INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 56 - Julho / 1997





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A Lei nº 9.271/96 e sua aplicação prática

Rosier B. Custódio

Advogada e diretora do IBCCRIM

Após um ano de vigência da Lei nº 9.271/96, algumas considerações de ordem pragmática merecem destaque, optando-se por tecer alguns comentários relativamente a quatro pontos: 1) a antecipação probatória; 2) a prisão preventiva; 3) a retroatividade ou irretroatividade da lei; 4) os limites da suspensão do prazo prescricional e o aprimoramento da legislação, a fim de se encontrar o acusado.

Antecipação Probatória.

Inicialmente, grande tem sido a polêmica entre os operadores do Direito, quanto ao momento em que deve ser suspenso o processo e conseqüentemente suspenso o prazo prescricional. Não obstante a clareza da lei, dispondo sobre a necessária e imediata suspensão do processo, vários juízes têm entendido ser possível a suspensão do processo apenas após a oitiva das testemunhas de acusação. O fundamento de tal posicionamento consiste na necessidade da antecipação da prova acusatória, sob o pretexto de estar presente o risco da testemunha, arrolada pelo promotor, não mais ser encontrada ou mesmo não mais lembrar-se dos fatos após alguns anos.

Com o devido respeito aos nobres magistrados que adotam esse posicionamento, ousamos discordar, porquanto, a nosso ver, não só é contraditório ao próprio sentido teleológico conferido pelo legislador, mas principalmente é fruto de mera abstração, sem qualquer precisão técnico-jurídica. É contrário ao sentido conferido pelo legislador na medida em que a lei foi enunciada exatamente para possibilitar uma efetiva participação do acusado, atuando de forma imediata na colheita da prova instrutória, quer seja ela acusatória ou não.

Tecnicamente preocupa-nos a "ginástica jurídica" que se está tentando fazer para enquadrar tal oitiva como antecipatória, já que o que se visou foi possibilitar a antecipação da produção de provas apenas quando presente o receio, o temor de que a prova testemunhal não será mais possível no futuro, vez que incerta sua produção e sua eficácia após muitos anos. Consoante bem expôs o professor Antonio Magalhães Gomes Filho, no Boletim/IBCCRIM 42/05, Edição Especial, trata-se de medida cautelar que "(...) somente em circunstâncias muito especiais é possível adiantar providências processuais: em primeiro lugar, é exigível pelo menos a razoável probabilidade do futuro reconhecimento do direito posto como fundamento da cautela (fumus boni juris); além disso, também deve estar demonstrado o perigo de insatisfação daquele direito, em face da demora na prestação jurisdicional definitiva (periculum in mora). (...) Essa antecipação na colheita da prova não deverá ser, certamente, uma rotina ... mas providência resultante da avaliação do perigo concreto de impossibilidade na obtenção futura das informações necessárias ao êxito da persecução". Não há justificativa assim, para antecipar-se todas as oitivas das testemunhas de acusação com base na incerta dificuldade posteriori de serem as mesmas encontradas ou de não se lembrarem dos fatos, pois tais justificativas quando aplicadas genericamente tornam-se perigosas e inadmissíveis presunções.

Destarte, o argumento de que as testemunhas terão dificuldade em lembrar-se dos fatos, posteriormente, também deve ser observado com acuidade, vez que não são poucos os julgamentos que têm como fundamento probatório depoimentos prestados após vários anos, quer para condenar, quer para absolver o acusado, não tendo a antecipação probatória, até então, a aplicação rotineira ora utilizada pelos juízes, embora prevista no CPP, desde 1942. O conceito de prova antecipatória urgente deve, assim, a nosso ver, ser compreendido restritivamente, sob pena do dispositivo legal perder sua essência, já que se for ampla sua acepção, grande será o risco de burlar o sentido enunciado pelo legislador.

Ressalta-se, outrossim, que a lei visou proteger a ampla defesa, estabelecendo a suspensão do processo, desde logo, admitindo excepcionalmente — repita-se: excepcionalmente — a produção de provas antecipatórias. Para efeitos de nortear e aplicar o conceito de urgência, os doutrinadores têm indicado o dispositivo enunciado pelo, sempre vigente, artigo 225 do CPP, que permite a antecipação da prova em situações concretas como a provável ausência da testemunha decorrente de enfermidade grave, velhice, por se submeter a cirurgia cardíaca, etc. Só dessa forma, portanto, se estará cumprindo fielmente o objetivo primordial da lei, qual seja, a garantia constitucional da efetiva participação do acusado.

