Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
Em abril de 2018, as pessoas presas na Penitenciária de Lucélia, no interior de São Paulo, promoveram uma rebelião reivindicando melhores condições de cumprimento de pena. Dentre as demandas estavam a qualidade da alimentação, as condições de higiene, a precariedade da assistência à saúde e, sobretudo, a extrema superlotação e o fim de ações violentas por parte do Grupo de Intervenção Rápida (GIR).(1)
A rebelião acabou por atrair a atenção da mídia e de operadores do sistema criminal porque três defensores públicos que estavam em atividade de inspeção no local foram feitos reféns durante quase 24 horas. A visibilidade do evento mobilizou o Governo Estadual e, depois de negociações encabeçadas pelo Grupo de Ações Táticas Especiais da PM, os reféns foram liberados ilesos, ainda que alguns presos tenham sofrido lesões durante a rebelião.(2)
Como represália, contudo, foi determinada a suspensão de todas as visitas nas unidades prisionais do Estado de São Paulo e, na Penitenciária de Lucélia, determinou-se a presença perene do GIR, gerando inúmeras denúncias de violência física e psicológica nos dias que se seguiram, o que perdurou até que todos os presos fossem transferidos a outras unidades, igualmente superlotadas e indignas. Lucélia, assim, voltou à invisibilidade.
A Defensoria Pública de São Paulo, por seu turno, suspendeu suas inspeções em todas as unidades prisionais do Estado, apesar de tal atividade constituir obrigação legal da instituição, nos termos do art. 81-B, V, da Lei de Execução Penal (LEP). Meses depois do ocorrido, a atividade ainda não foi retomada, diante da alegada resistência do atual titular da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Mesmo as visitas corriqueiras para atendimento processual passaram a ser dificultadas, havendo relatos de Defensoras e Defensores Públicos sobre a criação de embaraços e exigências descabidas para o ingresso nas salas de atendimento legalmente reservadas à Defensoria Pública.
O fechamento das unidades prisionais é inaceitável. Impedir acesso à Defensoria Pública viola o direito constitucional à assistência jurídica integral e agrava o quadro de violências no cárcere à juventude negra, pobre e periférica, que compõe quase a totalidade da população encarcerada.
A atividade de inspeção de unidades prisionais por integrantes da Defensoria, por seu turno, é essencial, especialmente porque as fiscalizações realizadas pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público têm se mostrado inócuas. Após a rebelião em Lucélia, o IBCCRIM, juntamente com diversas entidades parceiras, oficiou a SAP, solicitando informações sobre as fiscalizações realizadas pelos órgãos de execução na unidade. A Secretaria respondeu que “nos relatórios de inspeção do mês de abril e de maio de 2018, não houve por parte das autoridades acima mencionadas qualquer apontamento de irregularidade”. O fato de que a grande maioria dos relatórios de inspeção dessas autoridades não aponta irregularidades, quando o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu o estado de coisas inconstitucional nas unidades prisionais brasileiras, não deixa margem a alternativa senão à conclusão de que há desídia ou conivência.
Vale recordar que São Paulo é responsável por um terço da população prisional do país, segundo os dados do Infopen, e que a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que requer a declaração do estado de coisas inconstitucional e que teve medida cautelar parcialmente deferida no STF, foi subsidiada por parecer do professor Juarez Tavares, fundado justamente nos relatórios de inspeção da Defensoria Paulista, que, diferentemente dos relatórios judiciais e ministeriais, trazem a real dimensão da catástrofe cotidiana vivenciada nos presídios.
O fechamento dos presídios aos defensores públicos, contudo, vem apenas somar-se ao contexto de enorme falta de transparência da gestão prisional paulista. Entidades ligadas ao terceiro setor também relatam grande dificuldade em acessar as unidades prisionais. O Estado ainda não criou o mecanismo estadual de prevenção e combate à tortura, apesar da previsão na Lei Federal 12.847/2013. Sequer os conselhos da comunidade foram criados em todas as comarcas com unidades prisionais, sendo que os que existem, muitas vezes atuam como se subordinados fossem aos juízes corregedores dos presídios.
