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Arrazoados: Recurso contra o indeferimento da denúncia contra o Presidente Fernando Henrique Cardoso, por crime de responsabilidade, dirigido ao Presidente da Câmara dos Deputados

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara dos Deputados:

Celso Antonio Bandeira de Mello, Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato, Goffredo da Silva Telles Júnior e Paulo Bonavides, qualificados na denúncia por crime de responsabilidade do Presidente da República, protocolada nessa Casa Legislativa em 18 de maio último, inconformados com o R. Despacho de Vossa Excelência., que indeferiu o seu recebimento, vêm, com apoio no disposto no art. 218, § 3º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, interpor recurso ao Plenário, pelas razões a seguir expostas:

A responsabilidade política do Presidente da República

- Os Recorrentes permitem-se, inicialmente, observar que a concepção de responsabilidade política do Presidente da República, exposta na decisão recorrida, não se coaduna minimamente com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, adotados em nossa Constituição.

No regime democrático, nunca é demais repetir, a soberania pertence ao povo, do qual emanam todos os poderes (Constituição, art. 1º, parágrafo único). O Presidente da República, enquanto Chefe de Estado e Chefe de Governo, não é dono dos cargos que ocupa, mas exerce as funções que lhe são delegadas pelo povo.

Da mesma forma, a legitimidade política dos membros do Congresso Nacional consiste em representar o povo perante o Poder Executivo, que detém o monopólio da coação legítima. Os parlamentares não podem atuar como representantes do Governo, nas tarefas de legislação e aprovação de políticas públicas.

Além disso, o Parlamento, no Estado de Direito, é o grande fiscal das atividades do Executivo.

Quando os parlamentares abandonam essa eminente função constitucional, para se colocarem na posição oposta, de simples delegados do Executivo, e nessa escandalosa inversão de funções impedem o exame e o controle dos atos do Governo, a soberania do povo é vilmente afrontada.

De tais princípios decorre, irrecusavelmente, que a competência fiscal do órgão parlamentar é inegociável e indisponível, porque o Congresso Nacional exerce poderes que pertencem, primariamente, ao próprio povo.

Num Estado Democrático de Direito, o Presidente da República tem um grau de responsabilidade política equivalente à soma considerável de poderes que a Constituição lhe outorga. Afirmar, nessas condições, que o impeachment tem natureza excepcional – quando ele é a única forma de se fazer atuar a responsabilidade política do Chefe do Executivo, no sistema presidencial de governo – equivale a equiparar o Presidente da República a um monarca irresponsável.

A Constituição Política do Império do Brasil, com efeito, dispunha em seu art. 99: “A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma.” Teremos chegado a tal ponto, no abastardamento do regime republicano, que o Chefe do Poder Executivo, só excepcionalmente, responde pelos seus desmandos?

Vinte e cinco anos após a entrada em vigor de nossa primeira Constituição republicana, Rui Barbosa já advertia para os riscos desse cesarismo presidencial, a vicejar em meio à indiferença generalizada:

“Ninguém aqui se importa com as ditaduras presidenciais. [...] Ninguém se acautela, se defende, se bate contra as ditaduras do Poder Executivo. Embora o Poder Executivo, no regime presidencial, já seja, de sua natureza, uma semiditadura, coibida e limitada muito menos pelo corpo legislativo, seu cúmplice habitual, do que pelos diques e freios constitucionais da Justiça [...]. Deste feitio, o presidencialismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo.”[1]

Prestar-se-á o Congresso Nacional, no presente caso, a atuar como cúmplice do Presidente da República, na prática de um crime de responsabilidade?

A motivação do Despacho recorrido

2.- O R. Despacho recorrido, fundando-se analogicamente nas disposições do Código de Processo Penal, indica, como razões justificativas de rejeição da denúncia, a falta de condição exigida pela lei para o exercício da ação penal e a narração de fato que, evidentemente, não constitui crime. Quanto à primeira razão, alega-se, na decisão recorrida, que notícias estampadas em jornais não constituem documentos probatórios. Quanto à segunda, que o Poder Executivo teria o direito de praticar ato discricionário.

Ambas essas razões, com a devida vênia, são inconsistentes e, portanto, inadmissíveis como fundamento de uma decisão de arquivamento da denúncia.

Senão, vejamos.

A prova do fato delituoso não é condição do exercício da denúncia

3.- A interpretação, dada no Despacho recorrido, às disposições dos artigos 41 e 43 do Código de Processo Penal é realmente singular.