Prisão Preventiva

No tocante a prisão preventiva o debate também foi suscitado. De um lado há aqueles que acreditam na invariável necessidade de sua decretação quando o processo for suspenso pois, para estes, a aplicação da lei penal, nestas circunstâncias, estará sempre sendo ameaçada. Dessa forma a solução seria a decretação da prisão preventiva juntamente com a suspensão do processo. Efetuada a prisão e citado o réu, se não houver outro motivo para mantê-lo preso, poderá então ser solto. Torna-se, assim, a prisão um efeito automático da suspensão do processo.

De outro lado há aqueles, entre os quais nos incluímos, que não acreditam na volta da malsinada prisão preventiva obrigatória, defendendo que a ameaça à aplicação da lei penal deve ser concreta, e sua necessidade deve estar demonstrada, inconteste. A ser assim, posicionamo-nos no sentido de que a prisão preventiva continua a ser uma medida excepcional, cabendo ao magistrado verificar as circunstâncias, peculiaridades e necessidade concreta de cada caso, para só então decretá-la.

Vale ainda destacar, como bem observou o professor Antônio Magalhães Gomes Filho, que "...não será admissível nos casos em que a restrição a liberdade não é normalmente esperada; essa a razão, aliás, da vedação da medida nos crimes culposos ou simplesmente apenados com detenção (art. 313 do CPP), que também se aplica, evidentemente, à situação disciplinada na nova lei" (op. cit.).

Aliás, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a manifestar-se sobre o tema, decidindo por unanimidade que: "A Lei nº 9.271/96 ... não restaurou a custódia cautelar obrigatória. No caso dos delitos apenados com detenção, a decretação da prisão preventiva deve obedecer ao disposto nos arts. 312 e 313 do CPP" (RHC nº 6.262/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, j. 01.04.97, DJU 05.05.97, in Boletim/ IBCCRIM nº 55/196).

Retroatividade e Irretroatividade

Relativamente a retroatividade ou não da lei 9.271/96, três correntes travam interessante embate. A primeira entende ser totalmente irretroativa a lei, já que em obediência ao artigo 5º, inciso XL, da CF e artigo 2º, parágrafo único, do CP, impossível consiste a retroatividade da suspensão do prazo prescricional já que prejudicial ao réu. Quanto a suspensão do processo, inaplicável entende ser sua retroatividade, quer por ter natureza processual, — e portanto de aplicação imediata — quer por ser impossível a cisão legal. A segunda corrente, por sua vez, aceita ser plenamente retroativa a nova lei, a possibilitar, mesmo aos casos antigos, não só a retroatividade da suspensão do processo mas também da suspensão da prescrição. A terceira corrente, por derradeiro, defende ser possível a retroatividade da Lei nº 9.271/96, de forma parcial, apenas alcançando a suspensão do processo, não tendo o mesmo efeito no que concerne à suspensão do prazo prescricional.

Em que pese a riqueza das discussões de cada uma das três correntes, interessa-nos apenas o argumento da primeira corrente, defendendo a não retroatividade da parte processual — suspensão do processo — pela impossibilidade da cisão legal. Consiste a suspensão do processo em norma meramente processual? Não tem ela efeito material, como por exemplo a não configuração da reincidência, uma vez parado o processo? Não é a suspensão do processo norma de direito processual penal com efeitos materiais? Em caso negativo, como justificar a retroatividade, conferida majoritariamente pelos Tribunais, da outra suspensão do processo, originária do artigo 89 da Lei nº 9.099/95?

Podemos retroagir a lei parcialmente ou devemos aplicá-la em bloco? Adotamos a Teoria Unitária ou a Diferenciadora? Não obstante recente manifestação do Supremo Tribunal Federal (HC nº 74.695-1/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, j. 11.03.97, Informativo do STF nº 63, p. 2, 19.03.97, in Boletim/ IBCCRIM 54/192), entendendo que a lei é mais gravosa e, portanto, irretroativa por inteiro, insistimos que, compreendida como de natureza mista, inegável será a combinação de leis penais, adotando-se, para os casos anteriores a junho de 1996, a Teoria Diferenciadora, suspendendo-se o processo sem a suspensão do prazo prescricional. Tal combinação, aliás, não será nova entre nós, tendo sido defendida pelos professores Basileu Garcia e Frederico Marques, com inclusive antiga aceitação da própria jurisprudência nacional, por meio da combinação entre o art. 23 da Lei nº 5.726/71 e o atual art. 16 da Lei nº 6.368/76, aos fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei nº 6.368/76.

