Publicado em 07/10/2009
Sob a égide da legislação vigente até há pouco, o STJ afastou a presunção de violência em crime sexual, em lapidar voto de CELSO LIMONGI, Desembargador convocado. Conheça o interessante voto abaixo:
HABEAS CORPUS Nº 88.664 - GO (2007/0187687-4)
RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES
R.P/ACÓRDÃO : MINISTRO CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/SP)
IMPETRANTE : GENTIL MEIRELES NETO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
PACIENTE : SALES DELFINO LEITE
EMENTA
ESTUPRO MEDIANTE VIOLÊNCIA PRESUMIDA. VÍTIMA COM 13 ANOS E 11 MESES DE IDADE. INTERPRETAÇÃO ABRANGENTE DE TODO O ARCABOUÇO JURÍDICO, INCLUINDO O ECA. MENOR A PARTIR DOS 12 ANOS PODE SOFRER MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS. HABEAS CORPUS
COMO INSTRUMENTO IDÔNEO PARA DESCONSTITUIR SENTENÇA CONDENATÓRIA. DESCARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E, POIS, DO ESTUPRO. ORDEM CONCEDIDA.
1. Se o ECA aplica medidas socioeducativas a menores a partir dos 12 anos, não se concebe que menor com 13 anos seja protegida com a presunção de violência.
2. Habeas corpus em que os fatos imputados sejam incontroversos é remédio hábil a desconstituir sentença condenatória.
3. Ordem concedida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Celso Limongi concedendo a ordem em menor extensão, seguido pelos Srs. Ministros Nilson Naves, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura, acordam os Ministros da SEXTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, conceder a ordem de habeas corpus , nos termos do voto do Sr. Ministro Celso Limongi, que lavrará o acórdão.
Vencido em parte o Sr. Ministro Relator.
Votaram com o Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP) os Srs. Ministros Nilson Naves, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.
Brasília, 23 de junho de 2009(Data do Julgamento)
MINISTRO CELSO LIMONGI
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP)
Relator
HABEAS CORPUS Nº 88.664 - GO (2007/0187687-4)
RELATÓRIO
O SR. MINISTRO OG FERNANDES: Em benefício de Sales Delfino Leite impetrou-se este habeas corpus, apontando-se como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, que deu parcial provimento ao apelo defensivo, nos termos desta ementa (fls. 34):
APELAÇÃO. ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PROVA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. PENA. REGIME PRISIONAL.
1 - Contando a vítima à época do fato com apenas 13 anos de idade, presume-se a violência para efeito de caracterização do estupro (CP, art. 224, a).
2 - À luz das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, analisadas, lícita é a redução da pena-base para quantum pouco acima do mínimo legal.
3 - O estupro, mesmo em sua forma básica, em que não há lesão corporal de natureza grave ou morte, constitui crime hediondo, devendo sua pena ser cumprida em regime integralmente fechado (Lei 8.072, arts. 1º, V, e 2º, § 1º).
Apelação parcialmente provida.
Consta dos autos que o paciente foi denunciado pela suposta prática do crime de estupro, mediante violência presumida (vítima menor de 14 anos). Após regular instrução, sobreveio sentença condenando-o à pena de 8 (oito) anos e 7 (sete) meses de reclusão, a ser cumprida integralmente no regime fechado.
Contra essa decisão, a defesa interpôs apelação que, como visto, foi parcialmente provida, com a consequente redução da pena a 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de reclusão, mantida, no mais, a sentença.
Foram opostos - e rejeitados - embargos de declaração. Interposto recurso especial, inadmitido na origem. Sobreveio, então, agravo de instrumento, ao qual se negou provimento (Ag-722.269/GO).
Neste habeas corpus, alega o impetrante não haver provas suficientes para a condenação, razão por que se pede a absolvição do paciente.
Sustenta-se, subsidiariamente, falta de fundamentação à exasperação da pena acima do patamar mínimo.
Informações prestadas pela autoridade apontada como coatora às fls. 54 e seguintes.
Em manifestação subscrita pela Procuradora Regional Eliana Péres Torelly de Carvalho, no exercício das atribuições de Subprocurador-Geral, o Ministério Público Federal opinou pela concessão parcial da ordem. Eis a ementa do parecer (fls. 71/72):
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTUPRO COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. ALEGAÇÃO DE INSUFICIÊNCIA DO MATERIAL PROBATÓRIO EM QUE SE FUNDOU A CONDENAÇÃO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. NECESSIDADE DE AMPLO REVOLVIMENTO DA MATÉRIA FÁTICA EM SEDE DE HABEAS CORPUS .
DOSIMETRIA DA PENA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS PARCIALMENTE FAVORÁVEIS. FIXAÇÃO POUCO ALÉM DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE.
AGRAVANTE GENÉRICA. REINCIDÊNCIA. AGRAVAMENTO DA PENA SEM QUALQUER COMPROVAÇÃO DA REITERAÇÃO DELITIVA. IMPOSSIBILIDADE. ILEGALIDADE CONFIGURADA.
CRIME HEDIONDO. REGIME INTEGRALMENTE FECHADO.
INCONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. LEI Nº 11.464/07, QUE ESTABELECEU O REGIME INICIALMENTE FECHADO. LEI PENAL BENÉFICA AO RÉU. APLICAÇÃO RETROATIVA. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, XL, DA CF, E DO AT. 2º, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CP. CONCESSÃO EX OFFICIO DO WRIT.
