INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 316 - Março/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Editorial

A Constituição nos desafia

Há algumas décadas – conforme alguns leitores devem se lembrar –, a maioria dos professores de Direito era ligada a alguma carreira pública; juízes lecionavam processo civil e promotores, processo penal. Procuradores do Estado falavam sobre direito administrativo. Os advogados, bem, esses se limitavam a “estranhas disciplinas”, como prática forense.  Aqui e ali, surgia um advogado falando sobre direito do trabalho. Com raras exceções, as aulas se limitavam à leitura dos códigos e sua interpretação literal. O ensino jurídico chegava a seu limite de alienação da realidade nas aulas de Direito Constitucional, resumidas à leitura de uma Emenda Constitucional. A Constituição era um nada, alguma coisa com a qual os alunos não deveriam perder tempo.

Estávamos na ditadura civil-militar. Nossos doutrinadores eram majoritariamente ligados ao regime (Orlando Gomes fora disso, Hermes Lima quase clandestino). Os professores que os adotavam talvez nem soubessem disso, pois era natural defender a prevalência do “interesse público ” , cujo conceito podia ser amoldado ao gosto de quem estava no poder .

Naqueles dias, os cinemas conheciam a censura prévia e nós nos acostumávamos com um “certificado de censura da Polícia Federal”.  A perseguição política e a prática disseminada da tortura – que nos acompanha até hoje – eram formas admitidas de controle e garantia da “ordem pública”.  Enquanto isso, as ruas eram inundadas de carros com adesivos, BRASIL: AME-O OU DEIXE-O. O Partido do Governo Militar, a ARENA, tinha vitórias sucessivas sobre o MDB, que – ironias históricas – era oposição; a oposição possível e tolerada. Nas ruas, a polícia enquadrava – “mão na cabeça e documento!” - e praticava “prisões para averiguação”, uma forma selvagem de levar gente sem mandado, para nunca mais, como tantos. As forças de segurança, assim, aprendiam e solidificavam as técnicas que, décadas depois, continuariam a ser usadas contra Amarildo, contra Marielle, contra a população negra, pobre e periférica: a maioria para quem a democracia continua sendo uma quimera ainda hoje.

Na ditadura, quase ninguém tinha direitos, sequer enunciados formalmente. Preto não entra, todos sabíamos que nos clubes associativos da cidade não havia negros. Isso era natural. Ou melhor, naturalizava-se, da mesma forma como era natural que no colégio público houvesse pouquíssimos negros porque o ensino obrigatório não ultrapassava a quarta série. Não se aprendia propriamente História, mas OSPB, Organização Social e Política do Brasil. Reminiscências de um tempo sombrio que hoje voltam para nos lembrar o quanto de autoritarismo permanece.

Todos nós testemunhávamos a falência do ensino público no Brasil. Quem tinha dinheiro optou pela criação de um sistema paralelo, privado, para onde migraram as famílias brancas de classe média. Não houve nenhum movimento de emancipação da escola pública, relegada aos filhos dos pobres.

Nos anos 80, uma de nossas muitas décadas perdidas, o regime militar se dissolvia, à custa de um endividamento externo brutal e da hiperinflação. O regime não conseguia mais evitar as notícias de corrupção nem a censura prévia conseguia esconder da população que as coisas iam muito mal. Todos sentíamos. Se a censura prévia oficial é suficiente para barrar um filme, um livro, uma canção ou uma peça de teatro, ela jamais escondeu a realidade cotidiana, vivenciada pelo povo: fator que desestabiliza qualquer ditadura.

Naqueles dias, em que a cúpula militar definitivamente não sabia mais como administrar o caos a que deu origem, nossas manchetes sempre se referiam a um sinistro órgão externo, que tudo podia: o FMI. Um Brasil à beira do caos institucional, uma Constituição forjada na ditadura, o jogo virando, o partido do governo perdendo as eleições. Os adesivos começaram a sumir dos carros e ninguém suportava mais a ditadura, ninguém mais suportava censuras, tutelas, as prisões causavam discussões e as pessoas concluíam que, na verdade, andávamos para trás.

Os preços disparavam e, nos supermercados, havia uma função exótica: o remarcador, que corria as prateleiras recarimbando preços, de tal sorte que a ida ao supermercado exigia um planejamento estratégico para comprar em sentido contrário ao dele.

Não tínhamos balizamento institucional-legal para quase nada; nossas relações sociais que encontravam alguma regulação eram as trabalhistas. Nem se falava em direito ambiental, direito do consumidor, da infância e da juventude, muito menos, à evidência, de direitos humanos e fundamentais, até porque estávamos acostumados a uma Constituição que refletia o estado de ânimo do ditador da vez.

Mudar a Constituição não nos surpreendia. Era coisa cotidiana, às vezes com mais truculência, fechando-se o Congresso, como se fizera em algumas oportunidades.

Nos anos 80, a necessidade de institucionalizar minimamente o país nos uniu em torno de duas grandes bandeiras: eleições presidenciais diretas e uma Assembleia Constituinte. Em 1984, o primeiro projeto foi vencido pelas forças reacionárias que experimentaram, vencendo, uma derrota histórica. Coisas do Brasil, onde perdendo também se ganha. Vivemos uma catarse na morte do candidato vencedor, mas jamais empossado, Tancredo Neves. Seu vice, nascido do mais genuíno espírito de composição que nos atormenta e nos liberta, José Sarney, foi empossado num truque jurídico espetacular. Seu governo foi marcado por uma inflação jamais vista, um sentido democrático emancipatório e, finalmente, pela Assembleia Constituinte (na verdade, um Congresso Constituinte): um parlamento sui generis que executava as antigas funções e, simultaneamente, tinha poderes constituintes originários. Parece que não era para dar certo, mas deu.