Dir-se-á que tal combinação resultará em uma desigualdade entre o acusado foragido e o Estado, porquanto suspenso restará o seu processo, sem contudo estar impedida a prescrição. Se por um lado tal fato é inegável, por outro, indagamos: de que adianta não suspender o processo aos casos anteriores, e ter como conseqüência novas decisões condenatórias sem efetividade de cumprimento? De que adianta ter decisões condenatórias que podem resultar na prescritibilidade executória já que o foragido dificilmente será capturado? Não estaríamos evitando a prescrição procedimental e, ao mesmo tempo, admitindo a prescrição executória? Ao que parece, a resposta há de ser positiva, não havendo como tecnicamente deixar de aplicar a parcial retroatividade, ainda que reconhecida a temporária desigualdade, não trazida à baila quer pelo Ministério Público, quer pelo Judiciário, mas pelo próprio Estado de Direito, que enuncia a retroatividade — e aceita eventual desigualdade — sempre que benéfica ao agente.

Suspensão do Prazo Prescricional e seu Limite.

Quanto ao limite da suspensão do prazo prescricional, inegável foi a omissão do legislador. A suspensão da prescrição como verdadeiro obstáculo à punição estatal deve ter limites impostos pelo próprio legislador, sob pena de que, se assim não o fizer, inalcançáveis serão os fins das penas, atualmente compreendidos como retribuição e prevenções geral e especial positiva. Como bem assinala o mestre Figueiredo Dias para além da prevenção especial positiva, "o instituto da prescrição justifica-se do ponto de vista da prevenção geral positiva: o decurso de um largo período sobre a prática de um crime ou sobre o decretamento de uma sanção não executada faz com que não possa falar-se de uma estabilização contrafática das expectativas comunitárias, já apaziguadas ou definitivamente frustradas" (Inconseqüencias Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas Editorial Notícias, p. 699). A ser assim, a suspensão ilimitada e desproporcionada ao delito, configura-se como contrária à própria finalidade da sanção, motivo pelo qual imperiosa é a urgente alteração legislativa, fixando o prazo limítrofe à suspensão da prescrição. Enquanto tal modificação não ocorrer, todavia, necessário o sério trabalho dos doutrinadores e julgadores, a quem incubirá nortear eventuais fixações de prazos da suspensão da prescrição.

Quanto ao trabalho da doutrina, frutuoso, como sempre, já foi o seu estudo, havendo, no mínimo seis correntes defensoras dos prazos limites à suspensão da prescrição. No que tange aos julgadores, infelizmente, poucos são aqueles que têm se manifestado acerca do tema, preferindo apenas por suspender o processo silenciando-se quanto o limite máximo da suspensão da prescrição, sendo de vital importância a provocação dos advogados, nomeadamente da sempre zelosa Procuradoria do Estado.

Sem adentrarmos em qual das correntes configura-se como a mais correta, importa-nos apenas frisar a necessidade do limite da suspensão do prazo prescricional, a evitar a imprescritibilidade como regra, com conseqüências nefastas e desiguais se comparadas àqueles que comparecem e posteriormente fogem, uma vez que possível aos foragidos a prescrição.

Conclusão

Para finalizarmos o presente artigo gostaríamos apenas de ressaltar que, não obstante as falhas — principalmente a observada no tópico anterior —, não temos dúvida de que a lei vem ao encontro de tendências legislativas modernas, impedindo o processamento do acusado sem sua presença. No entanto seria de extrema relevância que o legislador, na lege ferenda, enunciasse medidas mais eficazes que viabilizassem encontrar efetivamente o acusado. Para tanto sugerimos o estudo do modelo português, enunciado no art. 336 do Código de Processo Penal Português, que estabelece ao juiz, além de suspender o processo e o prazo prescricional, o poder de anular todos os negócios jurídicos de natureza patrimonial do "revel", realizados após a declaração de contumácia equivalendo a "morte civil", perdurando tal efeito até a sua apresentação, com possibilidade, outrossim, de impedir ao "revel" a obtenção de determinados documentos, certidões ou registros junto a autoridades públicas, bem como ter contra si o arresto de seus bens, na totalidade ou em parte; tudo com a finalidade de possibilitar a participação do acusado no processo, quer para a garantia da ampla defesa, quer para a concretitude da execução da sentença condenatória eventualmente prolatada.

Eduardo Reale Ferrari
Advogado, mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito de Coimbra e professor da PUC/SP e UNIP/SP

Rosier B. Custódio
Advogada e diretora do IBCCRIM.



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