual iniciou no ano de 2005 e até hoje está tramitando sem perspectiva de decisão final.

Essa demora no julgamento final não é boa para ninguém. Aquele réu no processo, que acredita em sua inocência, quer se ver livre do mesmo o mais rápido possível. Em algumas situações é constrangedor a pessoa ser dispensada de um emprego ou não ser selecionada em outro apenas porque em sua “ficha” consta que é réu em um processo penal. Se, depois de muitos anos, tal pessoa for absolvida, quem vai responder por todo o prejuízo que ela teve nos anos de tramitação do processo?

Da mesma forma, a demora no julgamento de casos em que há claras provas da culpa de determinada pessoa, sendo que a mesma continua livre e exercendo suas atividades devido ao princípio da presunção da inocência, é uma péssima mensagem passada para a população. Em muitas vezes, são apresentados recursos e mais recursos meramente protelatórios com o intuito de que “se esqueça” o caso e chegue à prescrição.

A demora é ruim também para a cooperação jurídica internacional, especialmente quando envolve o bloqueio de bens no exterior. Os países demandados (aqueles em que os recursos foram bloqueados a pedido de autoridades brasileiras) pedem uma decisão transitada em julgado para repatriar ao Brasil o dinheiro. Em muitas oportunidades, esses países demandados, percebendo a inércia do processo no Brasil, determinam o desbloqueio dos recursos.

Devemos criar mecanismos não tão favoráveis aos órgãos estatais responsáveis pela investigação e denúncia no processo penal e não tão favoráveis aos investigados, de forma a se criar um equilíbrio que possibilite ao Estado punir os culpados e aos réus de exercer o pleno exercício de defesa.

Referências bibliográficas

Coaf. Ministério da Fazenda. Lavagem de dinheiro: legislação brasileira. Brasília: Coaf, 1999.

CNJ. Manual de bens apreendidos. Brasília: CNJ, 2011.

Gomes, Luiz Flavio; Cervini, Raul. Crime organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/1995) e político-criminal. 2. ed. São Paulo: RT, 1997.

Lilley, Peter. Lavagem de dinheiro. Trad. Eduardo Lasserre. 2. ed. São Paulo: Futura, 2001.

Mendroni, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2006.

Pitombo, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo. RT, 2003.

Notas

(1) Disponível em: www.fatf.gafi.org.

(2) As “pessoas obrigadas” têm uma série de deveres, tais como a comunicação de operações suspeitas e a manutenção de cadastro atualizado dos clientes.

Ricardo Andrade Saadi
Mestre e Doutor em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie.
Diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça.
Delegado de Polícia Federal.