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Ionilton Pereira do Vale
Promotor de Justiça/CE
Mestre em Direito pela UFCE
SUMÁRIO: 1. Introdução – 1.2.O Principio in dúbio pro societate;1.3.O principio in dúbio pro societate em face da Lei 11.869 de 9 de junho de 2008:extinção ou mitigação?1.4. Conclusão – 1.5. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
A instituição do Júri popular é reconhecida nas Constituições brasileiras, desde a Constituição de 1824, figurando em todas as outras Constituições, com exceção da Constituição de 1937, sendo tradição no direito brasileiro.
Instituto polêmico, o Tribunal do Júri granjeou adeptos fervorosos, mas também antipatizantes da instituição. Dentre os primeiros podemos citar Guilherme de Souza Nucci, Frederico Marques e Roberto Delmanto, enquanto que Nelson Hungria, apenas para citar um exemplo, escreveu um violento libelo contra a instituição. Walter P. Acosta salienta bem esta dicotomia: “O júri é das instituições que mais dividem opiniões: tem defensores apaixonados e opositores intransigentes. Alguns juristas de escol criticam-no acerbamente. A exposição de motivos do Código de Processo, sob o influxo do regime político de então, não hesitou e dizer: “Privado de sua antiga soberania, que redundava, na prática, numa sistemática indulgência para com os criminosos, o júri está, agora integrado na consciência de suas graves responsabilidades e reabilitado na confiança geral”. [1]
1.2.O Principio in dúbio pro societate.
O procedimento do júri é complexo, bifucardo e bifásico.Dispõe o art. 411 § 9º, “que encerrados os debates, o juiz proferirá a sua decisão, ou o fará em 10 (dez) dias, ordenando que os autos para isso lhe sejam conclusos.”Surge para o Juiz quatro opções processuais:a decisão interlocutória da pronuncia, da impronuncia,da desclassificação e da absolvição sumária.Destas só nos interessa examinar o centeúdo da decisão da pronuncia, pois é nesta que vigora o brocardo in dúbio pro societate.Trata-se portanto, de uma decisão interlocutória,mediante o qual o magistrado declara a viabilidade da acusação por se convencer da existência do crime e indícios que o réu seja o seu autor. A reforma do procedimento do júri veio de encontro aos contornos da pronuncia, uma vez que ao juiz-presidente,”basta limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”.(art 413§1º do CPP).
À primeira vista parece, que com a concisão da sentença de pronuncia deve ainda vigorar o principio in dúbio pro societate,mas este sofreu uma atenuação como se verá.
O Supremo Tribunal Federal[2] e o Superior Tribunal de Justiça[3] recentemente reafirmaram a validade do brocardo, declarando ser incabível o trancamento de ação penal, na via estreita do habeas corpus, quando, presente a materialidade de crime doloso contra a vida, há indícios de autoria, sendo certo que, em caso de dúvida, em razão do princípio in dubio pro societate, norteador dessa fase preliminar de mera suspeita, cabe ao juiz acolher a acusação e pronunciar o réu.
1.3.O principio in dúbio pro societate em face da Lei 11.869 de 9 de junho de 2008:extinção ou mitigação
Antes da Lei 11.869/2008, o juiz-presidente tinha poucas opções processuais:se existiam indícios de autoria e materialidade, ele pronunciava, remetendo o réu ao seu juiz natural,ou impronunciava o réu, provendo-se a extinção do processo sem julgamento do mérito, cuja natureza jurídica é de um juízo de inadmissibilidade da remessa do processo do Tribunal do Júri, para julgamento,tratando-se de absolvição de instância,já que a qualquer momento pode ser instaurada nova ação penal,enquanto não extinta a punibilidade,desde que fundada em novas provas(são as provas substancialmente novas).O juiz também pode desclassificar remetendo os autos ao juízo competente.
Contudo, o que nos interessa de perto é a absolvição sumária, que sofreu drásticas modificações com a Lei 11.869/2008.
Verificando nos autos prova da existência do fato e da autoria, o juiz podia absolver sumariamente o acusado se estivesse convencido que ele agiu ao abrigo de uma causa de excludente da antijuricidade ou culpabilidade.A decisão tem o caráter de definitiva, pois resolve o meritum causae.As causas para absolvição eram:a)causas excludentes da ilicitude,da antirudicidade ou da criminalidade,que estão previstas no art. 23 do Código Penal Brasileiro,ou da culpabilidade(arts.24§2º,25,26 e 28§1º do C.P.) O novo artigo 415, contudo determina que o juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:I – provada a inexistência do fato;II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;III – o fato não constituir infração penal;IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime; IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.
Aumentaram de fato as opções processuais do juiz na absolvição sumária, impedindo o recurso ao velho e cansando principio in dúbio pro societate.Na lei antiga o juiz-presidente apenas podia absolver o réu nos casos de excludente da ilicitude ou da culpabilidade.Na nova lei as hipóteses se equiparam as do art 386 do Código de Processo Penal,com exceção do inciso V e VII que diz respectivamente que o juiz absolverá o réu se: “V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal” e “VII – não existir prova suficiente para a condenação”. Este fato tinha incidência direta na impronúncia, que fazia “coisa julgada”,quando o juiz reconhecia expressamente ,não ter o fato acontecido ou não ter sido o réu o autor da infração penal.Estes casos agora são hipóteses de absolvição sumária.
