INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 95 Outubro Esp. / 2000


Editorial

Algumas observações sobre o direito penal e a internet

Vicente Greco Filho

Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Há algumas semanas os meios de comunicação deram a notícia de que jovens, no Rio Grande do Sul, obtiveram a senha de usuários da Internet e passaram a utilizá-la, com isso onerando a conta de terceiros em face dos provedores.

O que me surpreendeu, porém, foi uma observação, feita en passant, e como usual naqueles meios, certamente editada (entenda-se truncada), de que o Direito não está preparado para enfrentar o fenômeno Internet, porque não se trata de um mundo real mas de um mundo virtual.

A afirmação, porém, revela ou pode levar a uma errada compreensão do problema.

Todas as conquistas culturais do homem, obviamente, exigem do Direito uma atualização, como aconteceu com a fotografia, o avião, o telefone, o automóvel e tantas outras. A Internet não é diferente, mas, como se diz neste País, "não tem essa bola toda".

A tentativa de se ver uma dicotomia entre o real e o virtual não passa de publicidade que procura supervalorizar esses meios modernos de, para alguns, apenas diversão.

Não existe a tal realidade virtual. A realidade não comporta qualificativos. A realidade é, e pronto.

Não existe a menor razão para bajular os meios eletrônicos, atribuindo-lhes o poder de ter criado uma realidade diferente. Não são realidade virtual o cinema, a televisão e o milenar teatro? E a música?

Trata-se de pura e vã exibição de vaidade dos que têm interesse em promover a "grande rede".

A Internet não passa de mais uma pequena faceta da criatividade do espírito humano e como tal deve ser tratada pelo Direito, especialmente o Penal. Evoluir, sim, mas sem querer "correr atrás", sem se precipitar e, desde logo, afastando a errônea idéia de que a ordem jurídica desconhece ou não está apta a disciplinar o novo aspecto da realidade. E pode fazê-lo no maior número de aspectos, independentemente de qualquer modificação.

Em matéria penal, focalizando-se a Internet, há dois pontos de vista a considerar: crimes ou ações que merecem incriminação praticados por meio da Internet e crimes ou ações que merecem incriminação praticados contra a Internet, enquanto bem jurídico autônomo.

Quanto ao primeiro, cabe observar que os tipos penais, no que concerne à sua estrutura, podem ser crimes de resultado de conduta livre, crimes de resultado de conduta vinculada, crimes de mera conduta ou formais (sem querer discutir se existe distinção entre estes) e crimes de conduta com fim específico, sem prejuízo da inclusão eventual de elementos normativos.

Nos crimes de resultado de conduta livre, à lei importa apenas o evento modificador da natureza, como, por exemplo, o homicídio. O crime, no caso, é provocar o resultado morte, qualquer que tenha sido o meio ou a ação que a causou. Na Europa conta-se que já ocorreu um homicídio por meio da informática: um hacker  invadiu os computadores da UTI de um hospital e, manipulando os dados, provocou a morte do paciente.

Esse exemplo mostra bem o que queremos dizer no começo: homicídio é homicídio, não importa se praticado com arma de fogo ou pela Internet e inexiste qualquer necessidade de se inventar figura especial para esta última. Tal situação vale para praticamente todas as condutas praticadas por meio ou com a Internet.

Assim, se questiona a pornografia, adulta ou infantil, na rede, a discussão não é diferente da que se discute em função da televisão, revistas e, até simples outdoors. Pode ocorrer uma maior ou menor dificuldade de coibi-las (se for o caso), dependendo do meio, mas como se disse com relação ao homicídio, a pornografia com abuso de crianças ou adolescentes merece incriminação qualquer que seja o instrumento utilizado para praticá-la.

Isso mostra que o Direito Penal, em geral, está perfeitamente aparelhado na missão de coibir condutas lesivas, seja, ou não, o instrumento utilizado a informática ou a Internet ou a "peixeira".

No episódio acima citado e que suscitou a redação destas linhas, o fato não passa do simples e tradicional estelionato, o nosso velho conhecido art. 171 do Código Penal.

Em tese, os agentes, no caso, obtiveram a vantagem ilícita consistente em se beneficiar da utilização do provedor, em prejuízo do titular que teve sua conta onerada, mediante o meio fraudulento do uso indevido de sua senha, induzindo e mantendo, por essa razão, o provedor em erro (até parece que voltei a redigir uma denúncia).

Idem se alguém se utiliza do cartão de crédito de alguém depois de capturar seu número e senha na Internet.

Querer definir crimes específicos para essas situações é erro grave e perigoso de política penal.

Insistindo, ainda exemplificativamente, se quer discutir a proteção à intimidade, não se deve fazê-lo especificamente para a Internet, porque a proteção, se for o caso, deve ser genérica, porque tanto a intimidade pode ser invadida na utilização da rede quanto por uma gravação ambiental ou pelos paparazzi.

Quanto ao segundo ponto de vista acima indicado, qual seja, o da Internet ou a informática enquanto bem jurídico autônomo, confesso que cheguei a cogitar de uma situação que mereceria proteção especial. Não a integridade e regularidade da comunicação, por que esse item também merece a proteção genérica igualmente merecida pelo telégrafo, o telefone e a comunicação de dados em geral, mas a integridade das informações ou dos dados guardados por determinada pessoa. Observe-se que a violação da propriedade intelectual de software, a chamada "pirataria" já está incriminada.

Melhor pensando, porém, também concluí que nada existe de especial na possível proteção aos bancos de dados informatizados. Isso porque ou pertencem eles à esfera da intimidade ou à esfera da prática comercial ou industrial e nesses campos sua proteção penal deve ser tratada, independentemente de a violação ocorrer por meio da informática.

Tanto é violador o hacker que consegue acesso a banco de dados sem autorização quanto o que dele tira uma cópia sem qualquer utilização de meio informatizado, simplesmente subtraindo disquetes. Igualmente, não pode deixar de ser considerado violador aquele que subtrai (ou simplesmente tem acesso não autorizado) a minha caderneta de telefones (que também é um banco de dados) ou minha agenda eletrônica.

Como se vê, as ditas situações modernas não são tão modernas assim. Podem as circunstâncias torná-las mais importantes, mais danosas e, até, mais interessantes, mas não cabe ao Direito Penal entendê-las como um fenômeno diferente do comportamento irregular na humanidade.

A conclusão, portanto, salvo demonstração em contrário, é a de que devemos deixar o Direito Penal em paz, porque está ele perfeitamente apto a atender à proteção dos direitos básicos das pessoas e se houver alguma modificação a fazer, deve ser feita dentro de uma perspectiva de proteção genérica de um bem jurídico e não porque eu tenho um Pentium III de 550 Mh, disco rígido de 4 Gb, 64 Mb de memória RAM, 8 Mb de memória de vídeo e monitor de 20". (Esqueci: e modem de 56K, CD-ROM de 32x, DVD e scanner de 1.200 dpi, além de outros cacarecos).

Ademais, a "inflação legislativa penal"(1) pode levar-nos à necessidade de um "cadeião" de 8 milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados.

Nota

(1)A expressão é do professor René Ariel Dotti.

Vicente Greco Filho

Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.



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