PARECER PELO CONHECIMENTO PARCIAL DO WRIT, E, NA PARTE CONHECIDA, PELA CONCESSÃO PARCIAL, APENAS PARA RETIRAR A EXASPERAÇÃO RELATIVA À AGRAVANTE DE REINCIDÊNCIA, FIXANDO A PENA EM SEIS ANOS E SEIS MESES DE RECLUSÃO. MANIFESTAÇÃO PELA CONCESSÃO DE OFÍCIO DE HABEAS CORPUS PARA AFASTAR A PROIBIÇÃO DA PROGRESSÃO DE REGIME.
É o relatório.
HABEAS CORPUS Nº 88.664 - GO (2007/0187687-4)
VOTO
O SR. MINISTRO OG FERNANDES (Relator): Como visto, são dois os pedidos formulados. Assim, melhor sejam eles examinados em separado.
(I) pedido de absolvição, calcado na insuficiência de provas:
A pretensão trazida pelo impetrante, sem dúvida, esbarra na necessidade de revolvimento do conjunto fático-probatório, providência essa vedada na via eleita dada sua estreiteza.
Nesse sentido:
CRIMINAL. HC. ABSOLVIÇÃO. ANÁLISE INVIÁVEL NA VIA ELEITA. REVOLVIMENTO DOS FATOS E PROVAS. IMPROPRIEDADE DO WRIT. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONTINUIDADE DELITIVA. INSTITUTO JÁ APLICADO PELO MAGISTRADO SINGULAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA. 1 - O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise do pleito de absolvição do réu, em virtude da necessidade de análise aprofundada das circunstâncias de fato e das provas dos autos, inviável na via eleita. (HC-76.231/DF, Relatora Desembargadora convocada Jane Silva, DJ de 24.9.07)
HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA (VÍTIMA COM 13 ANOS DE IDADE). PENA CONCRETIZADA: 6 ANOS DE RECLUSÃO. PRETENSÃO DE ABSOLVIÇÃO. REVISÃO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA.
IMPROPRIEDADE NA VIA ELEITA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA MISERABILIDADE DA VÍTIMA. INEXIGÊNCIA DE FORMALIDADES. ORDEM DENEGADA. 1. É inviável, na via estreita do Habeas Corpus , revisar matéria fático-probatória com a finalidade de obter pronunciamento judicial que implique absolvição do crime pelo qual o paciente foi condenado, sobretudo se as instâncias ordinárias, soberanas na análise fática dos autos, frisaram que a autoria restou evidenciada, bem como a materialidade do crime de estupro . (HC-85.660/PB, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJ e de 4.8.08)
HABEAS CORPUS . DIREITO PROCESSUAL PENAL E DIREITO PENAL. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. ABSOLVIÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. INCABIMENTO. PENA-BASE NO MÍNIMO. CÚMULO MATERIAL DAS PENAS. CONSTRANGIMENTO. INOCORRÊNCIA. ÓBICE À PROGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL. INCABIMENTO. 1. O reexame de provas, à moda de segunda apelação em que se pretende discutir a justiça da condenação, não se ajusta ao âmbito angusto do habeas corpus,
mormente em casos tais em que a sentença e o acórdão impugnado estão lastreados nos elementos de prova colhidos no decorrer do processo. (HC-62.273/SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJ e de 22.4.08)
Há de ser ressaltado que a prova dos autos indica que, à época dos fatos, a menor não havia completado 14 (quatorze) anos. Daí o reconhecimento da violência presumida, presunção essa tida por absoluta, na linha da jurisprudência dominante desta Corte.
A propósito, confira-se este julgado da Terceira Seção:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME CONTRA LIBERDADE SEXUAL. VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. PRESUNÇÃO DE CARÁTER ABSOLUTA. EMBARGOS PROVIDOS.
1. O art. 224 do CPB prevê algumas circunstâncias, dentre as quais está inserida a menor de 14 anos, em que ainda não haja efetiva violência física ou real, esta será presumida, diante de uma certa restrição na capacidade da vítima de se posicionar em relação aos fatos de natureza sexual.
2. Estando tal proteção apoiada na innocentia consilii da vítima, que não pode ser entendida como mera ausência de conhecimento do ato sexual em si, mas sim como falta de maturidade psico-ética de lidar com a vida sexual e suas conseqüências, eventual consentimento, ainda que existente, é desprovido de qualquer valor, possuindo a referida presunção caráter absoluto . Precedentes do STJ e STF.
3. O MPF manifesta-se pelo provimento dos embargos.
4. Embargos de Divergência providos. (EREsp-666.474/MG, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJ e de 3.4.09)
De mais a mais, as instâncias ordinárias concluíram pela condenação com lastro na prova testemunhal colhida no transcurso da instrução. Assim, inexiste o apontado constrangimento ilegal.
(II) pedido de redução da pena imposta:
Para melhor elucidar a questão, indispensável a prévia leitura da sentença e do acórdão de apelação, na parte em que interessa:
Ex positis e com base nas provas dos autos, conheço da denúncia e julgo procedente para condenar Sales Delfino Leite, nas penas do art. 213 c/c art. 224, a, e art. 225, § 1º, I, todos dispositivos do CP, passando com espeque no art. 68, e 59, ambos do Código Repressivo a dosar-lhe a pena:
Destarte, tenho que o réu é imputável, tinha consciência da ilicitude e lhe era exigível conduta diversa; é reincidente; sua conduta social é irregular; há indicativos de personalidade voltada para a criminalidade; as consequências do crime foram enormes, cuja repercussão se dará por toda vida da vítima e seus familiares; a motivação para o crime seu deu pela ausência de controle da libido, da sexualidade, dos ímpetos da carne; as circunstâncias lhe são desfavoráveis, isto é, mesmo depois da infração criminal, continuou por longo tempo a molestar a vítima e seus familiares, tanto que lhe foi decretada a prisão processual; quanto ao comportamento da vítima, em nada contribuiu para a ação do denunciado;
Nestes termos, fixo como pena base 08 anos e 04 meses de reclusão, acrescida em três meses em razão da circunstância agravante indicada no art. 61, I, do CP, pena que torno definitiva em 08 anos e 07 meses de reclusão, por ausência de circunstâncias atenuantes ou agravantes, minorantes ou majorantes, a favor ou contra o Denunciado. (fls. 18/19) A pena aplicada, porém, mostra-se exacerbada, motivo pelo qual deve ser reduzida.