A pesquisa acadêmica nos espaços prisionais do Estado, por seu turno, é quase impossível, tendo-se em vista a criação de uma morosa comissão de ética interna sob a qual o Secretário tem a decisão final. Soma-se a essa “política de abafamento” o plano de interiorização das unidades prisionais, que se seguiu ao Massacre do Carandiru(3) nas últimas décadas, promovendo o distanciamento das prisões dos grandes centros, obstaculizando as visitas e afastando o interesse midiático sobre o que ocorre dentro dos presídios.
Essa política prisional intensificou-se ainda mais após o equilíbrio de poder estabelecido com a negociação que levou ao fim dos ataques e sublevações do Primeiro Comando da Capital em 2006. Ainda que negado pelo Governo, a existência de algum nível de acordo entre a facção hegemônica em São Paulo e as autoridades constituídas é consenso entre os estudiosos do sistema prisional,(4) alterando substancialmente a forma de gestão prisional e estabelecendo uma relação simbiótica entre a administração e os comandos informais. Esse movimento levou à intensificação do fechamento do cárcere à sociedade civil e às instituições de controle externo, tendo-se em vista a manutenção de um equilíbrio precário de poder, mantido por via de um acordo inconfessável à opinião pública.
Os eventos de Lucélia, contudo, mostram um abalo nesse equilíbrio, eis que se tratou de uma rebelião em proporções que há algum tempo não se via no sistema paulista. É um indicativo de esgotamento, eis que a intensificação irrefreada do encarceramento em massa vem criando condições de aprisionamento tão bárbaras a ponto de afetar a vigência de um armistício a que se assistiu na última década. Nesse sentido, a opção do Estado por intensificar ainda mais o fechamento do cárcere, agora obstaculizando o exercício da assistência jurídica e suspendendo a atividade de inspeção pela Defensoria Pública e por órgãos de controle externo, é claramente equivocada, além de ilegal. A política caracterizada pela invisibilidade do cárcere e pela simbiose entre o Estado e facções prisionais afigura-se como a receita do desastre. Lucélia é a evidência.
Notas
(1) Grupo de agentes penitenciários criado em 2004 em São Paulo, incumbido de incursões em unidades prisionais em contextos de algum descontrole identificado pela direção do presídio, sobre o que recaem inúmeras denúncias de presos e familiares acerca de tortura e maus tratos.
(2) Houve críticas por parte de agentes penitenciários, em grupos e fóruns digitais, apontando que, em tantas outras rebeliões e motins, quando os reféns são os próprios agentes prisionais e/ou pessoas presas, a resposta padrão do Estado consiste na autorização para a entrada da Tropa de Choque ou do próprio GIR, inevitavelmente colocando em risco a vida de amotinados e reféns.
(3) Vale mencionar que, assim como a inocuidade da atividade de inspeção judicial das prisões, a não resposta do Poder Judiciário ao Massacre do Carandiru é um dos mais vergonhosos exemplos de blindagem judicial da barbárie carcerária em São Paulo. O julgamento do massacre do Carandiru, que vitimou 111 pessoas em outubro de 1992, ainda não possui uma decisão definitiva. Em decisão de abril de 2018, o Superior Tribunal de Justiça determinou a renovação do julgamento da apelação pelo TJSP, que havia declarado a nulidade do processo.
(4) Nesse sentido, p. ex.: “Qualquer que seja o nome dado às tratativas envolvendo autoridades e presos com o objetivo de colocar fim aos ataques, o fato é que percebemos que elas foram essenciais não apenas para fazer arrefecer cada um desses 4 momentos da crise – essencialmente, o evento de maio –, mas, principalmente, para estabelecer novos contornos às relações entre presos e administração prisional (DIAS, 2013). Nesse sentido, tem-se a conformação de uma situação de estabilidade sem precedentes na história das prisões paulistas” (Adorno, Sérgio; Dias, Camila Nunes. Cronologia dos “ataques de 2006” e a nova configuração de poder nas prisões na última década. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 10, n. 2, p. 126, ago./set., 2016.).
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040