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Arrazoados: Pedido de arquivamento em crime previdenciário com débito fiscal inferior a R$2.500,00, conforme Medida Provisória 1973

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

Paulo Queiroz - Procurador da República / Gamil Föppel e Tiago Sena - Estagiários do MPF

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

PROCURADORIA DA REPÚBLICA - BAHIA

Exmo. Sr. Dr. Juiz Federal da 2.ª Vara:

Ref. Autos n.º 2000.33.00.021870-0

A R Q U I V A M E N T O

“... a sujeição do juiz à lei já não é de fato, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja, coerente com a constituição. E a validade já não é, no modelo constitucional-garantista, um dogma ligado à mera existência formal da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência - mais ou menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz - do seus significados com a constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos[1]...” (Luigi Ferrajoli)

O presente inquérito policial foi instaurado com vistas a apurar o recebimento indevido de benefício previdenciário por E. L. C., que recebeu, continuamente, os proventos de seu companheiro, mesmo após a sua morte, incorrendo, ipso facto, nas penas do art. 171, § 3.°, do Código Penal (estelionato qualificado).

Provada embora a materialidade e autoria do fato, força é convir, porém, quanto a aplicabilidade do Princípio de Insignificância, dada a evidente desproporção entre a ínfima intensidade da lesão e a pena cominada em abstrato, visto ter a indiciada recebido apenas R$490,71 (quatrocentos e noventa Reais e setenta e um centavos), correspondentes a quatro meses e cinco dias de benefício, excluindo-se, assim, com adotar semelhante princípio, a tipicidade penal, já que o pequeno prejuízo causado não pode legitimar a repreensão jurídico-penal, inevitavelmente traumática, cirúrgica e negativa (García-Pablos), conforme já reconhecido, inclusive, pelo M.M. Juiz Federal da 2.ª vara especializada criminal, seção judiciária da Bahia, noutros processos[2]:

“Penal. Processo Penal. Insignificância do dano ao bem tutelado. Desproporcionalidade da sanção frente aquele.

... A insignificância do dano ao bem protegido juridicamente e o caráter subsidiário do direito penal, determinam a absolvição do apelante.” (ACR N.º 0207964-9 – RJ, TRF/2R, 3.ª T, REL. Juiz Paulo Barata, DJ 21.11.96)

Se não há lesão significativa ao bem jurídico, deve ser excluída a tipicidade penal pela aplicação do princípio da insignificância (TACrSP, RJ DTACr 9/75-6).

Outro não poderia ser o entendimento a sufragar, pois, como assinala Vico Mañas[3]:

“nos casos de ínfima lesão ao bem jurídico, o conteúdo do injusto é tão pequeno que não subsiste qualquer razão para a imposição da reprimenda. Ainda a pena mínima seria desproporcional à significação social do fato”.

Aliás, tal princípio passou a ter maior transcendência após a edição (e repetidas reedições) da Medida Provisória 1973, que dispôs (art. 20), textualmente:

“Serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos no valor igual ou inferior a R$ 2.500,00”.

Por isso, o aludido princípio passou a ser aplicável aos crimes em que o prejuízo patrimonial for inferior a R$2.500,00 (dois mil e quinhentos Reais). Neste sentido, Luiz Flávio Gomes[4]:

“... Dos fatos mínimos (dos delitos de bagatela) não deve cuidar o juiz (minina non curat praetor). Esse importante princípio, já aplicado no tempo do direito romano e recuperado, depois da segunda guerra, por Roxin (Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, em JUS, 1964, p. 373 e ss.), vem sendo reconhecido amplamente pelos juízes e tribunais (cfr. JESUS, Damásio E. de, Imputação objetiva, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 76), especialmente no delito de descaminho, que consiste em não pagar, no todo ou em parte, o imposto devido pela entrada ou saída de mercadorias do país. Até pouco tempo a jurisprudência entendia não haver crime no descaminho em que os impostos não ultrapassavam R$ 1.000,00 (STJ, REsp 235.151, relator GILSON DIPP, DJU de 08.05.00, p. 116; STJ, REsp 235.146, relator FÉLIX FISCHER, DJU de 08.05.00, p. 116; TRF-1ª Região, 3ª Turma, AC 94.02.03892, EJTRF, Brasília, v. 1, 5/76). AS MAIS RECENTES DECISÕES ESTÃO LEVANDO EM CONTA O VALOR DE R$2.500,00:

1) DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. MP Nº 1973.