Levando-se em conta as circunstâncias judiciais do artigo 59 do CP, suficientemente analisadas, e à pena fixada para o crime em questão, que é de 06 (seis) anos, reduzo a estabelecida pena-base de 08 (oito) anos e 4 (quatro) meses para 06 (seis) anos e 06 (seis) meses, quantum esse que aumento em razão da agravante da reincidência dos 03 (três) meses fixados, resultando em 06 (seis) anos e 09 (nove) meses de reclusão a pena definitiva do apelante. (fls. 32)
Como visto, o Tribunal de origem reformou parcialmente a pena-base, mantendo-a, contudo, em 6 (seis) meses acima do patamar mínimo. Daí a irresignação defensiva.
Ao que quero crer, também sem razão o impetrante. Isso porque a majoração se justifica principalmente pelas circunstâncias do crime, tidas por desfavoráveis, pelo fato de que o paciente "mesmo depois da infração criminal,
continuou por longo tempo a molestar a vítima e seus familiares, tanto que lhe foi decretada a prisão processual". Assim, irrepreensível a exasperação operada.
Quanto à agravante da reincidência, reconhecida por ambas as instâncias ordinárias e até então não contestada pela defesa, vejo, a partir da leitura dos autos, que o impetrante não cuidou de comprovar a alegada primariedade do paciente. Não se juntou folha de antecedentes criminais ou qualquer documento similar.
Tal encargo, por certo, cabia à defesa, que dele não se desvencilhou. Desse modo, mostra-se inviável, aqui e agora, o afastamento do acréscimo à pena.
Calha ressaltar que nada obsta a impetração de novo habeas corpus, melhor
instruído, agitando uma vez mais a questão.
Por fim, deve ser afastada a vedação à progressão de regime, uma vez que a jurisprudência hoje pacífica desta Corte e do Supremo Tribunal Federal entendem ser inconstitucional o dispositivo que proibia o deferimento do benefício.
Tendo em vista que o crime atribuído ao paciente foi cometido antes da Lei nº 11.464/07, ela não se lhe pode aplicar, em obediência ao princípio da irretroatividade da lei mais gravosa. A progressão de regime há de obedecer aos requisitos presentes no art. 112 da Lei de Execução Penal.
À vista do exposto, concedo parcialmente a ordem, tão somente a fim de permitir a progressão de regime, que poderá ser deferida, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 112 da Lei nº 7.210/84.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEXTA TURMA
Número Registro: 2007/0187687-4 HC 88664 / GO
MATÉRIA CRIMINAL
Números Origem: 200401287470 259870
EM MESA JULGADO: 12/05/2009
Relator
Exmo. Sr. Ministro OG FERNANDES
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro NILSON NAVES
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. ZÉLIA OLIVEIRA GOMES
Secretário
Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
AUTUAÇÃO
IMPETRANTE : GENTIL MEIRELES NETO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
PACIENTE : SALES DELFINO LEITE
ASSUNTO: Penal - Crimes contra os Costumes (art.213 a 234) - Crimes contra a Liberdade Sexual - Estupro (art.213) - Violência Presumida
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"Após o voto do Sr. Ministro Relator concedendo parcialmente a ordem, pediu vista o Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP). Aguardam os Srs. Ministros Nilson Naves, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura."
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.
Brasília, 12 de maio de 2009
ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
Secretário
HABEAS CORPUS Nº 88.664 - GO (2007/0187687-4)
RELATOR : MINISTRO OG FERNANDES
IMPETRANTE : GENTIL MEIRELES NETO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
PACIENTE : SALES DELFINO LEITE
VOTO-VENCEDOR
O EXMO. SR. MINISTRO CELSO LIMONGI (DESEMBARGADORCONVOCADO DO TJ/SP): O paciente, incurso no artigo 213, combinado com o artigo 224, "a", ambos do Código Penal, foi condenado, em primeiro grau, à pena de 8 anos e 7 meses de reclusão, acusado de prática de estupro mediante violência presumida contra menor com menos de 14 anos de idade. Em recurso da defesa, o E. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás a ele deu provimento, reduzindo a pena a 6 anos e 9 meses de reclusão, a ser cumprida integralmente no regime fechado, considerado o caráter de hediondez desse delito, ainda que na forma de violência presumida.
Em benefício do paciente foi impetrada a presente ordem, sob o fundamento de que inexistiam elementos de convicção para sua condenação, razão pela qual pede o impetrante a absolvição. Ademais, subsidiariamente, sustenta falta de fundamentação à exasperação da pena acima do mínimo legal.
O Ministério Público Federal ofereceu parecer pela concessão em parte da ordem, apenas para corrigir o regime prisional estabelecido.
Passo a proferir o voto.
Cumpre-me, de início, lembrar que o habeas corpus é remédio constitucional que dispõe de força para desconstituir sentença transitada em julgado, desde que desnecessária dilação probatória e que a coação ilegal se apresente primus ictus oculi.
Não é demais relembrar a advertência de José Frederico Marques, em seu "Elementos de Direito Processual Penal", vol. IV, pág. 444, segundo a qual a rotina judiciária tem impedido o habeas corpus de ser, entre nós, instrumento dos mais eficazes na defesa e amparo do direito de liberdade.
