As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto
José Olavo Bueno dos Passos
José Olavo Buenos dos Passo
Promotor
de Justiça em RS
Doutor em Direito pela UMSA
Professor da Escola de Direito da UCPEL
Apenado:
E. R. C. L.
Parecer:
Pelo
Ministério Público
MM. Juíza:
Trata-se
de postulação de substituição de pena privativa de liberdade por restritiva
de direito. Cumpridas as formalidades legais, vieram os autos para o lançamento
do competente parecer ministerial.
É o sucinto relatório.
Em
nosso ordenamento jurídico, motivada por uma série de circunstâncias, em
especial por noções como a da falência da pena privativa da liberdade, expressada pelo doutrinador Cesar
Bitencourt, brotou uma gama imensa de normas visando punir sem encarcerar aqueles que, de uma ou outra forma,
lesam a lei positiva executando o tipo penal estampado pelo legislador do texto
legal em vigência.
A
concepção da despenalização remonta aos idos, em sua mais recente visualização,
de 1984, quando do advento da nova parte geral do Código Penal Brasileiro.
Nessa época, surgiu também da nova Lei de Execução Penal, trazendo em seu
bojo, como objetivo norteador das atividades executórias, a idéia, não tão
nova, da ressocialização do preso.
Em
contrapartida, não contramão de direção, promulgou-se em 1990 a chama Lei
dos Crimes Hediondos, na qual,
ofendendo toda uma concepção criminológica moderna e correta, informadora dos
juristas reformadores da parte geral do Código Penal, foi entranhada a norma
que fixava a integralidade do regime fechado como forma de cumprimento da pena
privativa da liberdade.
Seguiu
o legislador, então, promulgando normas, reformando a reforma, contrariando-se
em posicionamentos até o advento de duas normas claras e contundentes, a
chamada Lei do Crime de Tortura e a Lei das Penas Altenativas, ambas em vigência
em nosso ordenamento jurídico.
Pela Lei do Crime de Tortura, não hediondo por previsão legal, para daqueles ditos assemelhados, o
Veja também: |
Artigo publicado: "A vara especializada de Execução de Penas Alternativas" - Fonte: Boletim IBCCrim, N° 92, julho de 2000, p. 15 - Autor: Grecianny Carvalho Cordeiro |
Artigo publicado: "Quais são as Penas Alternativas" - Fonte: Boletim IBCCrim, N° 86, fevereiro de 2000, p. 11 - Autor: Jair Leonardo Lopes |
regime de cumprimento da
pena privativa da liberdade é inicialmente fechado. Ora, nada mais hediondo que
o crime de tortura. Aliás, infinitamente mais hediondo que o crime de homicídio
qualificado, causado, em sua maioria, por circunstâncias singulares inerentes
à vida humana, e daí, e por isso mesmo, julgado por um tribunal popular, o
Tribunal do Júri. Fazer, sofrer, maltratar, judiar, causar dor, física ou
moral, é conduta ignóbil, torpe em seu âmago, e quem o faz tem direito a
progredir em seu regime carcerário. Aquele que mata o estuprador de sua filha,
comete homicídio qualificado (vingança), não, devendo cumprir sua pena
integralmente em regime fechado. Verdadeira heresia jurídica.
A
Lei das Penas Alternativas, observadas uma série de circunstâncias,
possibilita que a pena privativa da liberdade seja substituída por prestação
de serviço à comunidade, limitação de fim de semana, e outras penas não
cerceadoras do direito de ir, vir e ficar.
Como
se vê, o espírito da leis penais hoje insere-se na noção do
desencarceramento. Prisão só quando não é possível punir-se mantendo o
condenado em vivência social, no seio de sua família, em labor. Aliás, essa
é a noção atual da psiquiatria. O doente deve ser tratado em casa, vivendo
com seus familiares, sem ser afastado de seu grupo social, o que só pode
acontecer se representar evidente perigo a sua comunidade social (família e
sociedade em geral).
