As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto
Maurício Kuehne - Professor/ PR
Maurício Kuehne Membro
do Conselho Penitenciário do Estado do Paraná;Membro Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária e Professor da Faculdade de Direito de Curitiba |
I.
Oferecemos junto ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
parecer contrário à proposta legislativa tendente a privatizar o Sistema
Penitenciário, e o fizemos baseados nas reflexões que seguem, com algumas
alterações, as quais, entretanto, não comprometem a substância do
pronunciamento em referência, posto que a conclusão é no sentido de que não
há guarida no ordenamento jurídico à proposta. Vejamos.
Conforme
contido às fls. 8, a ilustre Secretária de Assuntos Legislativos do Ministério
da Justiça submete a este colegiado, para manifestação a respeito do mérito,
proposta legislativa consubstanciada em Projeto de Lei sob nº 2.146/99, de
autoria do Deputado Luiz Barbosa. Objetiva a proposição autorizar o Poder
Executivo a “promover a privatização
do sistema penitenciário”, constando às fls. 4/6 a íntegra do objetivo
colimado, bem como a justificativa.
O
móvel da proposta se atém à crítica e calamitosa situação penitenciária,
cuja realidade está a dispensar considerações outras, posto que se trata de
fato público e notório.
Reconhece
o nobre Deputado que “Embora
a segurança pública seja dever do Estado, o presente Projeto de Lei visa
compartilhar o gerenciamento e a participação da iniciativa privada na solução
de um grave problema que não tem encontrado resposta enquanto limitado à
exclusiva competência do poder público”.
II.
A discussão que se trava a respeito da Privatização dos Presídios vem
despertando, no Brasil, manifestações díspares por fatores e setores os mais
diversos, principalmente no último decênio. Com efeito, a nível
Internacional, conforme noticia Bernardo Del Rosal Blanco, em artigo intitulado “As
Prisões Privadas: Um Novo Modelo Em Uma Nova Concepção Sobre a Execução
Penal”, publicado na RT 665/243-257, traduzido que foi o artigo em questão
por Luiz Flávio Gomes, a questão “...refere-se
a um fenômeno relativamente recente - pois sua história começa nos primeiros
anos da década de 80 - que está tendo lugar especialmente nos Estados Unidos
da América (EUA) e que já estão tratando de importar para alguns países
europeus...”
Após
exaustivas considerações, posiciona-se contrariamente à Privatização, com o
alerta, todavia, de que o debate está a iniciar.. Parafraseando Radbruch
consigna que não quer “melhores prisões
senão algo melhor que as prisões”.
III.
Na esteira da posição retro, a lúcida manifestação do saudoso João
Marcello de Araújo Júnior, o qual em forma de apresentação ao opúsculo “Privatização
das Prisões” ed. RT, 1995, apresentava, a nosso sentir, irrespondíveis
argumentos de ordem ética, jurídica e política, além de agregar aspectos práticos,
contrários à tese em discussão.
IV.
Destaque-se, também, o estudo realizado por Carmem Pinheiro de Carvalho, então
Presidente do Conselho de Criminologia e Política Criminal de Belo Horizonte,
publicado na Revista do Conselho em referência, v. 2. n. 2, p. 35/38, jul/dez
de 1994. Analisa a questão relacionada ao trabalho, entendendo que a legislação
vigente não estaria a contemplar qualquer forma de privatização. Entende que “Entregar
as penitenciárias a uma direção estranha à nova ideologia do tratamento
penitenciário e à filosofia da execução penal, quando a sua legislação já
alcançou um estágio tão promissor, é uma perspectiva nova que merece estudos
muito mais acurados quanto aos seus aspectos sociais, jurídicos e legais”.
V. Na visão externada, as proclamações de Luis Fernando Camargo de Barros Vidal, em artigo publicado na RBCCrim, vol 2, p. 56/63, ed. RT. Critica, de forma veemente, a inércia estatal à solução dos graves problemas, e não compactua com a idéia da privatização, posto que o preso “...deixa de ser sujeito em processo de ressocialização e torna-se objeto da empresa, resta privado de qualquer dignidade”.
Veja também: |
Doutrina internacional: En torno al debate sobre la privatizacion de los presidios. Parte 1 - Autor: Raúl Cervini - Professor/ Uruguai |
Artigo: Privatização de presídios - Autor: Lúcia Cristina Gomes da Silva - Acadêmica da UFMT |
Livro: Privatização de Presídios e Criminalidade - A Gestão da Violência no Capitalismo global - Fonte: Editora Max Limonad - Autor: Laurindo Dias Minhoto |
VI.
Registre-se, sob outro ângulo, que o tema já foi objeto de estudos e reflexões
por diversos segmentos jurídicos. A Ordem dos Advogados do Brasil, através de
documento assinado por nomes da mais alta respeitabilidade nas ciências
jurídicas, em particular penal - processual penal e de execução penal - e
pertencentes à Magistratura - Ministério Público e à classe dos Advogados,
em caráter preliminar, manifestou repúdio à proposta de Privatização do
Sistema Penitenciário, que teria sido apresentada a este Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária em 27/01/1992, pelo eminente então
Conselheiro e Presidente do Órgão, Prof. Edmundo Oliveira, proposta que será
destacada adiante.