“... Pacificou-se a jurisprudência desta Primeira Turma no sentido de que somente deve ser aplicado o princípio da insignificância, nos casos de descaminho de mercadorias, quando o comprometimento que resulta ao erário público pelo falta de pagamento dos devidos, não exceder a R$ 2.500,00...”(MP 1.973-63, de 29-06-2000). “TRF 4ª REGIÃO – RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO Nº 2000.70.02.003443-1/PR, Rel. Juiz Amir Sarti (DJU 28.02.2001, SEÇÃO 2, p. 141).

(...)

Ora, o raciocínio seguido pelos juízes é simples: o Governo entende que não vale a pena executar débitos de até R$ 2.500,00 porque não compensa para o erário público; com maior razão então esses débitos não podem ter relevância penal. O que é insignificante para fins fiscais, não pode ser relevante para fins penais.

E podem as Medidas Provisórias ter efeitos penais? As Medidas Provisórias jamais podem criar crimes, definir penas ou restringir direitos e garantias fundamentais (tudo isso só pode ser feito por lei ordinária). Mas indiscutivelmente podem beneficiar o réu. Aliás, em favor do réu é possível analogia, a aplicação dos princípios gerais do direito e os costumes. Se até os costumes (regras não escritas) podem favorecer o réu, com mais razão isso pode ser feito pelas Medidas Provisórias que contam com força de lei (CF, art. 62).

(...)

Observe-se que o valor de R$ 2.500,00, doravante, serve de parâmetro não só para a descaracterização do delito de descaminho, senão também para outros delitos contra a União (crimes tributários, previdenciários, ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO etc.). Mas não se trata de um critério válido para todos os crimes. Fora das hipóteses em que a lei disciplina a insignificância (como é o caso dos crimes contra a União), esse princípio deve sempre ser analisado em cada caso concreto, levando em conta o nível da ofensa ao bem jurídico, a relevância desse bem, condições da vítima etc...”[5].

Por outro lado, cabe invocar o erro de proibição (CP, art. 21), porquanto Elisa Costa, claramente, agiu movida por erro quanto à ilicitude da conduta, haja vista o teor de suas declarações de fls. 85, quando informou que “apenas sabe assinar o nome” e que soube por uma filha que não poderia continuar a receber os valores. Verifica-se, pois, a evidente ocorrência de erro de proibição, excludente, por conseguinte, da culpabilidade. A este respeito, Muñoz Conde[6]:

“... O conhecimento da ilicitude não é um elemento supérfluo da culpabilidade, mas, ao contrário, um elemento essencial e que lhe dá razão de ser. Logicamente, a atribuição que supõe a culpabilidade só tem sentido para quem sabe que a sua ação está proibida. A função motivadora da norma penal só pode ter eficácia, a nível individual, se o indivíduo em questão, autor de um fato proibido pela Lei Penal (portanto, típico e antijurídico), tinha consciência da proibição, pois, do contrário, ele não teria motivo para se abster de fazer o que fez...”.

Sobre a repercussão da inevitabilidade do erro de proibição, Luiz Flávio Gomes[7]:

“... quando o agente comete a infração sem a consciência da ilicitude do fato e, nas circunstâncias em que praticou a conduta, sem a possibilidade de ter ou atingir esta consciência, surge o erro de proibição inevitável ou escusável (= não há culpabilidade nem responsabilidade penal)...”.

Com efeito, analisando-se o caso sub examine, constata-se que não havia, por parte da pessoa investigada, possibilidade de conhecer a proibição de uma tal conduta, sendo também certo que, pelas circunstâncias pessoais da agente , este erro é plenamente justificável, vale dizer, invencível, conforme, aliás, reconheceu a ilustrada autoridade policial:

“... Ficou evidentemente demonstrado que a senhora E. L. C. em momento algum quis manter a previdência em erro, agindo de má fé, mesmo porque tão logo tomou conhecimento de que não deveria continuar recebendo o questionado benefício, por intermédio de sua filha que se fez presente junto ao INSS, a fim de saber se sua genitora tinha direito a aposentadoria, em companhia da mesma compareceu ao INSS, apresentando o cartão magnético, conseq6uentemente ocasionando o cancelamento do benefício...” (fls. 94/95).

