INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 54 - Maio / 1997





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A absolvição e álibi (não-autoria)

Aramis Nassif

Juiz de alçada e professor da Escola Superior da Magistratura (Ajuris) e da Fundação da Escola Superior do Ministério Público (FESMP) do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) e do Centro de Estudos Jurídicos (Cejur)

A dificuldade de acomodar certas convicções sócio-jurídicas em torno de um tema, ao meu ver interessante e, ao mesmo, angustioso, obriga trazê-lo à exposição e, conseqüentemente, ao debate com eventuais interessados.

Trata-se de investigar a sede formal adequada para a declaração absolutória de quem, sujeito de acusação por qualquer prática delitiva, demonstrar cabalmente que não foi seu autor. Assim, exemplificativamente quando prova o álibi alegado.

Importa, evidentemente, para o estudo, não só buscar alternativa para reconstrução do status dignitatis do absolvido, como obstar graves reflexos da sentença penal no juízo cível.

Residem no art. 386, do Código de Processo Penal, as causas formais da absolvição. A norma está revestida, pela sua redação clara, de cogência e, portanto, inafastável de sua referência na decisão. A esta imposição normativa específica, adita-se a de ordem genérica contemplada no art. 381, IV, do diploma processual que, pena de nulidade, obriga sua identificação na parte dispositiva da sentença.

Ora, assim está redigido o art. 386, do diploma processual: "Art. 386 — O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I - estar provada a inexistência do fato; II - não haver prova da existência do fato; III - não constituir o fato infração penal; IV - não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal; V - existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena (arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1º, do Código Penal). VI - não existir prova suficiente para a condenação".

A matéria não envolve, evidentemente, a hipótese de absolvição sumária prevista no art. 411, do diploma processual. Acontece que o dispositivo refere-se expressamente à conclusão absolutória pela "existência de circunstância que exclua o crime ou isente de pena o réu...". As questões sobre a autoria resolvem-se com a pronúncia ou impronúncia (se não contempladas pela hipótese acima).

As opções que a norma oferece para absolvição, por demonstrada a não-autoria do fato criminoso, são as do inciso IV ou VI.

A primeira diz respeito a concurso de agentes (co-autoria ou participação), conforme lição de Frederico Marques (Elementos de Processo Penal, Forense, vol. 3, p. 45), mesmo que alguns autores entendam que "não ficando evidenciado tenha o réu executado o crime ou tenha participado dele, inexiste prova da autoria ou participação, que enseja sua absolvição" (Mirabete, Processo Penal, Atlas, p. 435), com base no referido inciso.

Ora, mesmo que se adote a interpretação deste último jurista, ainda assim é de lembrar que, para efeito do presente estudo, importa a absolvição absoluta e não a meramente declaratória. Ou seja, aquela que, proclamada a inocência do acusado, afaste outras indagações judiciais ou pleitos na instância cível. É evidente que, com base neste inciso, que versa sobre "não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal", implica manter em seu prejuízo a dúvida quanto à concorrência criminosa. E como amoldar à causa formal absolutória o reconhecimento do álibi, ou seja, quando existir prova de não ter o réu concorrido para a infração penal?

Mais grave quando a absolvição é alcançada pela segunda via (incisco VI). Sua lamentável redação ("não existir prova suficiente para a condenação") tem sua própria constitucionalidade questionada. Assim: "Cremos que o art. 5º, LVII, da CF, que instituiu o princípio segundo o qual, enquanto não transitada em julgado a sentença condenatória, deve ser considerado inocente, revogou o inciso VI do art. 386 do CPP. Se a acusação se propõe a provar um fato e, ao término da instrução, paira 'dúvida razoável' sobre sua existência, 'não pode ser tido como provado', i.e., deve ser considerado inexistente, não provado" (Jorge Figueiredo Dias, A Proteção dos Direitos do Homem no Processo Penal, Revista da Associação dos Magistrados do Paraná, 19/45, nº 1). "Da forma como consta do inciso, porém dá o texto a entender que há prova no sentido da ocorrência do fato, só que insuficiente para a condenação" (Damásio, Código de Processo Penal Anotado, Saraiva, p. 233).

A absolvição com base neste inciso — provado não ter sido o réu o autor do fato — muitas vezes é sustentada pela informação colhida no momento inquisitorial, desmentida sob o crivo do contraditório. Isto é, a denúncia fora oferecida pelos elementos produzidos pelo inquérito e tão-somente por isto a absolvição terá como base o inciso criticado.

Portanto, inverte-se a aplicação do princípio da presunção da inocência: o acusado prova a sua inocência e não a acusação prova sua culpa.

Com isto é relembrar Luiz Flávio Gomes quando registra revigorados alguns entendimentos da Escola Penal Clássica (italiana): "A presunção de inocência aparece, nesta concepção, como princípio orientador e fundamentador de todo o processo penal. Foi-lhe conferida a máxima amplitude: 'todos e cada um dos momentos do processo penal, todas e cada uma das regras que o disciplinam, encontram seu fundamento na proteção da inocência, de tal forma que a infração a qualquer dessas regras se converte em um ataque dirigido, em última instância, contra a própria presunção de inocência'." (Sobre o Conteúdo Processual Tridimensional do Princípio da Presunção da Inocência, RT 729/377).

Poder-se-ia pensar na aplicação do art. 43, III, do Código de Processo Penal para que a sentença atestasse a ilegitimidade de parte: "Art. 43 - A denúncia ou queixa será rejeitada quando: (...) III - for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal".

