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Opinião: O equívoco de uma “liberdade” inconseqüente

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

Juízes de Direito do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude

Por estarmos certos de que o IBCCRIM é uma entidade que se pauta por princípios democráticos e científicos, sendo um veículo formador de opinião que prima por oferecer a seus leitores visão clara e abrangente das matérias que divulga, causou perplexidade a inúmeros militantes da área da Infância e Juventude o editorial publicado no boletim nº 167 de outubro/2006, intitulado “O absurdo de uma punição protetiva”, pois, a nosso ver, o artigo não abordou todos os prismas e facetas que envolvem o delicado universo dos adolescentes em conflito com a lei. Em síntese, o editorial imputa ao Poder Judiciário a utilização abusiva da medida sócio-educativa de internação, supostamente aplicada pelo sistema da Justiça Juvenil com finalidade estritamente punitiva, à revelia dos princípios da brevidade e da excepcionalidade consagrados pelo ECA.

Diante das conclusões equivocadas, divorciadas da realidade vivenciada por todos aqueles que, de fato, atuam na seara da Infância e Juventude, absolutamente não poderíamos nos calar, nem nos omitir no tocante ao dever de informar. O silêncio poderia trazer como desastrosa conseqüência o perigo de transformar as teses produzidas em verdades absolutas.

O editorial em pauta, de forma simplista, baseou-se única e exclusivamente em dados obtidos no levantamento nacional efetuado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos no ano de 2006, tecendo conclusões precipitadas sobre o tema.

É preciso ficar bem claro: Não são os dados levantados pela Secretaria de Direitos Humanos que estamos contestando, mas sim a leitura distorcida e equivocada que deles se fez, tratando quem atua na seara da Infância e Juventude como algozes dos adolescentes, alimentados pelo prazer sádico de, a qualquer custo e sem critérios, internar aqueles que incidiram na vida infracional.

Para evitar o risco de que conclusões como estas se perpetuem, fazemos as seguintes colocações: Em primeiro lugar, os confrontos estatísticos e as tabelas geradas pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos tiveram como substrato a população de jovens em determinadas regiões do país. Estabelecem percentual de internações e de outras medidas sócio-educativas levando em conta apenas dados demográficos.

Declarou-se que no Estado de São Paulo há 39% do contingente nacional de jovens internados, muito embora o mesmo Estado abranja apenas 20% da população juvenil de todo o Brasil. Surge então o inevitável questionamento: Se São Paulo tem 20% dos jovens do país e 39% do contingente dos internos está aqui, o que de fato explicaria tal desproporção?

Os mais desavisados preferem dizer que a culpa é dos juízes, que supostamente internam demais. Contudo, deixam de olhar o que acontece nos bastidores e passam por alto relevantes questões como a do aumento crescente da violência e da criminalidade no Estado, a falta de políticas públicas preventivas, bem como a administração estatal ineficiente empregada em muitas das unidades de internação do sistema, que pouco recupera e gera altos índices de reincidência.

Certamente, o louvável trabalho de levantamento nacional de dados foi realizado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos para servir de instrumental ao direcionamento de políticas públicas nas diversas regiões do país, para gerar debates sobre as questões subjacentes no problema da criminalidade, e não para encerrar definitivamente a discussão com conclusão simplista e errônea de que a grande vilã da história é a Justiça Juvenil.

Sob a ótica do editorial, deixar de internar os adolescentes é um ato de amor. Interná-los em um sistema reeducativo é visto como ato de violência, de destruição de suas vidas. Absolutamente equivocado tal discurso. Deixar de internar adolescentes envolvidos na vida infracional, quando as medidas mais brandas já não são mais eficazes, isto sim é um ato de desamor e de irresponsabilidade pois, além de desencadear senso de impunidade, dá a falsa idéia de que os atos desregrados não geram conseqüências, incentivando a reiteração das condutas. Medida sócio-educativa não é pena e a Infância e Juventude não pode ser tratada como um apêndice do sistema criminal.

A concessão irresponsável da liberdade, tida muitas vezes como um bem maior, em detrimento da própria vida e integridade dos adolescentes, esta sim atenta contra a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Traduz pena de morte disfarçada de benefício de liberdade. Basta atentar, por exemplo, para o índice alarmante de jovens vítimas de homicídio consumado ou tentado durante o cumprimento de medidas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade entre agosto de 2002 e agosto de 2003 que, segundo dados remetidos pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) às Varas Especiais da Infância e Juventude, somaram 225 (duzentos e vinte e cinco) casos no período.

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) vêm desde 1997, em parceria com organismos nacionais e internacionais, mapeando os índices de violência no Brasil, inclusive no campo da adolescência e juventude. O “Mapa da Violência III”, publicado em fevereiro de 2002, ao tratar da questão dos homicídios no país, registrou que “nestes 10 anos, aumentou em 77% o número de jovens vítimas de homicídios, enquanto que os homicídios, na população total, cresceram 50,2%. Esta é uma primeira evidência que permite afirmar que a escalada da violência no país avança vitimando preferencialmente a juventude... Para o país como um todo, os homicídios representam, de longe, a principal causa de mortalidade juvenil. E em várias UF, como Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, os homicídios são responsáveis por mais da metade das mortes de jovens”.

