As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto
Paulo Queiroz - Procurador da República / Gamil Föppel e Tiago Sena - Estagiários do MPF
MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL
PROCURADORIA DA REPÚBLICA - BAHIA
Exmo.
Sr. Dr. Juiz Federal da 2.ª Vara:
Ref.
Autos n.º 2000.33.00.021870-0
“...
a sujeição do
juiz à lei já não é de fato, como no velho paradigma juspositivista, sujeição
à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sim sujeição à lei
somente enquanto válida, ou seja, coerente com a constituição. E a validade já
não é, no modelo constitucional-garantista, um dogma ligado à mera existência
formal da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência - mais ou
menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz - do seus significados
com a constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também
sempre um juízo sobre a própria lei relativamente à qual o juiz tem o dever e
a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis
com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por
elas estabelecidos[1]...”
(Luigi Ferrajoli)
O
presente inquérito policial foi instaurado com vistas a apurar o recebimento
indevido de benefício previdenciário por E.
L. C., que recebeu, continuamente, os proventos de seu companheiro, mesmo após
a sua morte, incorrendo, ipso facto,
nas penas do art. 171, § 3.°, do Código Penal (estelionato qualificado).
Provada
embora a materialidade e autoria do fato, força é convir, porém, quanto a
aplicabilidade do Princípio de Insignificância, dada a evidente desproporção
entre a ínfima intensidade da lesão e a pena cominada em abstrato, visto ter a
indiciada recebido apenas R$490,71 (quatrocentos e noventa Reais e setenta e um
centavos), correspondentes a quatro meses e cinco dias de benefício,
excluindo-se, assim, com adotar semelhante princípio, a tipicidade penal, já
que o pequeno prejuízo causado não pode legitimar a repreensão jurídico-penal,
inevitavelmente traumática, cirúrgica e negativa (García-Pablos),
conforme já reconhecido, inclusive, pelo M.M.
Juiz Federal da 2.ª vara especializada criminal, seção judiciária da Bahia,
noutros processos[2]:
“Penal. Processo Penal. Insignificância do dano ao bem tutelado. Desproporcionalidade da sanção frente aquele.
...
A insignificância do
dano ao bem protegido juridicamente e o caráter subsidiário do direito penal,
determinam a absolvição do apelante.”
(ACR N.º 0207964-9 – RJ, TRF/2R, 3.ª T, REL. Juiz Paulo Barata, DJ 21.11.96)
“Se
não há lesão significativa ao bem jurídico, deve ser excluída a tipicidade
penal pela aplicação do princípio da insignificância”
(TACrSP, RJ DTACr 9/75-6).
Outro não poderia ser o entendimento a sufragar, pois, como assinala Vico Mañas[3]:
“nos
casos de ínfima lesão ao bem jurídico, o conteúdo do injusto é tão pequeno
que não subsiste qualquer razão para a imposição da reprimenda. Ainda a pena
mínima seria desproporcional à significação social do fato”.
Aliás,
tal princípio passou a ter maior transcendência após a edição (e repetidas
reedições) da Medida Provisória 1973,
que dispôs (art. 20), textualmente:
“Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos no valor igual ou inferior a R$ 2.500,00”.
Por
isso, o aludido princípio passou
a ser aplicável aos crimes em que o prejuízo patrimonial for inferior a
R$2.500,00 (dois mil e quinhentos Reais).
Neste sentido, Luiz
Flávio Gomes[4]:
“...
Dos
fatos mínimos (dos delitos de bagatela) não deve cuidar o juiz (minina
non curat praetor). Esse importante princípio, já aplicado no tempo do
direito romano e recuperado, depois da segunda guerra, por Roxin
(Kriminalpolitik und Strafrechtssystem,
em JUS, 1964, p. 373 e ss.), vem sendo reconhecido amplamente pelos juízes e
tribunais (cfr. JESUS, Damásio E. de, Imputação
objetiva, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 76), especialmente no delito de
descaminho, que consiste em não pagar, no todo ou em parte, o imposto devido
pela entrada ou saída de mercadorias do país. Até pouco tempo a jurisprudência
entendia não haver crime no descaminho em que os impostos não ultrapassavam R$
1.000,00 (STJ, REsp 235.151, relator GILSON DIPP, DJU de 08.05.00, p. 116; STJ,
REsp 235.146, relator FÉLIX FISCHER, DJU de 08.05.00, p. 116; TRF-1ª Região,
3ª Turma, AC 94.02.03892, EJTRF, Brasília, v. 1, 5/76). AS MAIS RECENTES DECISÕES ESTÃO LEVANDO
EM CONTA O VALOR DE R$2.500,00:
1)
DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. MP Nº 1973.
“...