E claro é que na hipótese de valer-se o interessado do habeas corpus para anular um ato processual, como o é a sentença definitiva ou o acórdão que a confirma, assume ele a natureza de ação constitutivo-negativa: na espécie, seria para desconstituir a condenação do paciente.
Valendo-me, ainda, de José Frederico Marques, obra citada, pág. 457 O writ of habeas corpus destaca-se, em segundo lugar, como ação constitutiva. E é o que ocorre quando tem por fim fazer cessar coação ou ameaça de coação, contra a liberdade de ir e vir, desconstitituindo, por ilegal, a situação jurídica de que provinha o ato coercitivo.
Se uma sentença é proferida, em processo absolutamente nulo, e, após passar em julgado, é executada, daí advindo a prisão do réu, ou a expedição de mandado para prendê-lo, a concessão do habeas corpus implica anulação da sentença e de todo o processo.
Antes de anulada pelo habeas corpus, a sentença tinha inteira eficácia. Concedido o writ, no entanto, fica sem efeito a sentença, rescindida que é ordem de habeas corpus.
Igual fenômeno ocorre quando, por falta de justa causa, a coação é considerada ilegal e cessa definitivamente a instância. É que, nessa hipótese, havia uma situação jurídica, embora injusta, em que se alicerçava a potestas coercendi do Estado, para exercer o direito de punir.
E o mesmo se verifica, quando o pedido de habeas corpus se acha fundamentado no art. 648, n° VII, do Código de Processo Penal.
Nessa hipótese, o writ identifica-se com a ação rescisória, se, apesar de extinto o jus puniendi, sentença já existir , como título executório, para ser exercido o jus punitionis . É o que sucede, se a sentença condenatória foi proferida, malgrado extinto o jus puniendi, ou houver título executório já prescrito ou que venha a perder eficácia por efeito de outra causa extintiva (além da prescrição) prevista no art. 108 do Código Penal, como v. gratia, na hipótese de ter sido concedida a indulgentia principis (Código Penal, art. 108, n° II), ou de haver a novatio legis (art. 108, n°III, do Código Penal).
Como se percebe, o remédio heroico se reveste, sim, de uma natureza constitutiva e é um instrumento extremamente útil para a consecução da justiça. Não cabe aos juízes e tribunais inibir a força de tal ferramenta, forjada ao longo dos séculos.
Dir-se-á, ainda, e com razão, que a função deste Superior Tribunal não é revolver provas, rediscutir matéria fática. No entanto, também seria suma injustiça aceitar os fatos mas a errônea classificação jurídica dada pelas instâncias ordinárias, se a outra classificação, mesmo tendo como incontroversos os fatos, chegar esta E. Corte. Não se discutem os fatos, mas, sim, sua classificação jurídica.
Examinando-se os autos, a prova produzida e a classificação jurídica dada aos fatos pelas instâncias ordinárias, peço licença ao eminente Ministro Og Fernandes para, com o maior respeito, ousar discordar da solução apresentada, embora reconheça a força de seus argumentos, calcados em boa doutrina e na maciça jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal.
Adianto que vou aceitar os fatos exatamente como o fizeram o nobre Juiz de primeiro grau e o E. Tribunal goiano: o paciente, homem de mais de trinta anos de idade e casado, manteve relações sexuais com uma adolescente de menos de 14 anos de idade.
Não discuto se tais relações sexuais ocorreram em 23 de novembro ou 23 de dezembro. Se elas ocorreram em 23 de dezembro, a adolescente contaria já com 14 anos de idade e o fato não seria típico. Mas, seja: consideramos que o contato sexual ocorreu em 23 de novembro e a menor contava 13 anos e onze meses de idade.
Não discuto, igualmente, se era virgem ou se já haveria mantido relações sexuais com seu primeiro namorado, negado, obviamente, por este.
Nem igualmente está em discussão se a menor procurou beneficiar o namorado, trazendo falsos dados para arredar a tipicidade da conduta do paciente.
O que me parece importante é que o paciente, mesmo casado, insistiu em entreter namoro com a menor, a ponto de pedir ao pai desta autorização para namorá-la. E, negada a autorização, não resistiu em levá-la a um motel, onde o casal se entregou às práticas sexuais.
A conduta do paciente se subsumiu ao tipo descrito no artigo 213, combinado com o artigo 224, alínea "a", ambos do Código Penal?
Por esse fato, merece o paciente a pena que lhe foi imposta, 6 anos e 9 meses de reclusão, em regime inicial fechado?
É essa pena objetivamente justa?
O comportamento do paciente merece, sem dúvida, críticas. Com 32 anos de idade e chefe de família, não deveria assediar a menor. Há referências a ter sido preso anteriormente e não dedicar-se ao trabalho. São apenas referências.
De qualquer modo, não estamos nem podemos examinar sua conduta do ponto de vista social, mas do direito penal.
E, em seu favor, vimos que nutria afeto à vítima, tanto que buscou autorização dos pais desta para namorá-la. Não se pode deixar de consignar também que a própria menor aceitou o convite para ir ao Motel e manter relações sexuais. O ato foi consentido e aqui é que se enfrenta o maior problema: a lei penal não atribui validade ao consentimento de menor de 14 anos de idade para a prática de relações sexuais ou de atos libidinosos. Em outras palavras, presume-se a violência contra menores com menos de 14 anos de idade. Caracteriza-se, por definição legal, o estupro, se houver conjunção carnal, ou o atentado violento ao pudor, se se limita à prática de atos libidinosos distintos da conjunção carnal.
