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Voto: Crime de imprensa. Delito contra a honra. Ausência de legitimação ativa. Atipicidade por falta de imputação objetiva. Juiz Relator: Erony da Silva (MG)

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

Ementa: Penal. Crime de imprensa. Delito contra a honra. Calúnia injúria e difamação (art. 20, 21 e 22 da lei nº 5.250/67). Ausência de legitimação ativa. Animus narrandi do trabalho jornalístico apontado criminoso. Atipicidade por falta de imputação objetiva. I - Não havendo indicação precisa e determinada do sujeito passivo na publicação considerada ofensiva à honra, não há como prosperar a pretensão punitiva, por ausência de legitimatio ad causam. II - Convencido, “initio litis”, do “animus narrandi” embutido na matéria jornalística, cabe ao magistrado de primeiro grau debelar a “persecutio criminis in judicio”, por falta de condição subjetiva da ação. III - Segundo os termos da teoria da imputação objetiva, apresenta-se dentro do risco socialmente tolerado, e por isso infenso à responsabilização criminal, a conduta do jornalista que, sem se desgarrar dos limites constitucionais e das normas da atividade jornalística (lex artis), divulga notícia de suposto envolvimento de autoridades públicas em investigações policiais acerca de irregularidades. V O T O O Sr. Dr. Juiz Erony da Silva (Relator) M.B.D., N.R.C., J.A.M., J.L., E.R.B.B., I.M.B., R.J.C.C., D.C.C.e F.P.F., todos ocupantes de cargos de direção da Secretaria Estadual de Segurança Pública, conforme indicado na inicial acusatória, ajuizaram queixa-crime contra N.C., repórter do jornal “Estado de Minas”, e subscritor da matéria publicada na edição do dia 1º de outubro de 1999, intitulada “Bordel “vip” prostitui menores”, com o subtítulo “Acusações envolvem alto escalão da Segurança Pública. Investigações estão sob sigilo absoluto” (f. 22,TA). Os querelantes, titulares dos cargos que compõem o chamado “alto escalão”, ou a cúpula diretiva da Polícia Civil mineira, aduziram na peça de acusação inaugural que o jornalista N.C., “a pretexto de divulgar fatos que estariam envolvendo prostituição de supostas menores, externou conceitos ofensivos à honra, à dignidade, ao conceito, à reputação e às atribuições e funções inerentes aos cargos que ocupam e exercem os Notificantes, a configurar abuso no exercício da liberdade de manifestação e de informação” (f. 2,TA). As afirmações de que: (1) “as acusações envolvem alto escalão da Segurança Pública”; (2) “para destruir o bem estruturado esquema de falsificação de documentos, prostituição infantil e tráfico de crianças em Belo Horizonte, que seria administrado por policiais do alto escalão da Secretaria de Segurança Pública”; (3) “Lá eles encontraram a menor, que portava documentos falsificados, provavelmente dentro da própria Polícia Civil”; (4) “Existem suspeitas de que o prostíbulo pertence a um delegado geral do alto escalão da Secretaria de Segurança Pública”; (5) “Todos os documentos da garota foram muito bem falsificados, provavelmente dentro do Instituto de Identificação, o que coloca a polícia em ‘maus lençóis’”, foram tidas pelos querelantes como ofensivas à honra, dignidade, reputação e boa fama de que desfrutam, além de se observar, ainda, a imputação falsa de fatos definidos como crime. Entendem os acusadores que o jornalista apontado, ao redigir e divulgar notícias caluniosas, difamadoras e injuriosas, utilizando-se de manchetes em jornal de larga circulação, ofendeu a proteção assegurada constitucionalmente à honra, à dignidade, à reputação e ao conceito dos cidadãos. Assim, pedem a condenação com fulcro nos art. 20, 21 e 22 da Lei nº 5.250/67 (f. 2-6,TA). Na defesa prévia, o jornalista querelado suscita, preliminarmente, a ilegitimatio ad causam dos querelantes, uma vez que a matéria jornalística objeto da irresignação em nenhum momento menciona o nome de qualquer autoridade policial, alude, tão-somente, a um delegado da polícia civil que já teria trabalhado no Gabinete. No mérito, sustenta a defesa que a matéria revestiu-se de natureza narrativa, com observância