Pacificou-se a jurisprudência desta Primeira Turma no sentido de que somente
deve ser aplicado o princípio da insignificância, nos casos de descaminho de
mercadorias, quando o comprometimento que resulta ao erário público pelo falta
de pagamento dos devidos, não exceder a R$ 2.500,00...”(MP 1.973-63, de 29-06-2000). “TRF 4ª REGIÃO – RECURSO CRIMINAL EM
SENTIDO ESTRITO Nº 2000.70.02.003443-1/PR, Rel. Juiz Amir Sarti (DJU
28.02.2001, SEÇÃO 2, p. 141).
(...)
Ora,
o raciocínio seguido pelos juízes é simples: o Governo entende que não vale
a pena executar débitos de até R$ 2.500,00 porque não compensa para o erário
público; com maior razão então esses débitos não podem ter relevância
penal. O
que é insignificante para fins fiscais, não pode ser relevante para fins
penais.
E
podem as Medidas Provisórias ter efeitos penais? As Medidas Provisórias jamais
podem criar crimes, definir penas ou restringir direitos e garantias
fundamentais (tudo isso só pode ser feito por lei ordinária). Mas indiscutivelmente podem beneficiar o réu. Aliás, em favor do réu
é possível analogia, a aplicação dos princípios gerais do direito e os
costumes. Se até os costumes (regras não escritas) podem favorecer o réu, com
mais razão isso pode ser feito pelas Medidas Provisórias que contam com força
de lei (CF, art. 62).
(...)
Observe-se que o valor de R$ 2.500,00, doravante, serve de parâmetro não só para a descaracterização do delito de descaminho, senão também para outros delitos contra a União (crimes tributários, previdenciários, ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO etc.). Mas não se trata de um critério válido para todos os crimes. Fora das hipóteses em que a lei disciplina a insignificância (como é o caso dos crimes contra a União), esse princípio deve sempre ser analisado em cada caso concreto, levando em conta o nível da ofensa ao bem jurídico, a relevância desse bem, condições da vítima etc...”[5].
Por
outro lado, cabe invocar o erro de proibição
(CP, art. 21), porquanto Elisa Costa, claramente, agiu movida por erro quanto à
ilicitude da conduta, haja vista o teor de suas declarações de fls. 85, quando
informou que “apenas sabe assinar o nome” e que soube por uma filha que não
poderia continuar a receber os valores. Verifica-se, pois, a evidente ocorrência
de erro de proibição, excludente, por conseguinte, da culpabilidade. A este
respeito, Muñoz Conde[6]:
“...
O conhecimento da ilicitude não é um elemento supérfluo da
culpabilidade, mas, ao contrário, um elemento essencial e que lhe dá razão de
ser. Logicamente, a atribuição que supõe a culpabilidade só tem sentido para
quem sabe que a sua ação está proibida. A função motivadora da norma penal
só pode ter eficácia, a nível individual, se o indivíduo em questão, autor
de um fato proibido pela Lei Penal (portanto, típico e antijurídico), tinha
consciência da proibição, pois, do contrário, ele não teria motivo para se
abster de fazer o que fez...”.
Sobre
a repercussão da inevitabilidade do erro de proibição, Luiz Flávio
Gomes[7]:
“...
quando o agente comete a infração sem a consciência da
ilicitude do fato e, nas circunstâncias em que praticou a conduta, sem a
possibilidade de ter ou atingir esta consciência, surge o erro de proibição
inevitável ou escusável (= não há culpabilidade nem responsabilidade penal)...”.
Com
efeito, analisando-se o caso sub examine,
constata-se que não havia, por parte da pessoa investigada, possibilidade de
conhecer a proibição de uma tal conduta, sendo também certo que, pelas
circunstâncias pessoais da agente , este erro é plenamente justificável, vale
dizer, invencível, conforme, aliás,
reconheceu a ilustrada autoridade policial:
“...
Ficou evidentemente demonstrado que a senhora E. L. C. em momento algum quis
manter a previdência em erro, agindo de má fé, mesmo porque tão logo tomou
conhecimento de que não deveria continuar recebendo o questionado benefício,
por intermédio de sua filha que se fez presente junto ao INSS, a fim de saber
se sua genitora tinha direito a aposentadoria, em companhia da mesma compareceu
ao INSS, apresentando o cartão magnético, conseq6uentemente ocasionando o
cancelamento do benefício...” (fls. 94/95).