Esse é o pensamento do legislador de 1940, ano em que nasceu o Código Penal Brasileiro.
Em primeiro lugar, faz-se necessário relembrar que o Direito não deve ser estático, mas, por força das vertiginosas transformações sociais, nem sempre consegue acompanhá-las. Por isso, o Direito erige-se tantas vezes em óbice ao desenvolvimento da sociedade. O chileno Eduardo Novoa Monreal escreveu monografia a propósito desse tema e já no preâmbulo anotou: " ...a nota mais deprimente reside em que os preceitos, esquemas e princípios jurídicos em voga se vão convertendo, gradualmente, não apenas em um pesado lastro que freia o progresso social, quando não chega, muitas vezes, a levantar-se como um verdadeiro obstáculo para ele" (cf. "O Direito como obstáculo à transformação social", Sergio Antonio Fabris Editor, pág. 9, Porto Alegre, 1988).
E, nesse aspecto, é inegável o valor da jurisprudência, pois esta comumente vem à frente do legislador e é para ele fonte de inspiração. Em tantos temas de Direito Privado, de Direito Público e de Direito Penal, as decisões do Judiciário foram dando interpretação às leis e culminaram por adiantar-se ao legislador e disciplinaram relações fáticas, para cujas soluções não havia lei expressa. O Judiciário viabilizava uma solução e, posteriormente, o legislador a encampava, transformando-a em lei.
Parece claro que, quando se interpreta um Código Penal nascido em 1940, portanto, com 69 anos de idade, é preciso adequá-lo à realidade de hoje, levando em conta os valores da atualidade, para que as decisões sejam mais justas.
O outro aspecto que merece destaque se prende a que, para a boa interpretação da lei, é necessário levar-se em consideração todo o arcabouço normativo, todo o ordenamento jurídico do País. A interpretação da lei não prescinde do conhecimento de todos os ramos do Direito. Uma visão abrangente desse arcabouço facilita - e muito - o entendimento e a interpretação da lei.
Assim, em tal linha de raciocínio, o Estatuto da Criança e do Adolescente precisa ser analisado, para enfrentar a questão posta nestes autos, a de se saber se o estupro e o atentado violento ao pudor por violência presumida se qualificam como crimes e, mais, como crimes hediondos.
É necessário levar em conta o Estatuto da Criança e do Adolescente, porque, pelo artigo 2° desse Estatuto, o menor é considerado adolescente dos 12 aos 18 anos de idade, podendo até sofrer medidas socioeducativas. E, como lembra Carlos Antônio R. Ribeiro, "se o menor a partir de 12 anos pode sofrer medidas socioeducativas, por ser considerado pelo legislador, capaz de discernir a ilicitude de um ato infracional, tido como delituoso, não se concebe, nos dias atuais, quando os meios de comunicação em massa adentram em todos os locais, em especial nos lares de quem quer que seja, com matérias alusivas ao sexo, que o menor de 12 a 14 anos não tenha capacidade de consentir validamente frente a um ato sexual" (cf. "Violência presumida nos crimes contra a liberdade sexual", in Revista da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco, vol. 5, número 12, pág. 216).
Imagine-se a hipótese de um jovem de 18 anos de idade que beije lascivamente sua namorada de 13 anos ou que com ela pratique alguns atos libidinosos não dos mais íntimos. Pela presunção de violência que o Código Penal de 1940 estabelece, pois a menor de 14 anos não dispõe de vontade válida, será esse jovem condenado a no mínimo 6 anos de reclusão! E o Código, ao presumir a violência por não dispor a vítima de vontade válida, está equiparando essa adolescente a uma pessoa portadora de alienação mental, o que, convenhamos, não é razoável. Isto, em pleno século XXI!
A Constituição Federal importou do direito anglo-americano o princípio do devido processo legal na sua face substantiva, de modo que ela autoriza a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a permitir que o juiz hoje se inquiete com a injustiça da lei, a proporcionalidade dos encargos, a razoabilidade da lei, quando antes não era senão a voz da lei, o cego cumpridor da lei, o escravo da lei, um ser como que inanimado, como preconizava Montesquieu, preocupado, naquele contexto histórico em que viveu, com poder o magistrado interpretar a lei. Aliás, Manoel Gonçalves Ferreira Filho deixou assentado:
Contudo, a Carta lhe (ao Judiciário) deu, mesmo nessa função típica, em certo distanciamento em relação a lei que não admitia a doutrina clássica. Com efeito, o texto importou o due process of law substantivo do direito anglo-americano (art. 5°, LIV), afora o aspecto formal, de há muito presente em nosso sistema por meio dos princípios da ampla defesa, do contraditório, etc.,mantido no art. 5°, LV da Constituição. Assim pode hoje o magistrado inquietar-se sobre a razoabilidade da lei, a proporcionalidade dos encargos que acarreta, etc., quando antes não lhe cabia senão ser a voz da lei".
(Comentários à Constituição Brasileira de 1988, pág. 67).
E, efetivamente, não se pode admitir no ordenamento jurídico uma contradição tão manifesta, a de punir o adolescente de 12 anos de idade, por ato infracional, e aí válida sua vontade, e considerá-lo incapaz, tal como um alienado mental, quando pratique ato libidinoso ou conjunção carnal. Isto, quando já se sabe que o adolescente de hoje recebe muito mais informações sobre sexo do que o adolescente da década de 1940...
A interpretação da lei exige, de tal arte, coerência, harmonização das disposições legais, evitando interpretações que se contraponham.
Todavia, não entendo, a fortiori, hediondas essas modalidades de crime em que milita contra o sujeito ativo presunção de violência. E isto, porque a Lei de Crimes Hediondos não contempla essa modalidade. Leia-se a lei e ali encontraremos como crimes sexuais hediondos tão-só o estupro e o atentado violento ao pudor, nas formas qualificadas.