Assim, paga-se um preço bem alto pela liberdade inconseqüente. Não se concebe que a crianças e adolescentes sejam assegurados apenas alguns dos direitos fundamentais previstos no ECA, deixando-os expostos e vulneráveis, com uma “falsa liberdade”, sem proteção alguma, em relação a outros, alijando-os de um processo recuperativo decente que lhes garanta a integridade e condições de uma vida digna em sociedade. O que se dá com uma das mãos não se deve tirar com a outra, pois tal situação denotaria verdadeira hipocrisia na busca da proteção integral.

Para o editorial, internar é sinônimo de punir, de encarcerar, e aqueles que militam no sistema juvenil estariam aplaudindo o aprisionamento dos jovens. Nada mais distorcido. Ninguém mais do que o Poder Judiciário de São Paulo nos últimos anos se posicionou frontalmente contra a política de encarceramento, exigindo, no exercício da fiscalização das entidades de atendimento (art. 95 do ECA), que o Poder Público cumpra o seu papel, para que as unidades de internação sejam verdadeiramente unidades educacionais, voltados à efetiva recuperação, e não ao segregamento meramente punitivo. Sociedade Democrática de Direito é aquela que investe em seus adolescentes, que previne o envolvimento nas condutas anti-sociais, mas que também, quando necessário, reeduca e busca ressocializar.

Se, conforme o editorial, a pesquisa elaborada pela própria Fundação Casa (antiga FEBEM) revela que 27% dos internos sentem-se infelizes, 23% estão deprimidos e 14% tem sentimentos de ódio, os dados são indicadores de que o sistema de recuperação do Estado vai de mal a pior, retratando falha da instituição em cumprir a sua função, que é de resgatar a imagem e a auto-estima de seus internos. Se a instituição peca em dar cabo de seu papel, nem por isso a Justiça Juvenil deixará de cumprir o seu. O adolescente e respectivo núcleo familiar não podem constituir preocupação do Estado apenas depois que o jovem pratica um ato infracional. O Estado tem que se aparelhar, deixar de lado a política ineficiente, realizar seu trabalho de forma preventiva. As medidas de liberdade assistida e de semiliberdade, se melhor aparelhadas, poderiam evitar a internação em muitos casos.

O editorial também despercebeu outros dados estatísticos relevantes que exprimem a verdadeira forma de atuação do Poder Judiciário, que na Capital do Estado tem indubitavelmente privilegiado as medidas sócio-educativas em meio aberto. Efetuamos o levantamento de dados do último ano, período compreendido entre outubro/2005 a outubro/2006, cotejando o número de atos infracionais registrados na Capital com o número de internações (art. 122 do ECA) aplicadas pelas Varas Especiais da Capital. Dos 15.891 boletins de ocorrência registrados, apenas 1.073 casos geraram internação, ou seja, um percentual de apenas 6,75%. Todos são casos graves, praticados com violência ou grave ameaça (roubo qualificado, homicídio, estupro, etc.) ou, então, casos em que houve prática infracional reiterada. Além disso, somente permanecem internados aqueles que ainda não reúnem mínimas condições de reinserção social. Prova disso é o número de jovens que, no último ano, foram desinternados das unidades da Capital, quase 5000 adolescentes, equivalente hoje à população de internos no sistema.

Em suma, a proteção integral vai muito além da concessão irresponsável da liberdade aos adolescentes e não pode sofrer limitações em sua interpretação. O legislador constitucional rigorosamente quer ver combatida a negligência e a omissão. O próprio ECA, em seu artigo 1º, reafirma o seu caráter protetivo, quando anuncia que “esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Assim sendo, o intérprete não pode restringir o alcance do texto constitucional que, em seu artigo 227, categoricamente abarcou valores e direitos que vão muito além da simples liberdade de ir e vir, impondo a obrigação do Estado intervir para assegurar que, na omissão do grupo familiar, sejam garantidos o direito à vida, à educação e à dignidade, dentre outros.

Para assegurar a proteção integral, enfim, é preciso fazer muito mais do que simplesmente deixar de internar. Os fatores de risco que levaram os adolescentes à criminalidade continuam existindo na comunidade para onde eles voltarão. Precisam ser ajudados a superar estes fatores. O Estado não pode se desonerar de seu papel. A perfilhar o entendimento do editorial, estaríamos condenando os excluídos à exclusão eterna. O adolescente infrator faz jus à ressocialização, à inclusão social. Se é dever do Estado recuperar, constitui também direito do adolescente o seu próprio resgate. Em contrapartida, a sociedade tem igual direito de contar com jovens readaptados e reintegrados.

Por isso mesmo, especialmente no contexto da realidade atual, em que se buscam explicações para o crescente aumento da violência e da criminalidade, universo onde os adolescentes surgem ora como protagonistas, ora como vítimas, com o perigo de desencadear soluções precipitadas e oportunistas que podem se revelar ineficientes, tal como o preconizado rebaixamento da maioridade penal, esperamos que as considerações apresentadas estimulem de alguma forma o aprofundamento das discussões deste tema, merecedor, muito mais do que meras críticas, de debates e reflexões abrangentes.



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