Mariângela Gama de Magalhães Gomes
André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui
A histórica decisão do Supremo Tribunal Federal, ao declarar a inconstitucionalidade da proibição do regime progressivo nos crimes hediondos, abordou alguns temas de capital importância no exercício da jurisdição constitucional. Dois deles merecem especial destaque.
O primeiro diz respeito às balizas que devem ser adotadas no relacionamento entre o legislador constituinte e o legislador ordinário. Há uma zona cinzenta entre um e outro, que demanda clareamento. O art. 5º da Constituição Federal enumera os direitos e garantias fundamentais entre os quais se inclui a individualização da pena. O núcleo essencial da individualização da pena está centrado na perspectiva da pena particularizada em três momentos distintos: no momento legislativo no qual são determinados os marcos penais e os parâmetros norteadores do processo individualizador; no momento judicial no qual o juiz, dentro das pautas legais, explicita motivadamente a espécie, a quantidade de pena, e o regime prisional inicial a serem aplicados e no momento da execução penal quando a pena concretizada na pessoa do condenado passa ser cumprida dentro de um sistema de progressividade. Ao legislador ordinário, o texto constitucional permitiu regular, em cada etapa, a individualização da pena: só lhe não deu poder para excluí-la de qualquer um dos momentos já mencionados, tornando o cânon constitucional uma regra inócua. Nessa direção caminhou a Lei nº 8.072/90, ao proibir o regime progressivo de cumprimento de pena aos condenados por crime hediondo. O poder outorgado ao legislador infraconstitucional, não vai a ponto de dotá-lo de uma “delegação em branco”, “que tudo poderá fazer. Se assim se entender”, como observa em seu voto o ministro Gilmar Mendes, “tem-se a completa descaracterização de uma garantia fundamental”. Não teria nenhum sentido lógico introduzir a individualização da pena no catálogo dos direitos e garantias fundamentais e, ato contínuo, conceder ao legislador comum a possibilidade de esvaziar seu conteúdo. Ademais, se a intenção do legislador constituinte fosse deixar, à livre disposição do legislador comum, o preenchimento integral do conceito de individualização da pena , não seria mais apropriado suprimi-lo do contexto constitucional? O § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, na medida em que submetia o condenado, por crime hediondo, a um regime prisional integralmente fechado, sem oportunidade de uma abertura progressiva para a liberdade, atritava com o art. 5º, inc. XLVI da Constituição Federal. O legislador comum dispõe, na matéria, de um amplo raio de atuação: não lhe é reconhecida, porém, a competência para violar o núcleo essencial da individualização da pena enquanto direito e garantia fundamentais.
O segundo tema, de não menor relevo, versa sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal, num verdadeiro leading case, fez aplicação, no julgamento de um habeas corpus, do disposto no art. 27 da Lei nº 9.868/99, que se refere ao processo e julgamento dos casos de controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade (ADIN ou ADC). Com isso, acolheu o entendimento de que, em se tratando de controle incidental ou difuso, é pertinente à Corte Suprema estender o efeitos da decisão a outras situações processuais suscetíveis de serem alcançadas pelo reconhecimento in concreto de inconstitucionalidade . E assim o fez, em nome da segurança jurídica e do excepcional interesse social, conceitos revestidos também de carga constitucional. Destarte, o Supremo Tribunal Federal, ao dar eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, permitiu que o regime prisional progressivo fosse aplicado a réus, por crime hediondo, nos processos em andamento; aos condenados ao regime integralmente fechado, na fase recursal, com conseqüente transformação do regime imposto, e aos condenados, na execução penal, se ainda não esgotado o lapso temporal para o cumprimento da pena. Essa eficácia restrita evita eventuais repercussões, no campo civil, processual ou penal, em face de condenações já integralmente cumpridas uma vez que decisões anteriores que determinaram o regime prisional fechado, na hipótese de crime hediondo, não poderiam ser havidas como inconstitucionais quando foram prolatadas.
O reconhecimento da inconstitucionalidade com eficácia ex nunc não representa, de forma alguma, uma automática aplicação do regime progressivo, em crime hediondo, mas apenas a possibilidade de que possa ser examinada, caso a caso, a situação do réu ou do condenado, à luz do regramento legal estabelecido para a progressão do regime prisional. A decisão do Supremo Tribunal Federal não está, portanto, adstrita ao processo submetido a seu julgamento, nem cabe ao juiz singular ou a Tribunal inferior recusar-lhe cumprimento sob pretexto de que, no caso de controle incidental ou difuso de constitucionalidade, teria pertinência o inc. 10 do art. 52 da Constituição Federal. A competência do Senado Federal, para efeito de suspender no todo ou em parte lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, objetivava dar extensão erga omnes à declaração incidental de inconstitucionalidade, posto que a decisão, no controle difuso, tinha até então efeito vinculativo apenas entre as partes. Sucede, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal, ao decidir, por votação unânime, pela aplicação do art. 27 da Lei 9.868/99, em caso de controle incidental ou difuso, atribuiu à decisão efeitos gerais, embora restritos, permitindo sua incidência, além do caso concreto, a outras situações processuais ainda “suscetíveis de serem submetidas ao regime de progressão”. Esvaiu-se, assim, por perda de objeto, a competência do Senado Federal já que a finalidade visada pelo inc. X do art. 52 Constituição Federal foi integralmente atingida pelo julgamento da Corte Suprema. Com razão, Luís Roberto Barroso (O Controle de Constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 90), enfatiza que “uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos”. E não se compreenderia que coubesse outra conclusão num Estado Democrático de Direito. Se o Supremo Tribunal Federal, como intérprete máximo da Constituição, reconheceu a inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal, em controle incidental, atribuindo-lhe os efeitos que ultrapassam às partes envolvidas num determinado processo, não se compreenderia que tal julgamento ficasse sob o controle político do Senado Federal.
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