Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira
Autor: Rodrigo Sánchez Rios
Resulta inegável a grande inquietude gerada com a modificação da Lei 9.613/1998, especialmente quanto a uma maior abrangência nos seus efeitos.(1) Os agentes que se ocupam da problemática da lavagem de capitais possuem diversas razões para aderir ou serem contrários às mudanças estampadas na Lei 12.683/12, (a partir do Projeto de Lei 3.443/2008 da Câmara dos Deputados, originado do PLS 209/2003, de autoria do Senador Antonio Carlos Valadares).
Diga-se de antemão que suas motivações são assaz variadas. É comunis opinio que as mudanças dessa normativa não significam meros retoques, nem pinceladas oportunistas de algum legislador que desconheça a real orientação da política criminal em relação ao crime transnacional por excelência. Nada disso. O tempo de quase um decênio de tramitação junto ao Poder Legislativo é lapso temporal suficiente para que nenhum dos agentes interessados em dar efetividade a esses preceitos se diga surpreso, amparando-se em críticas não fundamentadas à consolidação das ações de prevenção e repressão efetiva à ocultação e dissimulação de valores provenientes de atividade delitiva.
Entre as alterações de natureza jurídico-penal, processual e extrapenal, sem dúvida demanda uma reflexão mais acurada a referente à eliminação do rol taxativo dos crimes antecedentes (previsto no art. 1.º da Lei vigente) e a substituição do termo crime por infração penal, englobando, por consequência, as contravenções penais. É forçoso manifestar que a passagem para essa legislação denominada de terceira geração encontra inicial respaldo na Convenção de Estrasburgo relativa ao branqueamento, detecção, apreensão e perda dos produtos do crime, especialmente na versão atualizada, de maio de 2005. E ainda, no marco das Nações Unidas, a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional, de 15.11.2000, a qual, no seu art. 6.º, exige das partes a ampliação da tipificação dos atos de lavagem a um maior número possível de delitos.(2) Depreende-se, facilmente, o alinhamento do legislador pátrio a essas orientações.
Em que pese tal busca de homogeneidade legislativa, sobretudo quando se depara com o alcance da criminalidade organizada com ramificações transnacionais, a receptividade a esta nova realidade sempre esteve acompanhada de um acentuado pensamento crítico doutrinário, seja no âmbito pátrio, seja na experiência comparativa. Das principais consequências negativas apontadas, “o risco de vulgarização”(3) é o mais preocupante, em decorrência da possibilidade do apenamento pelo tipo de lavagem ser superior àquele previsto para o delito antecedente, denotando injustificada desproporção. Exemplificativamente, tem se apontado: “ainda que bem intencionada, a norma é desproporcional, pois punirá com a mesma pena mínima de 3 anos o traficante de drogas que dissimula seu capital ilícito e o organizador de rifa ou bingo em quermesse que oculta seus rendimentos”.(4) No mesmo sentido, poderá ocorrer que um investidor receba valores provenientes de aluguel e, ao não declarar citados rendimentos ao Fisco, aplicando-os posteriormente na construção comercial, venha a ser formalmente acusado da prática de lavagem de dinheiro.(5)
Uma singela reflexão revela, de fato, o quadro inquietante que se descortina diante da vigência das alterações empreendidas no diploma legal em comento. Repercussão imediata deverá ser a constatação da perda da linha reitora que sempre primou por envidar esforços de prevenção e persecução dirigidos aos delitos mais graves. Significa dizer: no que concerne aos recursos disponíveis ao combate da lavagem, a premissa passará formalmente a nivelar o produto do crime de tráfico de entorpecentes à mera irregularidade tributária passível de regularização na esfera administrativa com efeitos extintivos de punibilidade. Percebe-se que a possibilidade de criminalização como lavagem de hipóteses práticas vinculadas a atividades lícitas e cuja obtenção de ganhos é constantemente posta ao exame da voracidade da autoridade fiscal – não ignorando que entre os bens jurídicos tutelados no delito tributário se prioriza a arrecadação – poderá afetar sensivelmente os princípios da segurança jurídica e da justiça, norteadores do Estado de Direito.
Isso sem adentrar a toda a problemática inerente às chamadas condutas neutras, certamente atingidas pela novel normativa com reflexos nefastos no regular o desenvolvimento das relações sociais e econômicas. Pense-se, por exemplo, na peculiar situação, por demais debatida, do advogado criminalista e seus honorários advocatícios.
Se o interesse do legislador residia em suprir a lacuna de punibilidade em decorrência da carência de abrangência do rol dos crimes antecedentes, objetivando, assim, coibir a utilização do produto obtido com a contravenção do jogo de azar, poderia ter elevado a mesma à categoria do injusto, inserindo-a, específica e isoladamente, na relação dos delitos prévios.
Não é de se estranhar, portanto, que na doutrina estrangeira se considera “aberrante, desmesurada, radical e incompreensível” (6) a ampliação do rol prévio dos crimes antecedentes. Caberia buscar adjetivos capazes de descrever a incongruência da sua total eliminação. Outrossim, denota, no mínimo, péssima técnica legislativa a incorporação da contravenção penal, que sequer reúne em seus contornos a dimensão do injusto pessoal, apta a avalizar os pressupostos de um fato punível.