A
doutrina e a jurisprudência tem dividido-se em posicionamentos aceitando ou não
a possibilidade da substituição de pena em caso de crimes hediondos. Ora, no
texto da Lei das Penas Alternativas inexiste qual óbice legal a aplicação de
dita substituição, senão aquelas para os crimes em geral. Sabe-se que em matéria
de legislação penal não é possível interpretação
extensiva.
Buscando
uma solução que justifique o impedimento da substituição da pena para os
crimes hediondos, juristas falam da necessidade de uma interpretação sistemática,
indo até a lei dos crimes hediondos, declinando a determinação da
integralidade do regime fechado para obstar, assim, sua aplicação a casos como
os de tráfico de entorpecentes. Ora, mesmo em caráter sistemático, não é
cabível a interpretação extensiva em matéria penal. Deverá ela ser sempre
restritiva e literal, sob pena de ferir-se o sagrado princípio da legalidade e
interpretação in
bonam partem, como prevê a Carta Magna no campo dos direitos individuais.
Transcreva-se
aqui o ensinamento do Desembargador Antônio Carlos Netto Mangabeira, integrante
da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, lançado
no texto do acórdão referente a Apelação Criminal nº 70001058460: “Com
efeito, a Lei nº 9714/98 nenhuma ressalva expressa contém relativamente à
aplicação do benefício aos condenados por crimes hediondos. E, cuidando-se de
matéria penal, onde a lei não restringe, descabe ao intérprete fazê-lo em
prejuízo do réu, mas sempre in bonam partem. Ademais, a mera gravidade do
delito em si não pode conduzir, por si só, à impossibilidade de o julgador
aferir a presença ou não dos requisitos objetivos e subjetivos à obtenção
da substituição. Aliás, perfeitamente aplicável ao tema a decisão do STF
colacionada por Luiz Flávio Gomes (in “Penas e medidas Alternativas à Prisão,
Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 112): ‘a simples alusão à gravidade do
delito em abstrato, sem suficiente fundamentação, não basta, por si só, para
a fixação do regime de cumprimento de pena mais gravoso ao réu’( HC 77.682-
SP, Rel. Min. Néri da Silveira, Informativo STF 128, de 19 a 23 de outubro de
1998, p. 1; HC 77.790-6, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, DJU de 27.11.98, p. 10)”.
Ademais,
se fizermos uma interpretação sistemática, teremos, obrigatoriamente que
buscar o espírito da legislação que está a brotar da casa legislativa pátria
atualmente. Verificaremos, então, que a intenção do legislador pátrio é
encarcerar menos e só aqueles que, efetivamente, representam risco para à vida
em sociedade.
Continuando
na análise conjuntural das normas penais, veremos que a Lei de Tortura não é
norma isolada, sendo norma penal, versando sobre crime brutal, assemelhado aos
ditos hediondos, e, na verdade, mais hediondo que os mesmos. Veremos, ainda, que
essa lei é mais nova que a dos hediondos, datando de 1997 (Lei nº 9455/97),
tendo, por isso mesmo, em face da regra de que a lei nova revoga a mais antiga,
ou abroga-a, tornado inaplicável o regramento específico da obrigatoriedade de
cumprir da pena imposta, em casos de crimes hediondos, integralmente em regime
fechado.
O
posicionamento dos Ministros Vicente Leal e Fernando Gonçalves, do STF, em
reiterados votos, tem adotado o entendimento da viabilidade de progressão
carcerária em casos de crimes hediondos: HC nº 7.185, 6ª Turma,
Rel. Ministro Vicente Leal, DJU 10.08.98, p. 81; STJ, RHC 8,046, 6a,
Turma, Rel. Ministro Vicente Leal, DJU 14/12/98, p. 306; STJ, RHC,7.856, 6ª
Turma, Rel. Ministro Vicente Leal, DJU 14/12/98, p. 304; STJ, HC nº8.264, 6ª
Turma, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJU 03/05/99, p. 179; STJ, HC nº
8.181, 6ª Turma, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, j. 08/06/99, DJU
20/09/99, p. 86; STJ, HC nº 8.640, 6ª Turma, Rel. Ministro Vicente
Leal, DJU 20/09/99, p. 87.