VII.
De igual postura a Carta de Joinville editada em março de 1993 pela Associação
dos Magistrados Brasileiros, que rejeitou a tese, “sem
embargo de recomendar sejam estimuladas as soluções que visem ao incremento do
trabalho do apenado”.
VIII.
Mesmo a assim propalada “terceirização”
vem sendo objeto de contestação, devido aos elevados custos os quais estão
sendo objeto de investigações e já ocasionaram mudanças de alto escalão em
Governo Estadual. A propósito do tema, a reportagem “Rio
paga mais caro por refeição a presos” (Folha de São Paulo, cad. 1, p.
13 - 8-4-2000).
IX.
É sabido que o aspecto relacionado à dignidade dos presos está a exigir
reflexões profundas, contudo, parece-nos, não é com a privatização que tal
situação irá se resolver.
X.
As ponderações e remissões efetivadas nos tópicos antecedentes não
significam que a preocupação com o problema perde interesse. Ao revés,
avoluma-se. Em sentido diametralmente oposto ao que retro se consignou, o
eminente Prof. Edmundo de Oliveira apresentou proposta no dia 27 de janeiro de
1992, a este Colegiado, sedimentada em estudos realizados por experiências
colocadas na prática em estabelecimentos prisionais dos Estados Unidos, França,
Inglaterra, Bélgica e Austrália. Trata-se, em verdade, de uma forma de gestão
mista envolvendo a administração pública e a administração privada.
Conforme
já informado, referida proposta recebeu o repúdio da OAB (item VI), em
documento assinado em 9/4/1992. Este Conselho, contudo, nos termos da Resolução
de n. 01 de 24/03/93, atinente à proposta do Prof. Edmundo decidiu:
“I
- submeter a proposta a amplo debate nacional pelos diversos segmentos da
sociedade;
II
- deixar que os Governos Estaduais avaliem a iniciativa de adotar ou não a
experiência, em conformidade com as peculiaridades regionais”.
Atente-se
que publicação específica foi editada em 1994 dando ampla divulgação ao
assunto.
XI.
De igual sorte, o magistrado Mauro Bley Pereira Júnior em propostas à crise
penitenciária advoga a Privatização. Lembra, contudo, que há possibilidade
legal de intervenção privada nos presídios consoante o ordenamento atual.
Assim, não haveria qualquer necessidade de mudança legislativa, mesmo porque a
situação dos reclusos estaria resguardada, posto que a questão relacionada à
disciplina, segurança e os aspectos de índole jurisdicional não estariam a
sofrer qualquer ingerência, pois a empresa é que estaria sujeita à fiscalização
do juiz da execução e demais órgãos conforme dispõe a Lei de Execução
Penal. Maiores detalhes no artigo “Propostas de solução da crise penitenciária. Municipalização e
Privatização”, publicado na Jurisprudência
Brasileira Criminal, Juruá Editora, Curitiba, volume 34.
XII.
Nesta incursão doutrinária, releva salientar o que preconiza Luiz Flávio
Borges D’Urso. Suas reflexões amplamente divulgadas constam de publicação
específica (Direito Criminal na Atualidade - ed. Atlas, São Paulo, 1999, p. 71
e 75), assim como nas Revistas deste Conselho, vol. 1 n. 7, jan/jun - 1996, p.
53/57 e Consulex (Ano III, n 31, jul/99, p. 44/46).
O
que propõe o autor Luiz Flávio, atrás citado, é a necessidade “que
objetiva adotar em nosso país uma experiência, uma unidade privada
experimental”, com o desideratum
de afastar os grandes malefícios da prisão.
Aduz
que: “...não se está transferindo a função jurisdicional
do Estado para o empreendedor privado, que cuidará exclusivamente da função
material da execução penal, vale dizer, o administrador particular será
responsável pela comida, pela limpeza, pelas roupas, pela chamada hotelaria,
enfim, por serviços que são indispensáveis num presídio.
Já
a função jurisdicional, indelegável, permanece nas mãos do Estado que, por
meio de seu órgão-juiz, determinará quando o homem poderá ser preso, quanto
tempo assim ficará, quando e como ocorrerá a punição e quando o homem poderá
sair da cadeia, numa preservação do poder de império do Estado, que é o único
legitimado para o uso da força, dentro da observância da lei”.
XII.1.
Pelo que nos foi possível coligir, resta ainda o referencial à posição de Júlio
Fabbrini Mirabete, em substancial estudo que procedeu e que foi objeto de
publicação na Revista deste Colegiado, vol. 1 n. 1 jan/jul - 93, p. 61/71.