Não se argumente que o legislador deixou de forma proposital os incisos V e VII,ao lado dos outros tradicionais incisos do art 386 do CPP,para reforçar a abrangência do principio.O que o legislador fez, foi aumentar as possibilidades do magistrado de não pronunciar o réu, impronunciando-o e deixando-o em uma situação de incerteza e eterna dúvida, com uma verdadeira espada de Dâmocles sobre si.Se por um lado não atraiu sobre si o principio do “favor rei”,sedimentado sobre aqueles incisos, por outro aumentou sobremodo as faculdades processuais do juiz-presidente,quando da primeira fase do procedimento do júri popular, trazendo à tona outras hipóteses de absolvição pelo juiz singular,e atenuando o principio in dúbio pro societate,quando da prolatação da pronúncia.
Tecendo criticas acerca da decisão de impronúncia, escreve Paulo Rangel: “No Estado Democrático de Direito não se pode admitir que se coloque o indivíduo no banco dos réus, não se encontre o menor indício de que ele praticou o fato e mesmo assim fique sentado, agora, no banco do reserva, aguardando ou novas provas ou a extinção da punibilidade, como se ele é quem tivesse de provar sua inocência, ou melhor, como se o tempo é que fosse lhe dar a paz e a tranqüilidade necessárias.”.[4]
È dever do aplicador do direito, em um Estado Democrático de Direito, não aplicar às cegas os princípios doutrinários,que vem passando de geração em geração.Urge que este tenha em mente um bem jurídico maior, superior, que é a própria Constituição,que consagra o principio da não culpabilidade.
Segundo as palavras do juiz Marcos Antonio Santos Bandeira, não se deve utilizar a expressão in dubio pro societate quando se estiver diante de indícios vagos, frágeis, nebulosos e incertezas quanto a existência do próprio crime, pois agindo assim estará ressuscitando o princípio da presunção da culpabilidade e lançando na vala comum do referido princípio prováveis inocentes para ser julgado pelas sete feras, contribuindo assim para a construção de uma decisão iníqua e injusta, condenando-se um provável inocente, o que certamente não interessa à sociedade, por ferir de morte todos os direitos fundamentais e garantias constitucionais conquistados ao longo dos tempos. Vê-se, portanto, que a leitura dogmática que ainda se faz do princípio in dubio pro societate viola flagrantemente os princípios da presunção da inocência e da motivação das decisões judiciais, insculpidos nos art. 50, LVII e 93, IX da Constituição Federal, de 1988(...).[5]
Em suma, os argumentos estão postos, como uma modesta interpretação da nova lei,no que concerne ao instituto da absolvição sumária,e da aplicação do principio in dúbio pro societate.
1.4. CONCLUSÃO
O Júri é um direito fundamental, sendo certo a sua inscrição como clausula pétrea na Constituição. Urge, que com a sua reforma, também atente o aplicador do direito nos princípios constitucionais penais, em especial o da plenitude da defesa, e da presunção de inocência. Embora se reconheça em principio ser o Tribunal do Júri, o juiz natural, para os crimes dolosos contra a vida, também se reconhece o controle de todo e qualquer ato estatal. A evolução humanista da sociedade impede que a sentença da pronuncie,siga o velho e revelho modelo da dúvida para a sociedade,pois estando em jogo o direito supremo da liberdade, deve o juiz optar por todos os modelos procedimentais,postos à sua disposição na absolvição sumária, antes de enviar o réu ao Tribunal Popular do Júri, onde aumentam as chances de sua condenação, ou impronunciar o acusado, deixando o processo em estado de eterna indecisão.
1.5. BIBLIOGRAFIA
ACOSTA, Walter P.O Processo Penal.Coleção Jurídica da Editora do Autor.
BANDEIRA,Marcos Antonio Santos.Tribunal do Júri:Uma leitura Constitucional e atual,in Princípios Penais Constitucionais. Organização Ricardo Augusto Schimtt.Editora Podivum.Salvador.2007.
RANGEL,Paulo.Tribunal do Júri.Rio de Janeiro:Lumen Juris.2007.
[1] ACOSTA,Walter P.O Processo Penal.Coleção Jurídica da Editora do Autor, p.460.
[2] RE 540999 / SP - SÃO PAULO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. MENEZES DIREITO
Julgamento: 22/04/2008 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação DJe-112 DIVULG 19-06-2008 PUBLIC 20-06-2008 EMENT VOL-02324-06 PP-01139
[3] HC 58.823/MT, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 03.04.2008, DJ 09.06.2008 p. 1.
[4] RANGEL,Paulo.Tribunal do Júri.Rio de Janeiro:Lumen Juris.20007,p104-105.
[5] BANDEIRA,Marcos Antonio Santos.Tribunal do Júri:Uma leitura Constitucional e atual,in Princípios Penais Constitucionais. Organização Ricardo Augusto Schimtt.Editora Podivum.Salvador.2007.
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