Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.
É chegada a hora da realização da Copa do Mundo no Brasil. Após anos de preparação – e também de considerável despreparo –, não há como ficar indiferente ao evento que se inicia no próximo dia 12 e se encerra um mês mais tarde.
O campeonato mundial de futebol está longe de significar apenas uma competição esportiva e um tempo de festa entre povos de diferentes nacionalidades de que o Brasil e os brasileiros são anfitriões; como se sabe, é ocasião em que olhares da imprensa, de autoridades e de pessoas de todo o mundo estarão voltados para o país, para suas virtudes e mazelas nos mais diversos aspectos. Infelizmente, o acontecimento não revelará à comunidade internacional um país concretamente respeitador de direitos de cidadãos nacionais e estrangeiros em sua plenitude, a despeito do que lhe impõe a abstração normativa da Constituição da República.
Escolhido em outubro de 2007 para sediar o evento, o Brasil se comprometeu a realizar um salto quantitativo e qualitativo em infraestrutura aeroportuária, ferroviária, comunicacional e turística, bem como em matéria de mobilidade urbana e, por fim, nos campos da segurança pública e do respeito aos direitos civis. Passados sete anos, entrega alguns dos mais caros (e, em certos casos, desnecessários) estádios do mundo e poucos terminais aeroportuários ampliados, parte deles mediante obras improvisadas.
Entrega, ademais, um persistente ambiente de efervescência política – e de perplexidade de autoridades e analistas – que não se via há mais de vinte anos. E, inegavelmente, a Copa tem muito a ver com esse ambiente.
É sabido que os protestos multitudinários de um ano atrás foram tonificados pela truculência policial dirigida a cidadãos que se insurgiam contra aumentos nos preços de tarifas de transporte público – quando imagens de abusos policiais praticados em diferentes unidades federativas correram o país e o mundo. Ao longo do tempo, entretanto, o que se viu foi o levante de diversos segmentos em face de questões políticas e sociais de diferentes matizes, catalisados pela contradição existente entre os excessivos gastos públicos com um evento privado e a ineficiência do Estado brasileiro na prestação de serviços essenciais e na tutela da efetividade de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Tal clima de insatisfação popular e de questionamento político jamais foi imaginado por governantes federais, estaduais e municipais, que anos atrás supunham uma inexorável onda de popularidade para o ano de 2014 na esteira da realização do evento.
O desencantamento de cidadãos brasileiros com a política não é imotivado, e menos ainda ao azo da realização do mundial de futebol. Há tempos que se noticiam remoções arbitrárias de moradores carentes do entorno de estádios e de áreas centrais das grandes cidades no contexto das obras para a Copa;(1) adicionalmente, condições precárias de segurança causaram quase uma dezena de mortes de trabalhadores nos canteiros de obras. Intervenções que poderiam produzir benefícios permanentes à população como as de mobilidade urbana concretizaram-se em medida ínfima, evidenciando a inépcia de gestores públicos de diferentes partidos políticos e esferas de poder. Índices de criminalidade não têm cedido o quanto esperado. E muitos são os indícios de mau uso de dinheiro público naquilo que um dia prometeu ser a “Copa da iniciativa privada”. De outra parte, assistiu-se a uma generosa concessão de privilégios à entidade promotora do evento, providência que não prescindiu da aprovação de uma lei geral (Lei 12.663/12) a introduzir no ordenamento proibições penais temporárias com vistas a tutelar os interesses comerciais daquela e de seus patrocinadores oficiais (arts. 30 a 36).
Some-se a isso o fato de que mesmo edificações elementares para a realização do evento – como aeroportos, melhoramentos viários e setores de alguns estádios – não foram concluídas em muitas cidades, as quais ora se utilizam de tapumes e outros disfarces para ocultar materiais e entulhos de obras ainda inacabadas.(2) Todavia, os elevados déficits de efetivação de direitos sociais de que ainda padecem os brasileiros não se permitem maquiar com o uso de tapumes ou quaisquer alegorias.
Ingredientes, portanto, não faltaram à permanência de grupos sociais nas ruas das grandes cidades brasileiras para protestar por direitos individuais e coletivos de toda ordem, atos que não podem ser contidos pela repressão estatal antijurídica, pela intolerância ou incompreensão das autoridades e tampouco pelo entretenimento cultural e esportivo que a Copa do Mundo propicia.
O retorno da população – ainda que desencantada – às ruas implica um resgate de seu protagonismo político, de questionamentos cívicos de diferentes naturezas e de participação democrática. E, à falta de outros que poderia haver, aí talvez resida o grande legado da Copa do Mundo para a sociedade brasileira: uma população pode apreciar futebol em elevada medida sem permitir que tal apreço ofusque o seu direito de desafiar os critérios adotados na eleição de prioridades para uso do orçamento público e a sua legítima luta por direitos; ao contrário, manifestantes têm a consciência de estar diante de momento histórico oportuno para apontar mazelas e reivindicar direitos sociais elevados ao status de fundamentais pela ordem constitucional vigente no país desde 1988, mas ainda carentes de afirmação concreta em toda parte.
Se, no ano passado, a violência policial foi o estopim para a multiplicação e intensificação das manifestações populares, a inserção da Copa do Mundo no calendário político deste ano revela-se oportuníssima para o amadurecimento da consciência política e cidadã de muitos brasileiros, os quais têm demonstrado que o antigo ópio do povo já não apresenta os mesmos efeitos distrativos de tempos idos.
Vai ter Copa, enfim. Ao ensejo da realização do evento, é tempo de desejar êxitos ao Brasil não só nos campos de futebol mas, e sobretudo, nos campos da cidadania, da proteção e efetivação dos direitos humanos fundamentais e da consolidação da democracia.
Notas
(1) The State of the world’s human rights. Amnesty International Report, 2013, p. 46-47.
(2) Ver: Copa do tapume: Prefeituras e Estados apelam ao improviso para esconder e maquiar atraso em obras. Folha de S. Paulo, 24.05.2014, p. A-16.
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