da técnica jornalística, e não trouxe qualquer acusação infundada ou que fosse ofensiva à honra e ao decoro dos querelantes (f. 44-50,TA). Instado a se manifestar, o Ministério Público pugnou pela rejeição da queixa, ao argumento de que a contestada matéria foi veiculada de forma genérica, não havendo a individualização de qualquer dos supostos envolvidos (f. 52-53,TA). Na decisão de f. 55-56, houve por bem o juízo rejeitar a queixa-crime, seja porque os textos apontaram genericamente a existência de meras suspeitas em torno de policiais pertencentes ao alto escalão, seja porque a intenção da notícia foi a de informar, e não atingir a honra ou a imagem de qualquer pessoa (f. 55-56,TA). Interposto o recurso contra a decisão (f. 58,TA), os querelantes sustentam que a reportagem em análise imputou-lhes fatos definidos e tipificados como crime, ao atribuir tais ilícitos ao alto escalão da polícia civil. De tal forma, viram-se os apelantes “enxovalhados, maculados e ofendidos em sua honra em razão de suas funções, além do que foram execrados e depreciados como supostos autores de fatos definidos como crime diante do teor estampado nas reportagens assinadas pelo querelado” (f. 62,TA). Assim, pleiteiam a reforma da decisão monocrática para que tenha prosseguimento a persecução judicial (f. 60-63,TA). Em contra-razões, o parquet reafirmou os termos de sua anterior manifestação e postou-se pela rejeição da acusação (f. 65-68,TA). O parecer ministerial opinou pelo provimento do recurso, por entender que, não obstante a matéria jornalística não tenha nominado os implicados, são eles determináveis, posto que integrantes do mencionado alto escalão. Ademais, a aferição da intenção que animava o jornalista ao redigir a reportagem só pode ser claramente delineada após a instrução criminal (f. 74-80,TA). Ordenada diligência (f. 82-83,TA), foram colhidas as contra-razões do querelado, que se manifestou pelo não provimento do recurso (f. 87-88,TA). Este o resumido relatório. Observado o rito procedimental próprio do recurso de apelação, que como deixei salientado à f. 82,TA é o adequado à espécie, conheço do feito. Não obstante o esforço da acusação, creio que a pretensão punitiva deduzida pelos querelantes não merece prosperar, por lhe faltar os requisitos essenciais exigidos pela codificação processual penal. Primeiro, não há indicação clara de serem os querelantes os supostos envolvidos no episódio narrado na matéria jornalística em comento. Com efeito, é certo que a referida matéria narra fatos que, em tese, configuram ilícitos penais, tais como falsificação de documentos, uso de documento falso, corrupção de menores, e vários outros, além de veicular expressões que poderiam, eventualmente, atingir a honra objetiva e subjetiva dos seus destinatários. No entanto, a imputação de tais condutas não foi dirigida a um ou a outro, não há individualização do suposto criminoso. A alusão é feita genericamente à alta cúpula, ou alto escalão da Secretaria de Segurança Pública do Estado. É cediço que, em se tratando de crimes contra a honra, bem como de outras espécies delitivas, não se faz imprescindível, para fins de responsabilização, que haja a designação nominal expressa e direta daquele a quem se atribui a prática de ato indevido ou criminoso, desde de que, por outras circunstâncias, seja possível a indicação segura e precisa da pessoa a quem se dirige. Apenas a título ilustrativo, podemos afirmar que se fossem propaladas calúnias contra o Secretário Estadual da Segurança Pública, dúvidas não haveria de quem seria o caluniado, assim como, no exemplo aventado pelos querelantes, se fosse ofendido o Juiz Titular da 9ª Vara Criminal, ou o Promotor de Justiça que ali oficia, também nesta hipótese o pólo legitimado a deduzir a pretensão punitiva estaria satisfatoriamente identificado. No caso em comento, porém, a notícia constante da edição do jornal “Estado de Minas” alude ao “alto escalão” da Secretaria de Segurança Pública. Tal denominação, segundo penso, não se dirige, ou se restringe, a um grupo determinado de funcionários. Trata-se de denominação dotada