A presunção de violência está prevista apenas no artigo 224, alínea "a", do Código Penal, e a ela a Lei de Crimes Hediondos não faz a mínima referência. E, sem previsão legal, obviamente não existe fato típico, proibida a analogia contra o réu.
A doutrina e a jurisprudência se dividem também sobre esse tema.
João José Leal, em sua monografia "Crimes Hediondos", Juruá Editora, 2ª edição, Curitiba, 2005, pág. 151, deixa assentada a seguinte lição:
Com base num processo hermenêutico restritivo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm entendido que o estupro e o atentado violento ao pudor, quando praticados com violência presumida, não estão arrolados como crimes hediondos, pelo art. 1° e seus incisos, da LCH. O argumento é de que os incs. V e VI, do art. 1°. não se referem às formas típicas previstas no art. 223 e suas alíneas, do CP. Embora possa parecer contraditório, a verdade é que, em matéria penal, a interpretação deve ser restritiva, e, se a norma omitiu as formas típicas de estupro e de atentado violento ao pudor assentadas na idéia de presunção de violência, não cabe ao intérprete ampliar o rótulo da hediondez para essas categorias criminosas. Essa interpretação restritiva da matéria se justifica mais ainda, quando se sabe das consequências severas resultantes da condição jurídicopenal de hediondez atribuída a uma infração penal.
Todavia, Marcellus Polastri Lima e Sheila Bierrembach, em seu "A (Nova) Lei dos Crimes Hediondos", Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008, pág. 39, manifestam entendimento contrário:
Essas condutas repugnantes, bem como as demais previstas no art. 224 do Código Penal, também devem integrar o rol de crimes hediondos, já que as leis penal e específica não autorizam nem fazem qualquer distinção entre as duas formas de violência (real ou ficta) que integram o tipo dos delitos em questão.
O Supremo Tribunal Federal, no HC 78.305-4/MG , relator o Ministro Néri da Silveira, decidiu que o crime de atentado violento ao pudor por violência ficta não se enquadra entre os delitos hediondos. Eis a ementa, na parte que interessa:
(...)
6. Dessa maneira, se não procede o fundamento da petição inicial do habeas corpus, com base na Lei n° 9455/1997, que, de acordo com a jurisprudência do STF, é aplicável, tão-só, ao crime de tortura e não aso demais delitos tidos como hediondos pela Lei n° 8072/1990, cabe, aqui, deferir o habeas corpus, porque o crime de atentado violento ao pudor, pelo qual condenado o paciente (CP, arts. 214 e 224, letra a), não se enquadra entre os delitos hediondos, ut art. 1°, inciso VI, da Lei n° 8072/1990, visto que do fato não resultou nem lesão corporal grave nas vítimas, nem morte (art. 214, em combinação com o art. 223, caput e parágrafo único, do Código Penal).
Ainda,
COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Na dicção da ilustrada maioria (seis votos a favor e cinco contra), em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus impetrado contra ato de tribunal, tenha esse, ou não, qualificação de superior.
ESTUPRO - PROVA - DEPOIMENTO DA VÍTIMA. Nos crimes contra os costumes, o depoimento da vítima reveste-se de valia maior, considerado o fato de serem praticados sem a presença de terceiros. ESTUPRO - CONFIGURAÇÃO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - IDADE DA VÍTIMA - NATUREZA. O estupro pressupõe o constrangimento de mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça - artigo 213 do Código Penal. A presunção desta última, por ser a vítima menor de 14 anos, é relativa. Confessada ou demonstrada a aquiescência da mulher e exsurgindo da prova
dos autos a aparência, física e mental, de tratar-se de pessoa com idade superior aos 14 anos, impõe-se a conclusão sobre a ausência de configuração do tipo penal. Alcance dos artigos 213 e 224, alínea "a", do Código Penal.
(HC 73.662/MG, Relator Min. MARCO AURÉLIO, Publicação DJ 20-09-1996)
Este Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de decidir que estupro e atentado violento ao pudor por presunção de violência não se caracterizavam como delitos hediondos, tal como o ilustram os seguintes julgados:
HABEAS CORPUS. DILAÇÃO PROBATÓRIA IMPOSSIBILIDADE. VIA INADEQUADA. PENAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. NÃO CONFIGURAÇÃO DE CRIME HEDIONDO. PROGRESSÃO DE REGIME. POSSIBILIDADE.
(...)
Nos termos do art. 1o, inciso V, da Lei n° 8.072/90, somente o atentado violento ao pudor praticado com violência real (lesão corporal grave ou morte) é considerado hediondo, motivo pelo qual, perpetrado o delito com violência presumida, há possibilidade de progressão do regime prisional. Precedentes do STF e do STJ.
3 .Ordem concedida de ofício.
(HABEAS CORPUS N° 13.129 - SÃO PAULO, RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES, DJ: 19/02/2001)
Crime contra a liberdade sexual (estupro). Menor de 14 anos (presunção de violência relativa). Consentimento válido da menor (relevância).
1. É missão fundamental do Penal tutelar bens jurídicos, todavia a sua intervenção depende de efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem tutelado pela norma. Não há responsabilidade penal por ato de outrem, tampouco por ato inexistente.
2. Reputa-se relativa a violência presumida disposta no inciso a do art. 224 do Cód. Penal.
3. O principal fundamento da intervenção jurídico-penal no domínio da sexualidade há de ser a proteção contra o abuso e contra a violência sexual de homem ou mulher, e não contra atos sexuais que se baseiem em vontade livre e consciente.