Resta, pois, manter a postura crítica reivindicante de “mecanismos formais e controláveis para viabilizar certa seletividade na prevenção e repressão do crime de lavagem”,(7) cabendo a todos os agentes envolvidos primar pela observância de uma sensata aplicação do texto legal, de modo a respeitar os princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima, então minimizados pelos excessos do legislador. Evidentemente é num plano ideal e abstrato que se propõe tal prudência a todos os atores diretamente envolvidos na efetividade da lei penal, ciente de que o controle formal do Estado nem sempre tem primado pela razoabilidade nas diversas fases da persecução penal.
Adstritos ao campo da dogmática jurídico - penal, a reforma do art. 1.º, § 2.º, I, admite, ao lado do dolo direto, a modalidade do dolo eventual como elemento subjetivo do tipo. Desse modo, incidirá na figura típica quem utilizar na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe ou deveria saber serem provenientes de infração penal. Não obstante esta inovação possa ser auspiciada por alguns estudiosos da matéria,(8) quer nos parecer que as dificuldades de distinção entre condutas especialmente aptas e condutas neutras continuarão existindo, sobretudo quando, numa perspectiva social, seja necessário esclarecer se um sujeito realizou o juízo de atribuição em que se fundamenta o dolo do resultado, ou se, diversamente, se possa conferir verossimilhança a sua alegação de não haver realizado dito juízo.(9) Parece óbvio que a doutrina e a jurisprudência têm um árduo caminho a percorrer. Em boa hora, o legislador, no iter parlamentar, não cedeu à tentação de prever o delito culposo nesta seara, pois, em caso contrário, engessaria definitivamente as relações sociais e econômicas, malgrado alguns diplomas estrangeiros acolherem esta proposta.
Quanto às demais modificações de natureza processual e extrapenal incorporadas ao projeto de lei (convertido na Lei 12.683/12)considera-se merecedora de atenção a possibilidade de estipulação e prestação de fiança. A impressão é clara: referido instituto torna-se um instrumento de restrição à utilização do patrimônio obtido de maneira ilícita, sem descurar o favorecimento a certo grau de banalização deste instituto cautelar, haja vista inúmeras aplicações incongruentes em casos concretos atinentes a toda sorte de imputações. Percebe-se nítida inovação no tocante à decretação já no curso da investigação, de medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores existentes em nome do investigado ou acusado, ou mesmo de interpostas pessoas (art. 4.º). Cuida-se, também, da alienação antecipada (§1.º do art. 4.º)de referidos proveitos de crime, visando preservar seu valor econômico apenas quando sujeitos à deterioração, depreciação ou dificuldade de manutenção. A prática tem demonstrado que tal medida torna-se necessária principalmente quando o Poder Público não dispõe de estrutura física e técnica para resguardar esses bens, daí a imperiosidade da medida cautelar, evitando-se que, diante de eventual perdimento ou devolução, o seu valor de mercado restasse assaz reduzido.
Texto à parte mereceria a reflexão sobre as medidas extrapenais relacionadas à ampliação do rol das pessoas obrigadas a comunicar operações suspeitas. No estrito âmbito da prevenção a política de compliance confere a categorias privadas imposições que não lhe são inerentes e inclusive sequer factíveis, v.g., a título ilustrativo, o papel do advogado na seara consultiva e contenciosa.
Acredita-se que, tal como se sucedeu em 1998, a forma pela qual foi aprovado o texto então sancionado pela Presidência da República é fundamental tanto para a aplicação dos dispositivos legais quanto para a identificação da problemática antevista. O amadurecimento das posturas críticas aqui lançadas torna-se indispensável para se encontrar um ponto de equilíbrio em favor de uma política criminal racional efetivamente preventiva, a única legítima a ser admitida naquilo que ainda se acredita ser um Estado Democrático de Direito.
Notas
(1) Inicialmente sobre a temática vide o estudo de: Aras, Vladimir. Críticas ao projeto da nova Lei de Lavagem. Disponível em: http://gtld.pgr.mpf.gov.br/artigos/artigos-docs/artigo-nova-lei-lavagem-dinheiro.pdf.
(2) Vide Blanco Cordero, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. 3. ed. Navarra: Aranzadi, 2012. p. 276.
(3) Moro, Sergio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 36.
(4) Bottini, Pierpaolo Cruz. Sobre a nova Lei de Lavagem de dinheiro. O Estado de S. Paulo, 27.06.2012, Seção B2.
(5) Exemplo extraído da opinião manifestada pelo Juiz Federal Douglas Camarinha Gonzáles ao jornal O Estado de S. Paulo, no dia 25 de fevereiro de 2012.
(6) No tocante a opinião de Abel Souto, Manuel Cobo de Rosal e Mercedes Garcia Arán, vide: Blanco Cordero, Isidoro. Op. cit., p. 279-280.
(7) Moro, Sergio Fernando. Op. cit., p. 36.
(8) Vide, por exemplo: Aras, Vladimir. Op. et loc. cits.
(9) A respeito, cf.: Ragués I Vallés, Ramon. El dolo y su prueba en el proceso penal. Barcelona: Bosch, 1999. p. 523-524.
Rodrigo Sánchez Rios
Professor de Direito Penal da PUC-PR.
Advogado.
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