de acentuada generalidade, de modo que não se pode nominar quais os titulares dos cargos que compõem o alto escalão da referida Secretaria. Ademais, sabe-se que o linguajar jornalístico não se pauta, em grande parte das vezes, pelo rigor de seus termos, que não raro carecem de alcance preciso e delimitado. Não é incomum vermos estampadas nos jornais referências à “alta cúpula governamental”, ou aos “altos escalões do governo”, sem que possamos identificar quais seriam tais pessoas. Ademais, também não constato, da leitura da peça publicada, o ânimo difamador, caluniador ou injurioso (animus diffamandi, caluniandi ou injuriandi) do jornalista subscritor. Com efeito, observo, pelo contrário, que as palavras foram usadas com o cuidado de não se fazer qualquer acusação concreta ou leviana, permitindo ao leitor a perfeita compreensão de que o conteúdo da matéria referia-se a meras suspeitas e conjecturas ligadas às investigações policiais. Assim, das passagens destacadas na peça inicial encontram-se expressões como: “ (...) seria administrado (...); “(...), provavelmente (...)”; “Existem suspeitas (...)”; (f. 03-04,TA). Por fim, anoto, ainda, que segundo os postulados da teoria da imputação objetiva, que atualmente ganha fôlego entre a doutrina e a jurisprudência pátrias, a conduta apontada criminosa ressente-se do elemento da tipicidade. Com efeito, imputar objetivamente um resultado significa atribuir ao agente a realização de uma conduta criadora de um risco juridicamente proibido e, a partir desta realização, a produção de um resultado jurídico. Coloca-se a imputação objetiva como elemento normativo do tipo, cuja análise tem cabimento em momento posterior ao da relação de causalidade, exercendo, de tal modo, função limitadora da responsabilidade penal. Assim, pode-se dizer que seu fim é o de analisar o sentido social de um comportamento, averiguando se ele encontra-se ou não socialmente proibido e se tal proibição guarda importância para o direito penal. No tocante à hipótese em apreço, tenho que a conduta do jornalista foi orientada no sentido de informar aos leitores do jornal o acontecimento de um fato de inquestionável e relevante interesse da coletividade. Tal divulgação, a meu ver, não acarretou ofensa a qualquer bem jurídico digno de tutela constitucional, tampouco resultou de inobservância ou transgressão das regras conformadoras da atividade jornalística (lex artis). Assegurar a ampla liberdade de informação é não só absolutamente necessário, como salutar para o desenvolvimento do regime democrático, desde que, por óbvio, sem olvidar os limites impostos na Constituição Federal, cuja finalidade não é outra senão a de resguardar direitos e liberdades de igual quilate. Nesta linha de raciocínio, o jornalismo de fundo investigativo, jurídica e eticamente responsável, não só é permitido como deve ser estimulado. A devida apuração de fatos irregulares interessa a toda a coletividade. Por isso, tenho que não ultrapassa a fronteira do risco socialmente aceitável, capaz de induzir à responsabilização penal, a divulgação por meio da imprensa de notícias que, não obstante veiculem suspeitas de irregularidades de cunho administrativo ou criminal, contenham-se dentro dos parâmetros traçados constitucionalmente, bem como das regras disciplinadoras da atividade jornalística. Com fulcro nestes fundamentos, nego provimento ao recurso. Custas, ex lege. Juiz Erony da Silva A c ó r d ã o Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal Nº 311.340-2 da Comarca de BELO HORIZONTE, sendo Apelante (s): MÁRCIO BARROSO DOMINGUES e OUTROS e Apelado (a) (os) (as): N.C., ACORDA, em Turma, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, NEGAR PROVIMENTO. Presidiu o julgamento a Juíza MÁRCIA MILANEZ e dele participaram os Juízes ERONY DA SILVA (Relator), ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO (1º Vogal) e CARLOS ABUD (2º Vogal). O voto proferido pelo Juiz Relator foi acompanhado na íntegra pelos demais componentes da Turma Julgadora. Belo Horizonte, 12 de dezembro de 2000.


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