Todavia, e não poderia ser diferente, se identificar o juiz a ilegitimidade do denunciado, rejeitará a peça incoativa. Se, ao contrário, formalizar-se o processo e instaurar os atos instrutórios, a decisão será de mérito e, por óbvio, não haverá extinção do processo sem seu julgamento, o que leva ao desfalecimento a tese. Não se trata, pois, de absolvição.

A conclusão pela aplicação analógica de dispositivos do Código de Processo Civil também não supera a questão controvertida.

O art. 267, do Código de Processo Civil, autoriza a extinção do processo sem julgamento de mérito "quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual" (inciso VI).

Primeiro, porque, como referido no item acima, o processo penal tem previsão expressa para a hipótese de ilegitimidade de parte (art. 43, III, CPP); segundo, porque, em tratando a norma de extinção antes do julgamento do processo (mérito), não alcançaria solução para a questão proposta, nem para o conseqüente impasse.

Conclui-se que nem quando se refiram às exceções (art. 110 e art. 111, CPP) atende-se ao exigível na espécie estudada, de vez que, ainda assim, referem-se as sentenças a circunstâncias preliminares do exame meritório. E por isto mesmo, em qualquer das hipóteses, o réu não seria absolvido e a matéria esgotar-se-ia no plano do defeito formal.

Por isto mesmo que Frederico Marques ensinou: "Entendem alguns processualistas que, (...) o pronunciamento jurisdicional que exime o réu de sofrer uma decisão condenatória deve ser qualificado como sentença de absolvição. Não nos parece certa tal opinião, notadamente em face de nosso direito positivo. Sentença absolutória é aquela que incide sobre a acusação para declará-la improcedente. A decisão que julga inadmissível um pronunciamento sobre o mérito da acusação tem caráter processual e não se confunde, portanto, com a sentença absolutória, onde há ato decisório sobre a pretensão punitiva, ou seja, sobre o próprio meritum causae. Nem de outra forma se poderia conceituar, no processo penal brasileiro, a sentença penal de absolvição, em face dos dizeres claros do  art. 386 do CPP, onde vêm explícitos os motivos e causas que devem constar da decisão que declara o réu absolvido" (Elementos de Direito Processual Penal, Saraiva, p. 35).

Com tais considerações, é de ver o reflexo cível da ação penal. O art. 1.525 do Código Civil determina que: "A responsabilidade civil é independente da criminal; não se poderá, porém, questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no crime".

Como alcançar solução ampla — absolvição no processo penal e evitação da ação cível ex delicto — diante do impasse? É duvidosa a própria hipótese da exceção de ilegitimidade procedente para pacificar a questão.

Importa considerar que os incisos I e II, do art. 386, resolvem claramente a questão sobre a existência do fato. Aquele, inclusive, afasta definitivamente a pretensão de direito privado, consoante dispõe o art. 66, CPP: "Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato".

No mesmo sentido resolve-se com a redação do art. 65, CPP, os reflexos cíveis da absolvição penal pelo reconhecimento de uma excludente da criminalidade.

Mas, não existe na norma (art. 386, CPP) qualquer hipótese que autorize, nos termos do art. 1.525 do Código Civil, não ser do réu a autoria do fato. O processo penal, então, atende, para efeitos de reflexos cíveis, quem é o autor do delito (com a condenação).

Por isto mesmo que a questão merece meditação e providências para alcançar-se uma situação mais justa.

Resulta que a matéria versa sobre uma das questões mais respeitadas no contexto da interpretação penal: a presunção de inocência.

Sendo ela um estado jurídico-constitucional de qualquer cidadão (art. 5º, LVII, CF), exposta a risco quando acusado da prática delituosa pelo Estado ante sua natureza juris tantum, certamente que, proclamada a absolvição em relação ao fato incriminado, a inocência deixa de ser presunção para ser certeza jurídica. Tanto é verdade que, com o trânsito em julgado da sentença penal absolutória, "a segurança jurídica exige que não se possa sujeitá-lo novamente a outro processo penal pelo mesmo fato e que não seja ele condenado em decorrência da mesma ocorrência pela qual foi absolvido" (Mirabete, op. cit. p. 446).

Assim posto, a dúvida quanto à autoria pela implicitude dela nas normas possíveis de aplicação na sentença (art. 386, IV ou VI, CPP), assim nela declarada, e por isto mesmo absolveu o acusado, já é uma violência contra a presunção de inocência (restabelecida, posso conceder...) e, ao meu ver, permanente à coisa julgada, à certeza jurídica da inocência. Tanto mais grave é a injustiça perpetrada, mesmo com a absolvição, quanto mais provada a inocência do acusado (v.g. álibi incontestável, induvidoso).

Considerando que o sistema penal brasileiro está sofrendo notável reforma, oportuno seria o legislador considerasse substituir o inciso VI, do art. 386, CPP  (ao meu ver inconstitucional) por outros dois, com as seguintes redações: Art. 386 - o juiz absolverá o réu, mencionado a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (...) VI - estar provado que o réu não foi autor do fato; VII - não haver prova de ter sido o réu autor do fato.

Com isto, estar-se-ia contemplando as hipóteses absolutórias consagradas no in dubio pro reo e, o que é relevante, o pleno reconhecimento da inocência do acusado que demonstrar não ser o autor do fato.

Estou convencido que a solução sugerida conferirá aos juízes maior conforto em suas decisões, alcançará a pacificação social evitando aforamento de ação cível contra quem, evidentemente, não é autor do fato delituoso e, mais que tudo, reconhecerá aos réus em geral a possibilidade de uma absolvição justa.

Aramis Nassif

Juiz de alçada e professor da Escola Superior da Magistratura (Ajuris) e da Fundação da Escola Superior do Ministério Público (FESMP) do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS) e do Centro de Estudos Jurídicos (Cejur).



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