4. No caso, o consentimento não-viciado e o livre convencimento da menor de 14 anos para a prática da conjunção carnal com o namorado elidem a tipificação do crime de estupro.
5. Recurso do qual se conheceu pelo dissídio, mas ao qual se negou provimento.
(RECURSO ESPECIAL Nº 542.324 - BA, RELATOR : MINISTRO HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, R.P/ACÓRDÃO : MINISTRO NILSON NAVES, Publicado no DJ: 14/04/2008)
No entanto, acórdãos mais recentes mostram alteração de entendimento. Confiram-se os seguintes arestos:
PENAL. HABEAS CORPUS . ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CRIME HEDIONDO. REGIME INICIAL SEMI-ABERTO. POSSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ART. 2º DA LEI Nº 8.072/90 (REDAÇÃO REVOGADA) DECLARADA PELO STF.
I - Constitui-se o crime de atentado violento ao pudor, ainda que perpetrado em sua forma simples ou com violência presumida, crime hediondo, submetendo-se o condenado por tais delitos ao disposto na Lei nº 8.072/90 (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ).
II - O c. Pretório Excelso, nos termos da decisão Plenária proferida por ocasião do julgamento do HC 82.959/SP, concluiu que o § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, é inconstitucional.
III - Assim, o condenado por crime hediondo ou a ele equiparado, praticado antes da entrada em vigor da Lei 11.464/07, pode obter o direito à progressão de regime prisional ou, ainda, iniciar o cumprimento da pena em regime diverso do fechado, desde que preenchidos os demais requisitos legais.
Ordem concedida.
(HABEAS CORPUS Nº 108.590 - SP (2008/0129853-0), RELATOR : MINISTRO FELIX FISCHER, DJe: 03/11/2008)
HABEAS CORPUS . ESTUPRO. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO ADVOGADO. NULIDADE RELATIVA. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PRETENSÃO DE RECORRER EM LIBERDADE. PEDIDO PREJUDICADO. TRÂNSITO EM JULGADO. CRIME HEDIONDO. PROGRESSÃO DE REGIME. IMPOSSIBILIDADE. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 8.072/90. LEI Nº 9.455/97. EXCLUSIVIDADE DOS CRIMES DE TORTURA.
1 - Não pode ser conhecida a alegação de nulidade, dado que a matéria não foi examinada pelo Tribunal de origem, vedada a supressão de instância, cabendo anotar que não se trata de nulidade absoluta, que autorizaria seu conhecimento de ofício.
2 - Diante do trânsito em julgado da condenação, fica prejudicado o pedido de recorrer em liberdade.
3 - Não se pode afastar a incidência do art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, pois, em consonância com o precedente do Pretório Excelso desde o julgamento do HC nº 81.288-1/SC (DJU de 25/04/2003), os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, também nas suas formas simples, isto é, das quais não resulte lesão corporal de natureza grave ou morte, ainda que praticados com violência presumida, são considerados hediondos, em razão do que dispõe o artigo 1º, incisos V e VI, combinado com o artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, impondo-se o desconto das penas corporais correspondentes integralmente no regime fechado.
4 - Não merece prosperar a tese de revogação do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 pela Lei nº 9.455/97, diante do art. 7º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, pois entende-se que o legislador ressalvou o crime de tortura dentre aqueles cuja reprimenda corporal deveria ser cumprida integralmente em regime fechado.
5 - Habeas Corpus parcialmente conhecido e denegado.
(HABEAS CORPUS Nº 33.637 - MG (2004/0016926-3), RELATOR : MINISTRO PAULO GALLOTTI, DJe: 29/09/2008)
Diante de matéria tão polêmica, não é fácil tarefa enfrentar o caso em julgamento. De qualquer modo, os fatos são esses, incontroversos, prontos para receber a classificação que a maioria houver por bem fazer.
Um ponto apenas: em artigo publicado no jornal "Folha de S. Paulo", caderno
"Equilíbrio", de 21 de maio de 2009, noticiou-se que a antecipação da puberdade é um fenômeno mundial relacionado a fatores como a melhor alimentação, acrescentando que as meninas de hoje são mais informadas e encaram com mais naturalidade a transição rumo à vida adulta.
Nesse artigo extraio trecho importante:
A idade média do desenvolvimento dos seios baixou de 10,88 anos entre 1991 e 1993 para 9,86 entre 2006 e 2008, período em que os autores acompanharam mais de 2.000 garotas entre cinco e 20 anos.
Aliás, fico com a sensação de que a menina de 14 anos de idade, à época do nascimento do Código Penal não era mais instruída sobre temas sexuais, do que a menina de 12 anos de hoje...
Todavia, sempre atento aos princípios constitucionais, garantidores da liberdade individual, e preocupado sempre com inversões, em que a lei ordinária se sobreponha à Constituição Federal, e, em especial, não havendo previsão legal expressa de que estupro e atentado violento ao pudor, por violência ficta, se qualifiquem como delitos hediondos, meu voto é pela concessão da ordem para desconstituir a decisão que condenou o paciente como incurso nas penas do artigo 213, absolvendo-o sob o fundamento de que os fatos a ele imputados não configuram, na espécie destes autos, crime de estupro com violência presumida.