Demais disso, a antijuridicidade da conduta também fica afastada, eis que E. L. viveu quarenta e quatro anos com o companheiro de quem recebeu os benefícios previdenciários, tem com ele treze filhos e para manter todas as suas despesas, conta apenas com a aposentadoria de um salário mínimo que lhe é paga pelo INSS, após ter completado a idade de sessenta e seis anos. Não é irrazoável, pois, entender que E. agiu sob o manto do estado de necessidade (CP, art. 23, I e 24), haja vista o choque de interesses: a subsistência de Eliza e o patrimônio do INSS, sendo, neste caso, razoável exigir-se o sacrifício deste último. Sobre estado de necessidade, Cézar Roberto Bittencourt[8]:

“... O estado de necessidade caracteriza-se pela colisão de interesses juridicamente protegidos, devendo um deles ser sacrificado em prol do interesse social. Como salientava Heleno Fragoso, “O que justifica a ação é a necessidade que impõe o sacrifício do bem de menor valor”, desde que imprescindível, acrescentamos, para a salvaguarda do bem preservado...”

Finalmente, não seria demasiada a invocação do “princípio vitimológico” a que se refere Schünemann[9], segundo o qual não se deve dispensar a proteção penal à vítima que não toma os cuidados possíveis e exigíveis para evitar o delito, embora pudesse fácil e eficazmente fazê-lo, contribuindo, pois, de modo decisivo, para a sua perpretação. É dizer: casos há em que o agir da vítima (quer de forma comissiva, quer omissiva) é determinante para que o crime se consumasse, de tal maneira que, se tivesse tomado os mínimos cuidados, não teria sido alvo da infração, como ocorreu no caso em análise, em que fosse o INSS minimamente eficiente, teria se dado conta de que o beneficiário da pensão já havia falecido, cessando o pagamento e frustrando a percepção indevida. Conseqüentemente, afasta-se a responsabilidade do autor, pois a situação fática que ensejou o cometimento do crime deve-se à vítima. Assim LARRAURI[10]:

“...A vítimo-dogmática se preocupa com a contribuição da vítima no delito e a repercussão que deve ter na pena do autor, desde a total exclusão da responsabilidade, com base no “princípio da autorresponsabilidade da vítima”, até uma atenuação da pena...”

Por último, forçoso reconhecer que, caso fosse aplicada uma pena à E. L., tal não passaria de mero ato retributivo, já que, aos setenta anos, sem antecedentes criminais, não se poderia atribuir à pena outra função se não a de curar o mal com um outro mal, sendo, portanto, um fim em si mesmo, meramente simbólica e absolutamente desnecessária. Sobre os fins da pena, Roxin[11]:

“... a aplicação da pena serve para a proteção subsidiária e preventiva, tanto geral como individual, de bens jurídicos e de prestações estatais, através de um processo que salvaguarda a autonomia da personalidade e que, ao impor a pena, esteja limitado pela medida de culpa...”

Por tais razões, requeiro o arquivamento do presente inquérito policial.

Salvador, 03 de maio de 2001

PAULO QUEIROZ

Procurador da República

Tiago Sena

Estagiário do MPF

Gamil Föppel

Estagiário do MPF



[1] O Direito como Sistema de Garantias, in O Novo em Direito e Política, org. José A. de Oliveira Júnior, E. Livraria dos Advogados, 1997.

[2] Decisão relacionada ao processo n.º 99.15174-9

[3] MAÑAS, Vico. O Princípio da insignificância com Excludente de Tipicidade no Direito Penal. São Paulo, Saraiva, 1993, p.58.

[4] GOMES, Luiz Flávio, Descaminho até R$ 2.500,00 não é crime, in www.direitocriminal.com.br, 25.03.2001.

[5] Este texto pode ser obtido na íntegra e sem alguns dos destaques feitos no site indicado.

[6] CONDE, Muñoz. Teoria Geral do Delito. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 158. (obs: O original não contém os destaques).

[7] GOMES, Luiz Flávio. Erro de Tipo e Erro de Proibição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 4.ª Ed, 1999, p. 135 (obs: O original não contém os destaques).

[8] BITTENCOURT, Cézar Roberto. Teoria Geral do Delito. São Paulo: RT, 1997, p. 131.

[9] LARRAURI, Elena; BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Victimología: Presente e Futuro. Colombia: Editorial Temis, S.A., p. 66. (Nota: o texto transcrito é a livre tradução da seguinte passagem: “... pienso que puede afirmarse que la victimodogmática se preocupa de la contribución de la víctima en el delito y la repercusión que ello debe tener en la pena del autor, desde su total exención de responsabilidad con base en el “principio de autorresponsabilidad” de la víctima, hasta uma atenuación de la pena...”.

[10] apud ROXIN, Claus. Política Criminal y Estructura del Delito. Barcelona: PPU, 1992, p. 66.

[11] ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal, p. 40



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