Toda ação judicial, de qualquer natureza, é uma proposta de prova dos fatos expostos na peça inicial da demanda.

A ação penal não faz exceção à regra. Quando o Ministério Público decide denunciar alguém pelo cometimento de um crime, ele não está, obviamente, obrigado a apresentar, desde logo, a prova cabal da materialidade do fato criminoso nem de sua autoria. Se assim não fosse, no rigor da lógica, seria dispensável a movimentação da máquina judiciária. Bastaria ao acusador declarar o que, só por si, já acarretaria a aplicação automática da lei penal. Como ninguém ignora, o denunciante, no processo penal, afirma a responsabilidade do denunciado de forma meramente assertória ou hipotética. Só ao Juiz, cabe fazê-lo de forma categórica ou apodítica, porque só o julgador tem competência para dizer o direito de forma definitiva.

Por isso mesmo, exegeta algum, por mais clarividente que seja, poderá encontrar, no texto do art. 41 do Código de Processo Penal, qualquer referência à necessidade de antecipação da prova, como condição de validade da denúncia. O dispositivo legal enuncia:

“A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”

Primeiro requisito: a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias. Foi o que fez a denúncia, no presente caso.

Segundo requisito: a qualificação do acusado. A denúncia foi claramente dirigida contra o Presidente da República.

Terceiro requisito: a classificação do crime. A denúncia capitulou os fatos narrados no art. 6º, alínea 2, da Lei nº 1.079, de 1950.

O que mais exige a lei? Absolutamente nada.

A única referência a prova, no texto legal transcrito, indica, justamente, a dispensabilidade de sua antecipação: a denúncia ou queixa indicará, “quando necessário”, o rol das testemunhas, ficando bem entendido que a apresentação desse rol supõe seja a prova testemunhal feita na fase instrutória do processo.

Por isso mesmo, no texto do art. 43 do Código de Processo Penal, o qual dispõe sobre a rejeição liminar da denúncia, não se vislumbra, como é óbvio, a menor alusão à falta de prova. “O inc. I (do art. 43),” escreveu E. Magalhães Noronha, “exige que o fato narrado, na forma do art. 41, tenha tipicidade, isto é, corresponda ou se subsuma em um tipo da lei penal. Não é mister, entretanto, que esteja provado, pois isso é objeto da instrução.”[2]

A invocação, feita pelo Despacho recorrido, ao inciso III do mesmo dispositivo legal, é impertinente. A “condição exigida para o exercício da ação”, aí declarada, não se refere, de modo algum, à preconstituição da prova, mas sim àquilo que a doutrina denomina condição objetiva de punibilidade, tal como a representação do ofendido, nos crimes que exigem essa providência preliminar.[3]

A denúncia apresentou documentos probatórios

4.- Na espécie, todavia, é perfeitamente dispensável repisar tais obviedades, porque os Recorrentes, em tudo de acordo com o disposto no art. 16 da Lei nº 1.079, de 1950, apresentaram, efetivamente, documentos comprobatórios do fato delituoso. Pelo Despacho recorrido, contudo, eles não foram, sob a má justificativa de que “notícias formalísticas”, veiculadas em jornais, não seriam “suficientes para subsidiar um processo por crime de responsabilidade”.

Ainda aí, com a devida vênia, o argumento é vão.

5.- Antes de mais nada, não é verdade que a Lei nº 1.079 exija, para o deferimento de denúncia de crime de responsabilidade, a apresentação de --- documentos comprobatórios. Se assim o fosse, seria materialmente impossível a abertura de processo em vários dos tipos delituosos descritos no citado diploma legal.

Tomemos, por exemplo, o crime descrito no mesmo art. 6º, alínea 2, em sua primeira parte: “usar de violência ou ameaça contra algum representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença, ou para coagi-lo no modo de exercer o seu mandato.”

Pode-se imaginar, em sã consciência, que tal violência ou ameaça costuma ser comprovada documentalmente? É crível admitir que o chantagista preferirá comunicar-se com a vítima por meio de algum escrito, de modo a preconstituir a prova contra si mesmo, em lugar de ameaçar a vítima de viva voz?