HABEAS CORPUS Nº 88.664 - GO (2007/0187687-4)
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO NILSON NAVES: Srs. Ministros, também tenho sustentado que a presunção de que estamos cuidando é de natureza relativa. Eis o que escrevi para o REsp-542.324, de 2005:
"Há precedentes num e noutro sentido. O meu entendimento, porém, é o de que a presunção a que se refere o indigitado art. 224, a, do Cód. Penal – 'presume-se a violência, se a vítima não é maior de 14 (catorze) anos' – é de cunho relativo. Foi assim que decidi quando procedi, monocraticamente, ao exame do REsp-705.429, DJ de 10.5.05. Vali-me, ali, da lição de Hungria. Vejamo-la:
'O dissenso da vítima deve ser sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição passiva ou inerte. É necessária uma vontade decidida e militantemente contrária, uma oposição que só a violência física ou moral consiga vencer. Sem duas vontades embatendo-se em conflito, não há estupro. Nem é de confundir a efetiva resistência com a instintiva ou convencional relutância do pudor, ou com o jogo de simulada esquivança ante uma vis grata...'
('Comentários ao Código Penal', Forense, 1983, vol. VIII, págs. 107-108.)
No mesmo sentido, entre outros, Fragoso, para quem 'a presunção de violência deve desaparecer da lei, pois dá lugar a soluções injustas, não tendo correspondência na realidade' ('Lições de Direito Penal', Forense, pág. 42), e Noronha, que indaga 'como se falar em incapacidade de apreciação de um ato em quem habitualmente, cotidianamente o pratica?' ('Direito Penal', Saraiva, vol. 3, pág. 300).
Nos dias de hoje, mais do que nunca, vê-se o amadurecimento precoce das crianças e adolescentes, que estão mais preparados para lidar com a sexualidade e para reagir às eventuais adversidades.
Assim, o principal fundamento da intervenção jurídico-penal no domínio da sexualidade há de ser a proteção contra o abuso e a violência sexual, independentemente de a vítima ser homem ou mulher, e não contra atos sexuais que se baseiem em vontade livre e consciente e que decorram de consentimento não-viciado. Não é papel do Penal limitar a liberdade sexual, mas garanti-la.
Embora não se lhe negue a missão fundamental de tutelar bens jurídicos, a intervenção do Penal depende de efetiva lesão ou perigo (concreto) de lesão ao bem tutelado pela norma. O meu convencimento, e creio não me achar em erro, é que a liberdade sexual, bem jurídico que orienta a punição dos crimes sexuais, tem a ver com a livre disposição do corpo para fins sexuais, bem como com o direito de não ser a pessoa envolvida em atividades sexuais sem seu consentimento. Ora, se a relação sexual é consciente e validamente consentida, não há afetação real dessa liberdade; conseqüentemente, eventual punição do ato que não atingiu o bem jurídico violaria, na verdade, o princípio do nullum crimen sine injuria.
Ao que cuido, a ofensividade do bem jurídico deve derivar, obviamente, da conduta do agente, não de presunção legal. O Direito Penal da culpa – isto é, aquele apoiado no princípio da culpabilidade – pressupõe não haver responsabilidade penal seja por ato de outrem, seja por ato inexistente. No caso que ora se encontra sob os nossos cuidados, a presumida violência (ou o abuso) é fictícia, não resulta de ação do autor, pois não houve quebra de nenhuma resistência imposta pela suposta vítima. O certo é que não foi a menor envolvida em ato sexual sem sua vontade. Presumir violência aqui seria, isto sim, o maior dos abusos com o qual poderíamos nos deparar.
A propósito, vejam-se os seguintes julgados: (I) 'a presunção de violência contida no art. 224, 'a', do CP é juris tantum , ou seja, tem caráter relativo. Precedentes' (REsp-195.279, Ministro Vicente Cernicchiaro, DJ de 19.12.02); (II) 'é relativa a presunção inserta no art. 224, alínea 'a', do Código Penal' (REsp-309.704, Ministro Hamilton Carvalhido, DJ de 30.6.03).
Além do mais, à espécie vêm calhar as palavras de Zaffaroni, segundo o qual 'qualquer inovação social que se fizer em prol do desenvolvimento humano deverá enfrentar o sistema penal; todo conhecimento e todo pensamento abriu caminho confrontando-se com o poder punitivo. A história ensina que os avanços da dignidade humana sempre ocorreram em luta contra o poder punitivo' ('Direito Penal Brasileiro', Revan, vol. 1, pág. 99). Certamente que uma interpretação tão literal da norma, ao adotar o caráter absoluto da presunção de violência, violaria, acima de tudo, o princípio da dignidade da pessoa humana e, como tal, encontrar-se-ia na contramão da melhor dogmática penal."
Tais as considerações, peço vênia ao Ministro Relator para conceder a ordem nos termos do voto do Desembargador convocado Celso Limongi.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEXTA TURMA
Número Registro: 2007/0187687-4 HC 88664 / GO
MATÉRIA CRIMINAL
Números Origem: 200401287470 259870
EM MESA JULGADO: 23/06/2009
Relator
Exmo. Sr. Ministro OG FERNANDES
Relator para Acórdão
Exmo. Sr. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP)
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro NILSON NAVES
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. MOACIR MENDES SOUZA
Secretário
Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
AUTUAÇÃO
IMPETRANTE : GENTIL MEIRELES NETO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS
PACIENTE : SALES DELFINO LEITE
ASSUNTO: Penal - Crimes contra os Costumes (art.213 a 234) - Crimes contra a Liberdade Sexual - Estupro (art.213) - Violência Presumida
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"Prosseguindo no julgamento após o voto-vista do Sr. Ministro Celso Limongi concedendo a ordem em menor extensão, seguido pelos Srs. Ministros Nilson Naves, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura, a Turma, por maioria, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Celso Limongi, que lavrará o acórdão. Vencido em parte o Sr. Ministro Relator."
Votaram com o Sr. Ministro Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP) os Srs. Ministros Nilson Naves, Paulo Gallotti e Maria Thereza de Assis Moura.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Nilson Naves.
Brasília, 23 de junho de 2009
ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
Secretário
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040