Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
O maior número de mortos entre a população civil. Territórios urbanos inteiros sitiados por forças militares. No sítio, casas invadidas por soldados para operação de guerra. Construções estratégicas tomadas para abrigar armamento e soldados. Tiroteios durante o dia. Tiroteios à noite. População civil que não pode prosseguir com a vida cotidiana, pois nenhum lado do conflito armado está em sua defesa. População civil vista como obstáculo à ação militar.
França invadida por nazistas em 1943? Sarajevo sitiada por sérvios em 1992? Não. Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, Brasil, em 2017.(1)
O território do complexo do Alemão está ocupado pela Polícia Militar. Só em 2017, 29 moradores ficaram feridos durante tiroteios. Dez morreram. Além disso, sete policiais militares ficaram feridos. Em abril de 2017, cerca de 1.800 alunos das redes municipal e estadual ficaram sem aulas por causa da violência.(2)
Moradores do "Largo do Samba", no interior do Complexo de Favelas do Alemão, haviam denunciado a invasão de suas casas em fevereiro, por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora Nova Brasília, para uso como base militar. As denúncias foram confirmadas por visita in loco do Ouvidor-Geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ e da OAB-RJ. Diante dos fatos, a Defensoria ajuizou ação civil pública em face do Estado, onde pede a imediata desocupação desses imóveis. Em 27 abril, foi determinada judicialmente a imediata desocupação, bem como que a Corporação se abstenha “de turbar ou esbulhar a posse privada sob o pretexto da utilização dos imóveis para operações militares no contexto do combate à criminalidade naquele Complexo”.(3)
A guerra é em nome do combate ao tráfico de drogas. É movida pela Polícia Militar contra um inimigo interno. É ilegal, imoral e inútil para a finalidade declarada. E, ainda que movida contrariamente à Constituição, às leis, e aos princípios dos direitos humanos, esta guerra não sofre questionamento das instituições de controle da ação policial: elas não funcionam na prática.
A Constituição de 1988 manteve intacta a estrutura da segurança pública herdada do regime militar, dos atos institucionais e da Emenda de 1969. Foi mantido o modelo das duas polícias, e o Ministério Público (MP) como órgão responsável pelo controle externo de ambas. Esta é uma das razões porque se considera a democracia no Brasil inacabada, disjuntiva, bloqueada por um entulho autoritário.
Na prática, o controle externo das polícias pelo Ministério Público herdou as concepções e práticas do regime autoritário. A ampliação das funções do MP para a tutela dos direitos coletivos e difusos (“tutela”, conceito já problemático) trouxe a necessidade de atualização e redefinição, além de aumentar o poder e as funções desta instituição. Mas praticamente não houve qualquer alteração da atuação no processo penal e na relação com as polícias.
Uma pesquisa recente, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), apontou que 88% dos promotores e procuradores não veem relevância na atividade de controle externo das polícias. Segundo as respostas à pesquisa, o controle externo das polícias não faz parte das atividades de 70% dos membros da instituição. Isto significa que mesmo a atividade de controle nos inquéritos, dada pela titularidade da ação penal, não é vista pelos respondentes como controle da atividade policial. Outras pesquisas realizadas sobre o funcionamento do sistema de justiça têm demonstrado que o Ministério Público ratifica a versão dos autos policiais na imensa maioria dos inquéritos, mesmo que não haja provas além do testemunho policial. Certamente que policiais podem e devem dizer a verdade, mas erigir um sistema de justiça – e um sistema de construção da verdade – exclusivamente sobre a palavra e unilateralidade é apostar na fragilização de toda e qualquer possibilidade de justiça.
Os membros do MP (cujo perfil médio é masculino e branco) reconheceram à pesquisa do CESeC que a atuação no controle externo das polícias é a pior entre todas as áreas de atuação institucional: 42% reconhecem que o desempenho do órgão no controle externo da polícia é ruim ou péssimo e 35% consideram-no regular.
A inação do MP carioca diante dos flagrantes abusos e violações cometidas pelas forças policiais não é uma atitude localizada. Em São Paulo, a ligação do Ministério Público com a política de segurança que confere o protagonismo à Polícia Militar e às táticas de combate ao inimigo interno também tem sido apontada em estudos.(5) A pasta da segurança pública tem sido chefiada por oriundos do MP em seguidas gestões, por mais de uma década. A capacidade de definir rumos à atuação policial, neste caso, supera muito o controle judicial das práticas, tratando-se de poder político diretamente exercido. E, mesmo assim, menos de 4% das mortes em decorrência de ação policial resultam em inquérito policial sobre as circunstâncias do uso da força letal da polícia.
Em contrapartida, instituições como Ouvidorias e outros órgãos independentes de controle externo da atividade policial restaram enfraquecidas e subordinadas no modelo institucional da segurança pública atualmente consagrado.
As violações aos direitos humanos ocorridas nos territórios sob o controle armado de grupos organizados precisam estar nas prioridades da segurança pública e das políticas judiciais. Desmantelar o poder armado requer investigar a fundo os circuitos e a sustentação política do tráfico de armas com vistas a desmantelar esse mercado ilegal e nefasto. Para esta tarefa, a função constitucional do Ministério Público, como titular da ação penal, é imprescindível.
É fundamental acreditar na capacidade institucional de erradicar as violações aos direitos fundamentais pela via do Direito e da justiça. E para isto são necessárias reformas institucionais profundas nas polícias – e no controle externo de sua ação. Entregar a defesa da vida e dos valores humanitários às estratégias de guerra é sucumbir à barbárie.
Notas
(1) Em maio de 2017, o jornal comunitário Voz das Comunidades produziu um vídeo com o som dos tiroteios no Alemão e pergunta nas ruas de onde seria esse som. As respostas se referiram ao Afeganistão: <https://www.youtube.com/watch?v=sXqa0-Poc2A>.
(2) Um breve panorama da violência no território do Complexo do Alemão pode ser encontrado em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/complexo-do-alemao-antiga-terra-de-nascentes-tornou-se-palco-de-violencia-21263337.
(3) Mais informações sobre o processo podem ser encontradas no Caderno de Jurisprudência deste Boletim e no link: <http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/4111-Defensoria-obtem-determinacao-para-que-PMs-desocupem-casas-do-Alemao>.
(4) LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; DUARTE, Thais. Ministério Público: Guardião da democracia brasileira? Rio de Janeiro: CESeC, 2016.
(5) SILVESTRE, Giane. Enxugando iceberg: Como as instituições estatais exercem o controle do crime em São Paulo. Tese de doutorado: Universidade Federal de São Carlos/SP, 2016.
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