Analisando o tema que intitulou “A
Privatização dos estabelecimentos penais diante da Lei de Execução Penal”,
separa as atividades inerentes à execução, destacando as atividades
administrativas em sentido amplo, classificadas na divisão que propõe:
atividades administrativas em sentido estrito (judiciárias) e atividades de
execução material, podendo estas, em seu modo de pensar, serem atribuídas a
entidades privadas. Afasta, pois, em termos legais, qualquer tentativa de
privatizar as atividades jurisdicionais, bem como a atividade administrativa
judiciária, exercidas estas últimas, v.g. pelo Ministério Público, Conselho
Penitenciário, etc.
Demais
disso, mesmo em relação às atividades que entende possa a empresa privada
exercer, consigna que o ordenamento jurídico contém mecanismos à contemplação,
dispensando-se, pois, qualquer reforma legislativa.
XIII.
De tudo quanto se expôs, parece que, afora as radicais oposições a qualquer
tentativa de cunho eminentemente privatizador, busca-se melhoria no sistema, com
a terceirização de serviços, ou implementação de medidas que possam
reverter o quadro atual.
Pela
reportagem publicada no jornal Tribuna da Magistratura, edição de mai/jun-1998,
p. 8 e 9, encontramos experiência válida que pode ser implementada sem que os
postulados legais venham a ser afetados. A propósito, também, as lúcidas
observações de Júlio Fabbrini Mirabete, conforme item XII.1, quando analisa
as atividades administrativas de execução material.
Demais
disso, é preciso que as verbas destinadas ao Setor Penitenciário sejam
efetivamente aplicadas e não ocorram as situações contidas no noticiário
constante das edições de 8-11-1999 e 11-01-2000, Jornal Folha de São Paulo,
vale dizer em 1999 apenas 7% da verba destinada às prisões foram liberadas.
Os
recursos próprios do FUNPEN (Fundo Penitenciário Nacional) assim como as dotações
orçamentárias específicas, se aplicadas convenientemente, não estariam a
propiciar a situação dramática ocorrente.
O
problema, como se vê, assume proporções inimagináveis, e mesmo as recentes
medidas implementadas no ordenamento jurídico, ampliando o rol dos
substitutivos penais, não propiciarão, a curto ou médio prazo, minimizar o
quadro, a não ser com medidas que deverão ser equacionadas e postas
urgentemente em prática. Para tal mister, a união de todas as forças
envolvidas com a problemática da execução deverá se efetivar, com a coordenação
de Encontro, por parte do Ministério da Justiça. Segmentos comunitários -
Magistratura - OAB - Ministério Público, todos poderão traçar estratégias.
Na
perspectiva fundamental, contudo, do caso que temos em mãos, não vemos condição
de êxito à propositura efetivada pelo nobre Deputado. Louve-se sua preocupação,
contudo, o Projeto carece de sustentação à luz do ordenamento jurídico, sob
o manto constitucional e legal. Na essência, transfere-se ao particular a custódia
do preso, hipótese com a qual não se pode compactuar.
Com
efeito, enuncia o Projeto que as assim denominadas Casas de Correção, como se
propõe, serão dirigidas por um Diretor Administrativo e por um Diretor de
Execução Penal, aduzindo que em relação àquele não deverá ter qualquer vínculo
com o serviço público. Quanto ao Diretor de Execução Penal, o vincula à
Secretaria de Segurança Pública como “...responsável
pela observância de todos os preceitos relativos ao condenado articulados no Código
Penal”.
Nenhuma
menção à Carta Magna à Lei de Execução Penal; nenhuma referência aos
aspectos jurisdicionais que suscita a execução; omissão completa, por assim
dizer, do ordenamento jurídico.
Consoante
atrás alinhado, a questão atinente à eventual terceirização de serviços
pode ser viabilizada. Para tanto há lei e dispensável, neste aspecto, qualquer
reforma legislativa. Neste particular, através de experiência recente, o
Estado do Paraná, em ação pioneira, a nosso ver, firmou contrato com empresa,
através do qual vários serviços foram terceirizados, dentre os quais aqueles
que dizem de perto com as atividades de execução material propriamente ditas
(alimentação, vestuário, assistência médica, jurídica, odontológica,
vigilância, etc.), permanecendo o Estado com a tutela do Estabelecimento
(Penitenciária Industrial de Guarapuava), nos aspectos relacionados à Direção,
segurança e controle da disciplina. Em nenhum momento as atividades
jurisdicionais ou as de cunho administrativo judiciário, adotando a classificação
proposta por Mirabete, foi afetada. De igual forma, criaram-se canteiros de
trabalho junto à Penitenciária referida, possibilitando a atividade laborativa
dos internos, mediante remuneração, viabilizados os instrumentos de locação
de serviços dos internos, com o Fundo Penitenciário do Estado.
Ante
tudo o que se expôs, parece-nos, com a devida venia, que a proposta apresentada
encontra óbices, quer sob o aspecto constitucional quer legal, frente à Lei de
Execução Penal, daí porque não enseja possa ser objeto de recomendação.
Alvitra-se, pois, seja rejeitada a
proposição de fls.4/6 pelas razões consignadas.
(Parecer
oferecido pelo Conselheiro Maurício Kuehne e aprovado em sessão do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária realizada em Brasília, em 24 de
abril de 2000.)
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