6.- No presente caso, de qualquer modo, essa discussão é ociosa: a denúncia foi oferecida com documentos comprobatórios. Os jornais apresentados na denúncia estão entre os de maior circulação no país, e as notícias neles estampadas foram veiculadas, sem variação, por todos os demais diários nacionais, bem como pelas revistas semanais de maior tiragem. Uma pequena amostra desse farto noticiário jornalístico encontra-se na anexa sinopse da imprensa dos dias imediatamente seguintes ao episódio.

Como é possível afirmar que se está, no caso, diante de documentos inidôneos para justificar a abertura do processo?

Que diz a lei processual penal quanto a esse ponto ? “Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares (art. 232). As publicações periódicas, com tiragem global de milhões de exemplares, não fariam prova em juízo? Seria o Congresso Nacional mais exigente do que o Poder Judiciário, a esse respeito?

Ora, em nenhum momento, o Presidente da República usou de seu direito de resposta e retificação, perante os jornais e revistas que noticiaram o fato de que os Deputados, que voltaram atrás em seu requerimento de instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito, foram beneficiados com favores governamentais, para procederem a essa retratação.

Os fatos narrados na denúncia são, portanto, públicos, notórios e incontestados. Ora, como se sabe, tanto no processo civil (Cód. Processo Civil art, 334–I, quanto no penal[4], os fatos públicos e notórios independem de prova. Deixaria, porventura, idêntica regra de aplicar-se nos processos parlamentares por crime de responsabilidade?

A prova governamental dos fatos delituosos

7.- Já que as informações veiculadas pelos principais órgãos da imprensa nacional, segundo a interpretação do Despacho recorrido, não constitui meio idôneo de prova dos fatos alegados na denúncia, corre aos Recorrentes a obrigação de lembrar que tais informações não foram inventadas pelos jornais, mas sim obtidas mediante simples consulta, pela rede Internet, aos dados do SIAFI – Sistema Integrado de Administração Financeira, órgão do Ministério do Planejamento.

Sentem-se os Recorrentes constrangidos de exibir à Câmara dos Deputados, sob a forma de documentos comprobatórios, os registros constantes do SIAFI sobre a liberação de verbas orçamentárias, os quais são de pleno conhecimento, não só da Casa, mas do público em geral.

Da leitura dos documentos anexos, verifica-se, sem maior esforço de pesquisa, que os Deputados que se retrataram do requerimento de instalação da C.P.I., referida na denúncia, foram contemplados com liberação de verbas para emendas orçamentárias por eles apresentadas, sendo certo que essa liberação ocorreu, maciçamente, no mês de maio de 2001.

Os documentos do SIAFI mostram, também, que a finalidade dessas emendas ao orçamento foi a realização de obras públicas nas localidades dos Estados, onde tais Deputados foram eleitos.

Como no Despacho recorrido declara-se ignorar a identidade desses parlamentares, os Recorrentes passam a nomeá-los:

· Ariston Andrade (PFL – BA)

· Augusto Nardes (PPB – BA)

· Cornélio Ribeiro (PSB – RS)

· Dino Fernandes (PSDB – RJ)

· Eujácio Simões (PL – BA)

· José Aleksando (PFL – AC)

· João Eduardo Dado (PL – SP)

· José Egydio (PL – RJ)

· José Bengston (PTB – PA)

· Luciano Bivar (PST – PE)

· Luís Moreira (PFL – BA)

· Luizinho (PST – RJ)

· Oliveira Filho (PL – BA)

· Osvaldo Biolchi (PMDB – TO)

· Paulo Magalhães (PFL – BA)

· Paulo Marinho (PFL – MA)

· Roberto Araújo (PFL – RO)

· Ursicino Queiroz (PFL – BA)

A usurpação de competência do Plenário da Câmara

8.- A Constituição da República, em seu art. 86, atribui o juízo de admissibilidade de acusação por crime de responsabilidade do Presidente da República à Câmara dos Deputados, como órgão do Congresso Nacional, composto de representantes do povo (art. 45).

Escusa lembrar que o Presidente da Câmara dos Deputados não se pode substituir à Casa Parlamentar que preside, no exercício dessa competência constitucional. A Lei nº 1.079 é expressa: “É permitido a qualquer cidadão brasileiro denunciar o Presidente da República ou Ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados” (art. 14). Não perante o Presidente da Câmara dos Deputados.

Quando, portanto, o Presidente da Câmara dos Deputados despacha uma denúncia por crime de responsabilidade do Presidente da República, ele não pode, de modo algum, examinar o mérito da acusação. Compete-lhe, tão somente, verificar se os requisitos formais da denúncia, impostos pela lei, foram cumpridos. Nada mais.

