Publicado em 19/01/2017
Durante toda a sua existência, o IBCCrim tem denunciado o uso político da repressão penal e do apelo a medidas meramente punitivas como estratégias de segurança pública. Contudo, a atual proposta de emprego das Forças Armadas para enfrentar a crise nos presídios brasileiros supera, tanto em ineficácia quanto na gravidade das consequências, qualquer das numerosas tentativas anteriores de solucionar problemas complexos por meio de medidas meramente simbólicas.
De início, sua ilegalidade é flagrante: o uso das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem depende do reconhecimento formal de esgotamento da capacidade dos órgãos de segurança pública, como prevê o art. 15, § 2º, da Lei Complementar nº 97/99. Ou bem o decreto contém, em si, o reconhecimento da incapacidade das forças policiais de todo o Brasil, hipótese que tornaria dispensável o pedido de auxílio dos governadores, ou o ato padece de ilegalidade insuperável.
Além disso, o § 4º do mesmo artigo demanda que a atuação das F.A. seja “episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado”. É evidente que tais parâmetros foram desrespeitados pelo decreto, que autoriza o uso das forças militares em todos os estabelecimentos prisionais brasileiros pelo período de um ano.
No conteúdo, os fatos falam por si. Em entrevista, o Presidente da República afirmou que o decreto tem como objetivo a “atemorização daqueles que estão nos presídios”. O uso das Forças Armadas para exercer funções que são constitucionalmente atribuídas às forças policiais representa um dramático aceno à retórica da guerra para lidar com a questão penitenciária, equiparando as pessoas presas a inimigos externos. As consequências desse arroubo populista serão gravíssimas para a população carcerária, para as próprias Forças Armadas e para o Estado de Direito: basta apenas imaginar o que poderia acontecer na hipótese, nada absurda, de uma rebelião durante o trabalho de forças militares.
Ademais, o decreto autoriza que as Forças Armadas sejam empregadas para “a detecção de armas, aparelhos de telefonia móvel, drogas e outros materiais ilícitos ou proibidos” nos estabelecimentos prisionais. Para além do fato de que as F. A. não possuem treinamento nem equipamentos específicos para exercer tal função, não se pode ignorar que tais objetos não poderiam sequer ter entrado nas dependências das penitenciárias e centros de detenção. Em outras palavras, não há qualquer esperança que a medida resolva as reais falhas e desvios que permitiram o acesso dos detentos a armas e afins.
Esse Instituto afirma, mais uma vez, que o real problema do sistema carcerário brasileiro é o superencarceramento, que além de violar as condições básicas de existência de pessoas que se encontram sob a custódia do Estado, reforçam a capacidade de recrutamento e organização das facções criminosas. Medidas concretas e imediatas que poderiam ser tomadas pelo governo federal, como o financiamento de centrais de alternativas penais e um indulto natalino abrangente, transformaram-se em oportunidades perdidas – como demonstram de forma eloquente a Medida Provisória que retira recursos do Fundo Penitenciário e o enorme retrocesso do último decreto de indulto.
Em síntese, a utilização das Forças Armadas para a varredura nos estabelecimentos prisionais é ilegal, por violar os termos da Lei Complementar nº 97/99; é ineficaz, por não ser capaz de solucionar o problema imediato de armas e celulares nas prisões; é populista, por desviar o foco do real problema do sistema prisional brasileiro, que é o superencarceramento; e é extremamente perigosa, ao equiparar a população presa a inimigos da pátria e transformar a gestão prisional em operação de guerra. Esperamos que o Poder Judiciário seja firme ao repelir, de maneira rápida e inequívoca, essa ameaça ao Estado de Direito.
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