Num clima de Copa do Mundo, com uma legitimidade muito mais sentida e percebida que explicada, o Brasil pariu sua Constituição Cidadã. Parecia que as coisas tomariam outro rumo e, pela primeira vez por aqui, era produzido algo que tinha por objetivo central a limitação dos poderes do Estado. Ninguém sabia exatamente o que significava ou significaria isso, mas a certeza geral era a de um Brasil que renascia, com uma vocação que, até então, desconhecíamos.

Algumas propostas eram – e ainda são – heroicas. Criávamos o maior plano de saúde do planeta, em que todo ser vivente, em território nacional, teria direito aos serviços públicos de saúde. Por meio da afirmação da igualdade e da universalização dos serviços essenciais, a cidadania parecia querer chegar aos baixos dos viadutos. Foram séculos para que toda forma de discriminação fosse posta à margem da lei, que trazia para dentro da Constituição, como uma das vigas mestras desta nossa república, o respeito à dignidade da pessoa humana. A miséria, o racismo, a violência, a tortura, a devastação, o capitalismo selvagem, a dependência internacional, tudo o que nos violava de forma quase atávica era finalmente arrastado. O anúncio, no pórtico, era ambicioso: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Como não se encantar com esse país? Vivíamos uma inflação devastadora, tínhamos índices de desemprego medonhos e, não obstante, produzimos uma Constituição que causava admiração, porque havíamos reescrito o país. O melhor Brasil medrava no solo árido de uma economia em frangalhos. Descobríamos a igualdade, descobríamos a proteção à dignidade humana como única alternativa possível para conseguirmos a paz, a diminuição da miséria, a inclusão social. A Constituição tocou em nossas feridas abertas, colocando-nos nus perante o espelho da História.

Décadas depois, a sensação que nos invade é que talvez tenhamos sido ingênuos e nos valorizado demais. Talvez tudo o que houvéssemos tentado sepultar tenha passado a arrastar correntes, a cobrar pedágios sangrentos e a lentamente tornar a Constituição uma espécie de repositório de culpas. Parece ter vencido uma disputa narrativa o discurso perverso segundo o qual poderíamos ser melhores e somente não o somos porque a Constituição não permite.

A luta pela igualdade ofendeu nossas elites. Nosso racismo estrutural protegia o preto de alma branca, não esse que reivindica privilégios exclusivos dos brancos. Nossa “mulata” sempre foi exportação. Era dela a sensualidade e o charme da mulher brasileira, que, de resto, sempre soube de seu lugar, e esse lugar não era na sala de estar, jamais foi. A experiência curta – curtíssima – de se verem negros nos corredores universitários, sem que ali estivessem como faxineiros, acabou se tornando chocante às elites e às classes médias tradicionais, que sempre pensaram ser a elite.

Então, igualdade é isso? Então, proteger a dignidade da pessoa humana é isso? Nesse Brasil, nossa Constituição causa incômodo. Esse incômodo, que era algo um tanto etéreo, passou a se substantivar. Com perplexidade assistimos a pessoas saírem às ruas pedindo intervenção militar.  Nesse contexto, vimos crescer, tomar corpo e vencer um candidato à Presidência que sempre fez apologia ao golpe militar, que alçou-se à fama a partir de uma profusão de declarações misóginas, homofóbicas e racistas, e que disse pretender jogar o ECA na latrina.

Os anos todos que lutamos em defesa do respeito à diversidade sexual estão sendo lançados às águas sujas da intolerância. A luta antimanicomial, uma das mais espetaculares bandeiras que conseguimos erguer à solidariedade humana, está se perdendo em prol de interesses econômicos, com a proliferação de comunidades terapêuticas privadas, e com a permanência da lógica manicomial em diversos aparelhos públicos, como os odiosos hospitais de custódia .

Estamos lotando cadeias como nunca, prendendo como nunca. O Poder Judiciário, concebido pela Constituição para que atuasse na defesa das pessoas comuns contra o poder de punir, comporta-se, em muitos casos, como mera extensão das viaturas policiais. Vemos a militarização invadir periferias e ser praticado um genocídio negro de forma cada vez mais intensa.

Não temos mais censura, é certo; temos robôs, uma engenharia virtual que cria vozes inexistentes que falam em ódio, boicote, mortes, ameaças, tripudiam de tragédias pessoais.

Foram vinte anos para que a árvore da Constituição crescesse, mas sua sombra parece ter desagradado muitos dos brasileiros, sobretudo aqueles que mais têm voz em nossa sociedade desigual. Defender a Constituição é defender uma árvore de direitos, de cujos galhos pendem os frutos da igualdade, da equidade de gênero, da solidariedade, da luta contra a miséria, do combate às diferenças de renda, do meio ambiente saudável, do acesso universal à saúde, do respeito aos direitos individuais, aos índios, aos quilombolas, à preservação da fauna e da flora, à sustentabilidade, ao patrimônio cultural e artístico, à privacidade, do respeito à diversidade, do combate ao racismo, ao direito de moradia, à educação livre e constituidora da cidadania crítica, à defesa do salário digno, do direito ao trabalho, do direito à terra.

Defender a Constituição é, sobretudo, adotar os Direitos Humanos como regra de gestão pública e privada.

O IBCCRIM – temos imenso orgulho disso – fechou questão na defesa intransigente da Constituição, não abrindo mão de lutar diuturnamente pela preservação democrática, com as armas de que dispõe: a História, o discurso científico e o agregamento que promove, ao trazer para dentro de sua essência o direito mais amplo, libertário, igualitário e acolhedor que se puder imaginar.  O IBCCRIM, ciente de que rema contra a corrente, saúda o povo brasileiro, pede passagem e convoca todas as forças democráticas à resistência



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