No caso concreto, porém, extrapolando de sua posição de mero representante da Casa, o autor do Despacho recorrido examinou o mérito da denúncia, e comportou-se, deploravelmente, como defensor ilegítimo do denunciado.

Com efeito, ao tentar justificar, com apoio no art. 43 – I do Código de Processo Penal, a afirmação de que o fato narrado na denúncia não constitui crime, a decisão recorrida argüiu que “as verbas objeto da veiculação jornalística citada constavam, segundo os próprios denunciantes, no Orçamento da União para o presente exercício fiscal”, e que “dentro do nosso sistema jurídico, sua liberação é ato afeto ao legítimo poder discricionário do Poder Executivo.”

É constrangedor mostrar que essas duas afirmações do Despacho recorrido nada têm que ver com o teor da denúncia. O fato nela narrado não é, obviamente, a singela liberação de verbas constantes do orçamento aprovado pelo Congresso Nacional, nem tampouco o legítimo exercício do poder discricionário do Chefe do Executivo, ao fazê-lo.

O que a denúncia afirma é que, no caso concreto, ocorreu não o legítimo exercício de um poder administrativo discricionário, mas sim um claro e manifesto desvio de poder.[5] É óbvio que o Chefe do Executivo tem a atribuição de liberar verbas orçamentárias. Mas ele não pode servir-se dessa competência para, sob o disfarce da regularidade formal, visar não ao interesse público pressuposto na lei do orçamento, mas sim a satisfação de um duplo interesse particular: dos Deputados autores das emendas orçamentárias e dele próprio, Chefe de Governo.

O que ocorreu, na verdade, como ninguém ignora, e alguns dos próprios Deputados beneficiados reconheceram, foi uma escandalosa barganha, praticada com o dinheiro público, a fim de impedir que o Congresso Nacional cumprisse o seu dever constitucional de fiscalizar as atividades da Administração, direta e indireta.

Mas os Recorrentes não querem e não precisam entrar agora nessa discussão, pois ela é impertinente na presente fase processual. Só o Plenário da Câmara dos Deputados, cumprido o procedimento previsto nos artigos 19 e seguintes da Lei nº 1.079, bem como no art. 218 do Regimento Interno, tem competência para apreciar o mérito da denúncia, e decidir se admite ou não a acusação do Presidente da República perante o Senado. Essa competência constitucional não lhe pode ser usurpada pelo Presidente da Casa.

Conclusão

9.- Diante das razões expostas, os Recorrentes pedem e esperam que Vossa Excelência reconsidere o Despacho recorrido e determine a abertura do processo parlamentar, para o exame da admissibilidade da denúncia apresentada, nos termos do disposto na Constituição da República e na Lei nº 1.079, de 1950.

Se, no entanto, Vossa Excelência decidir pela manutenção do Despacho recorrido, os Recorrentes pedem que ele seja apreciado, em grau de recurso, pelo Plenário da Casa, na conformidade do disposto no art. 218, § 3º, do Regimento Interno.

Brasília,

Celso Antonio Bandeira de Mello

Dalmo de Abreu Dallari

Fábio Konder Comparato

Goffredo da Silva Telles Júnior

Paulo Bonavides

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notas

[1] Discurso de posse na presidência do Instituto dos Advogados Brasileiros, proferido em 19 de novembro de 1914, in Obras Completas, vol. XLI, 1914, tomo IV, Ministério da Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, págs. 232/233.

[2] Curso de Direito Processual Penal, 21ª edição, Saraiva, 1992, pág. 27.

[3] HÉLIO TORNAGHI, Curso de Processo Penal, t. 1, Saraiva, 8ª ed., 1991, pág. 44.

[4] E. MAGALHÃES NORONHA, op. cit., pág. 89; HÉLIO TORNAGHI, op. cit., vol. I, pág. 279; JÚLIO FABBRINI MIRABETE, Processo Penal, 2ª ed., Editora Atlas, 1993, págs. 249/250.

[5] Cf., na doutrina nacional, HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 23ª ed., Malheiros, 1998, pág. 98. Na estrangeira, G. VEDEL e P. DELVOLVÉ, Droit Administratif, t. 2, 11ª ed., P.U.F., págs. 323 e ss.; HARMUT MAURER, Allgemeines Verwaltungsrecht, 9ª ed., Beck, § 7, 22.



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