Demais
disso, a antijuridicidade da conduta também fica afastada, eis que E. L. viveu
quarenta e quatro anos com o companheiro de quem recebeu os benefícios
previdenciários, tem com ele treze filhos e para
manter todas as suas despesas, conta apenas com a aposentadoria de um salário mínimo
que lhe é paga pelo INSS, após ter
completado a idade de sessenta e seis anos. Não é irrazoável,
pois, entender que E. agiu sob o manto do estado de necessidade (CP, art. 23, I
e 24), haja vista o choque de interesses: a subsistência de Eliza e o patrimônio
do INSS, sendo, neste caso, razoável exigir-se o sacrifício deste último.
Sobre estado de necessidade, Cézar
Roberto Bittencourt[8]:
“... O estado de necessidade caracteriza-se pela colisão de interesses juridicamente protegidos, devendo um deles ser sacrificado em prol do interesse social. Como salientava Heleno Fragoso, “O que justifica a ação é a necessidade que impõe o sacrifício do bem de menor valor”, desde que imprescindível, acrescentamos, para a salvaguarda do bem preservado...”
Finalmente, não seria demasiada a invocação do “princípio vitimológico” a que se refere Schünemann[9], segundo o qual não se deve dispensar a proteção penal à vítima que não toma os cuidados possíveis e exigíveis para evitar o delito, embora pudesse fácil e eficazmente fazê-lo, contribuindo, pois, de modo decisivo, para a sua perpretação. É dizer: casos há em que o agir da vítima (quer de forma comissiva, quer omissiva) é determinante para que o crime se consumasse, de tal maneira que, se tivesse tomado os mínimos cuidados, não teria sido alvo da infração, como ocorreu no caso em análise, em que fosse o INSS minimamente eficiente, teria se dado conta de que o beneficiário da pensão já havia falecido, cessando o pagamento e frustrando a percepção indevida. Conseqüentemente, afasta-se a responsabilidade do autor, pois a situação fática que ensejou o cometimento do crime deve-se à vítima. Assim LARRAURI[10]:
“...A vítimo-dogmática se preocupa com a contribuição da vítima no delito e a repercussão que deve ter na pena do autor, desde a total exclusão da responsabilidade, com base no “princípio da autorresponsabilidade da vítima”, até uma atenuação da pena...”
Por último, forçoso reconhecer que, caso fosse aplicada uma pena à E. L., tal não passaria de mero ato retributivo, já que, aos setenta anos, sem antecedentes criminais, não se poderia atribuir à pena outra função se não a de curar o mal com um outro mal, sendo, portanto, um fim em si mesmo, meramente simbólica e absolutamente desnecessária. Sobre os fins da pena, Roxin[11]:
“...
a aplicação da pena serve para a proteção subsidiária e preventiva, tanto
geral como individual, de bens jurídicos e de prestações estatais, através
de um processo que salvaguarda a autonomia da personalidade e que, ao impor a
pena, esteja limitado pela medida de culpa...”
Por
tais razões, requeiro o arquivamento do presente inquérito policial.
Salvador,
03 de maio de 2001
PAULO
QUEIROZ
Procurador da República
Tiago
Sena
Estagiário
do MPF
Gamil
Föppel
Estagiário do MPF
[1]
O
Direito como Sistema de Garantias, in O Novo em Direito e Política, org.
José A. de Oliveira Júnior, E. Livraria dos Advogados, 1997.
[2] Decisão
relacionada ao processo n.º 99.15174-9
[3]
MAÑAS, Vico. O
Princípio da insignificância com Excludente de Tipicidade no Direito
Penal. São Paulo, Saraiva, 1993, p.58.
[4] GOMES, Luiz Flávio, Descaminho até R$ 2.500,00 não é crime, in www.direitocriminal.com.br, 25.03.2001.
[5]
Este
texto pode ser obtido na íntegra e sem alguns dos destaques feitos no site
indicado.
[6]
CONDE,
Muñoz. Teoria Geral do Delito. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 158. (obs: O
original não contém os destaques).
[7]
GOMES,
Luiz Flávio. Erro de Tipo e Erro de Proibição. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 4.ª Ed, 1999, p. 135 (obs: O original não contém os
destaques).
[8]
BITTENCOURT,
Cézar Roberto. Teoria
Geral do Delito.
São Paulo: RT, 1997, p. 131.
[9]
LARRAURI,
Elena; BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Victimología:
Presente e Futuro. Colombia: Editorial Temis, S.A., p. 66. (Nota: o
texto transcrito é a livre tradução da seguinte passagem: “... pienso
que puede afirmarse que la victimodogmática se preocupa de la contribución
de la víctima en el delito y la repercusión que ello debe tener en la pena
del autor, desde su total exención de responsabilidad con base en el
“principio de autorresponsabilidad” de la víctima, hasta uma atenuación
de la pena...”.
[10]
apud
ROXIN,
Claus. Política Criminal y Estructura del Delito. Barcelona: PPU, 1992, p.
66.
[11] ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal, p. 40
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