Damásio
de Jesus, escrevendo a respeito da progressividade do regime prisional, em
crimes hediondos, expressa-se da seguinte forma: “...com fundamento no princípio
constitucional da proporcionalidade. O art. 5º, XLIII, da CF, equipara o delito
de tortura aos hediondos e assemelhados. Ora, se a Lei de Tortura, posterior à
Lei dos Crimes Hediondo, admite a progressão, de estender-se os benefícios a
estes assemelhado, por aplicação retroativa da norma mais benigna (CF, art. 5º,
XL; CP, art. 2º, parágrafo único”- Boletim do IBCCrim, Novembro/99, nº 84.
p. 02).
Assim,
concebendo-se que houve revogação da regra inserida na Lei dos Crimes
Hediondos, antes referida, não vislumbra-se óbice para a substituição da
pena imposta por pena alternativa, mas mesmo que o entendimento fosse em contrário,
ou seja, de que não houve dita revogação, também não obstada estaria a
substituição, haja vista a imperatividade de interpretação literal em tais
casos, não proibindo a Lei nº 9714/98 a efetivação da substituição
referida, e o que a lei não proíbe, como se sabe, é permitido. E o que a lei
permite, como se sabe, não é proibido. Esse o jargão
forense, essa a verdade.
Douta
julgadora, uma questão urge de ser examinada. Há decisões condenatórias onde
julgadores expressam que deixam de proceder a substituição de pena em razão
de considerarem hediondos os delitos que julgaram. Ora, é expresso o princípio
constitucional da reserva legal e, por ele, em direito, nada pode ser exigido;,
nenhum comportamento pode ser cobrado; ou conduta juridicamente praticada;
inexistindo previsão legal para tanto. Em considerando-se uma lei, ou parte
dela, revogada, não se pode executá-la, fazê-la cumprir. Dessa forma,
tendo-se que a Lei de Tortura revogou a regra da Lei dos Crimes Hediondos no
tangente a integralidade do regime fechado, passível de progressão carcerária
os condenados por tais delitos. Esse o primeiro aspecto. O segundo, claro e
cristalino, é que todas as decisões que impediram a substituição, alicerçadas
em tal argumento, são, nesse tópico, inconstitucionais e, como tal, inviáveis
de cumprimento no tangente a circunstância referida. Daí, não pode o juízo
da execução proceder seu cumprimento, pois se o fizesse estaria dando vazão a
lesão fático-jurídica da norma maior, da Carta Magna, e o juiz é o fiscal da
constitucionalidade da norma legal no caso em concreto (controle da
constitucionalidade da norma legal no caso em concreto), devendo, em conseqüência,
fazer valer o direito publico e subjetivo do apenado de ver apreciado, não sob
o aspecto da hediondez antes citada, mas sob o norte objetivo e subjetivo do
fato e do apenado, a possibilidade de substituição da pena privativa da
liberdade cominada por outra de caráter alternativo. Outro não pode ser o
entendimento.
Partilhando
a idéia de que a pena privativa da liberdade só é cabível a casos extremos,
ou seja, de que só aqueles que representam risco social efetivo é que devem
ser segregados da vida comunitária, pois a socialização é necessária à
efetiva reeducação do apenado, tenho, em conclusão, como perfeitamente cabível
substituir-se, obedecidos os critérios legais objetivos e subjetivos, em
qualquer tipo de delito, de crime. Esse o espírito, com já disse, da legislação
penal atual.
No
caso em pauta, as circunstâncias do apenado entranham-se em todas as exigências
legais, nada havendo a impedir que se
venha proceder
a substituição buscada, sendo ela perfeitamente legal.
Diante
do anteriormente exposto, o parecer é no sentido o deferimento da substituição
de pena buscada pelo apenado Elbio Renato
Couto da Luz, procedendo-se, lato
sensu, todas as formalidades legais inerentes a espécie.
É a conclusão.
Pelotas,
09 de fevereiro de 2001
José
Olavo Buenos dos Passo
Promotor de Justiça
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