Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.
Foi celebrada em Minas Gerais a primeira Parceria Público-Privada (PPP) no Brasil para administração de um complexo penal, fundamentada expressamente nos “princípios da necessidade de uma gestão profissional de unidades penitenciárias, aplicando conceitos de qualidade e eficiência na custódia do indivíduo infrator e promovendo a efetiva ressocialização do detento”. A fala oficial sobre o projeto enaltece ainda que “os ganhos de eficiência possam ser efetivamente verificados, bem como os níveis adequados de retorno sejam garantidos tanto ao operador quanto ao investidor”.(1)
Alardeiam-se como vantagens do novo modelo a melhoria das condições de infraestrutura em um Estado que estaria saturado neste setor e impossibilitado de realizar novas políticas e investimentos em instalações de estabelecimentos prisionais. Porém, a aparente eficácia conferida pela lei e a instauração da ordem (esta última, tão cara àqueles que clamam por progresso) escondem uma série de problemas, tanto de ordem simbólica quanto pragmática.
A força simbólica das “PPPs” para administração carcerária é peculiar: transferir, ainda que parcialmente, o exercício do poder de punir é delegar ao particular a função mais primitiva do Estado, que é a concretização da pretensão punitiva, emitindo-se a mensagem de sua ineficácia em garantir uma organização social mínima e que passa a transferi-la a quem detém a “técnica” adequada para o serviço.
Realizar “PPPs” no âmbito do exercício do poder punitivo não é análogo a permitir ao particular explorar atividade econômica antes explorada pelo Estado (caso das empresas de telefonia). Também não se trata de repetir a duvidosa delegação da prestação de serviços de direitos sociais fundamentais como saúde e educação. Cuida-se de repassar a função fundadora do Estado moderno, que é o monopólio da violência, cuja limitação – representada pelo Direito Penal e pelo Direito Processual Penal – corresponde ao nascedouro dos direitos humanos de 1.ª geração, quais sejam, as liberdades negativas decorrentes da abstenção do Estado de matar o cidadão, prender o cidadão de forma ilegal, atentar contra sua integridade física e assim por diante. Nada é mais genuinamente de natureza pública e publicista, nem mais distante da gramática privatista.
No campo do pragmatismo, as potenciais consequências são igualmente nefastas, pois a lógica privatista sabidamente organiza suas regras de modo a atingir seu fim – extrair lucro do empreendimento – da forma mais eficaz. Ora, a rentabilidade de uma “PPP” para administração de um sistema prisional depende diretamente do aprisionamento de pessoas.
Supondo uma ingerência idealizada dos interesses privatistas (ou seja, imaginando-se empresários preocupados com as condições carcerárias e dispostos a abrir mão de qualquer centavo adicional decorrente de uma prisão de legalidade – ou necessidade – duvidosa, ainda que isso implique reduzir lucros e aumentar custos), mesmo assim deparamos com a grave força simbólica da renúncia estatal a uma parte da pretensão punitiva, e pior, combinada ao fortalecimento da política de encarceramento em massa atualmente vigente. Todavia, não se podem descartar as prováveis consequências práticas deste novo modelo: a experiência cotidiana ainda não mostrou empresários dispostos a abrir mão de lucros. E, como dito, nesta situação, mais lucros somente se obtêm quando há mais presos.
O aumento do número de encarcerados, por sua vez, decorre de apenas duas razões: uma maior ocorrência de crimes (seja por aumento real da prática ou por aumento da repressão), ou a realização de prisões ilegais. E nenhuma das duas possibilidades interessa às vítimas de crimes, tampouco às vítimas do encarceramento, há tempos simbolizadas pela mesma sigla que hoje designa as “PPPs”: os pretos, pobres e prostitutas, clientes preferenciais do aprisionamento.
Por outro lado, o modelo privado beneficiará apenas uma parte, por certo diminuta, dos encarcerados, cabendo indagar quais critérios serão seguidos para eleger os que permanecerão em suas unidades – onde supostamente haverá “qualidade e eficiência na custódia do indivíduo infrator” e será promovida “a efetiva ressocialização do detento”. Isso porque, obviamente, não interessará ao empresário do cárcere a custódia, por exemplo, de presos refratários ao trabalho ou integrantes de facções criminosas, porquanto a manutenção e, sobretudo, a ressocialização de internos com perfis problemáticos exigirá maiores investimentos e retornará menores lucros. E num cenário em que estabelecimentos privados e públicos convivam lado a lado, estes certamente serão reservados aos indesejados do sistema, impondo-se-lhes uma espécie de regime diferenciado de cumprimento de pena.
Quem lucrará então com a lógica atraente do sistema de “PPPs” utilizado para a administração carcerária?
O Brasil é hoje o quarto país que mais prende no mundo, atrás de EUA, Rússia e China. Nossos quase 550 mil detentos estão submetidos a graves violações de direitos humanos, porque o Estado, ao privilegiar o aprisionamento como verdadeira panaceia a todas as questões de segurança pública, não tem sido – e não será – capaz de prover condições mínimas de dignidade. A política habitacional reduziu-se à construção de presídios, na fina ironia de Nilo Batista, e nada disso foi capaz de motivar ações transformadoras.
A privatização dos presídios consolidará a lógica perversa segundo a qual a prisão é um negócio. E o business penitenciário tem tudo para ser muito lucrativo, embora esteja claro que, como política pública, seja uma tragédia anunciada.
Notas
Detalhes sobre o projeto estão disponíveis em: http://www.ppp.mg.gov.br/projetos-ppp/projetos-celebrados/complexo%20penal/.
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