INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 181 - Dezembro / 2007





 

Coordenador chefe:

Carina Quito

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Caroline Braun, Cecília Tripodi, Eleonora Rangel Nacif, Fabiana

Conselho Editorial

Editorial

O complexo do alemão e outros complexos

A questão da segurança pública esteve em evidência durante todo o ano de 2007. Diversos episódios ocorridos no Rio de Janeiro, relacionados ao enfrentamento do crime, bem como o debate público motivado pelo filme “Tropa de Elite”, reclamam uma análise detida, vez que emblemáticos para a compreensão do estado da arte das políticas de segurança pública em todo País.

Muito nos ensinam as operações especiais nos morros cariocas que consistem em incursões diurnas, em horários escolares e comerciais, fazendo dos cidadãos que ali vivem vítimas potenciais do fogo cruzado. Em junho, uma mega-operação policial ocorrida no Morro do Alemão vitimou 19 pessoas. Já em outubro, na comunidade da Coréia, uma operação com características semelhantes deixou o saldo 16 pessoas mortas, propiciando, inclusive, a filmagem da perseguição de um jovem negro, e sua execução sumária por policiais que sobrevoavam o local, cenas que foram veiculadas em rede nacional, em horário nobre.

Em comum, esses episódios revelam: 1) a adoção do método de confronto aberto contra os traficantes de drogas nas intervenções policiais; 2) a acusação recorrente, por parte dos moradores, de que civis não ligados ao tráfico são mortos pelas forças policiais; 3) a divulgação oficial de que todos os mortos seriam criminosos; 4) o apoio das autoridades à tais ações, sob a justificativa de que o crime deve ser tratado com pulso firme em prol da garantia da ordem pública.

No entanto, a opção pelo confronto aberto consagra um método de intervenção policial cujo resultado inevitável é a morte de criminosos, moradores locais e policiais, autorizando indagar-se por que o desespero e a exposição dos cidadãos pobres que vivem nas áreas de intervenção são tratados como efeitos colaterais de uma guerra, enquanto sabemos que essa mesma batalha, se travada nas áreas em que vive a classe média e classe alta, geraria clamor infindável.

Na argumentação do governo carioca, o poder de fogo dos traficantes é muito superior ao disponível às forças de segurança, o que justificaria as incursões periódicas como uma estratégia para reduzir a quantidade de drogas e armas à disposição dos criminosos.

Alguns sérios problemas surgem desta opção. O primeiro se refere à própria delimitação do objeto de intervenção, circunscrito às favelas. Se partirmos da constatação de que o armamento pesado utilizado por traficantes não é produzido artesanalmente e que a grande quantidade de drogas não é refinada em estabelecimentos locais, concluiremos que a dinâmica que sustenta o tráfico de drogas não tem origem nesses aglomerados urbanos. Apesar da inegável inserção de agentes do tráfico nestas áreas, o próprio alvo da intervenção parece equivocado, na medida em que os grandes fornecedores permanecem com sua estrutura de distribuição de armamento e drogas inalterada, capaz de abastecer qualquer aglomerado que não esteja sob intervenção policial.

O segundo problema decorre do primeiro. Ao proceder tal delimitação territorial na atuação policial, a Secretaria de Segurança Pública carioca transforma as favelas em verdadeiros campos de batalha, ignorando a necessidade de uma planificação estratégica e geo-referenciada, em nome da lógica da guerra, cujo objetivo deixa de ser a proteção dos moradores e a garantia de suas vidas,

O problema fica ainda mais complexo quando a população brasileira parece cada vez mais receptiva à violência estatal, o que é reforçado pelas repercussões do filme “Tropa de Elite”. Para além do desmantelamento da noção de cidadania, a aceitação dessa lógica, corrói a própria essência do Estado Moderno, vez que confere ao Poder Executivo, no “front de batalha”, a autorização para julgar quem é e quem não é o inimigo, e aplicar sua pena. Já o Poder Judiciário e o Ministério Público tendem a se irrogar equivocadamente da função de combater a criminalidade, olvidando-se de sua função de prover julgamentos justos, a partir da garantia do cumprimento das leis e dos direitos fundamentais. Por fim, o Poder Legislativo, a quem caberia o delinea­mento de uma verdadeira política de segurança pública, se deixa seduzir pelas soluções imediatistas voltadas à produção de leis antigarantistas, contribuindo para o esvaziamento do espaço da boa política em prol do espaço da pena.

O compromisso do IBCCRIM de defender intransigentemente o Estado Democrático de Direito e as garantias fundamentais impõe que se almeje o aprofundamento do debate, de complexidade singular, para que não mais se confundam políticas de segurança pública com polícia, e que se aprimorem as instituições que compõem as forças de segurança brasileira bem como as que integram o sistema de justiça.

Que o exemplo do Rio de Janeiro, tão longínquo e tão próximo, nos sirva de combustível para a elevação desse debate, valendo lembrar as atuais palavras de Gilberto Gil e do saudoso Cazuza:

“Estranho teu Cristo, Rio

Que olha tão longe, além

Com os braços sempre abertos,

mas sem proteger ninguém.”(1)

Nota

(1) Trecho da letra da canção “Trem para as estrelas”.



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