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Decisões: Agravo em execução. Direito fundamental e indisponível. Possibilidade. Prisão domiciliar com recolhimento carcerário em fins de semana.
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Amilton Bueno de Carvalho
AGRAVO (ART. 197 LEI 7.210/84) QUINTA CÂMARA CRIMINAL N° 70004044731 SANTO CRISTO
AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO
AGRAVADO : MAURILIO MIGUEL DOS SANTOS PRESTES
EMENTA
AGRAVO EM EXECUÇÃO. REGIME SEMI-ABERTO. TRABALHO EM LOCAL DISTANTE. DIREITO FUNDAMENTAL E INDISPONÍVEL. POSSIBILIDADE. PRISÃO DOMICILIAR COM RECOLHIMENTO CARCERÁRIO EM FINS DE SEMANA.
- Apenado em regime semi-aberto que logra emprego em sua cidade de origem – local distante do presídio.
Possibilidade de recolher-se ao cárcere nos finais de semana e durante os dias de trabalho restar – à noite – em prisão domiciliar.
- Compatibilização do direito ao trabalho com o cumprimento da pena privativa de liberdade.
- Agravo provido em parte.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar parcial provimento ao agravo para, mantida a decisão singular, tão-só, estabelecer o cumprimento de pena em prisão domiciliar na cidade de Porto Lucena durante o período semanal em que exercerá atividade laboral.
Custas, na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores, Des. Aramis Nassif e Des. Paulo Moacir Aguiar Vieira.
Porto Alegre, 07 de agosto de 2002.
AMILTON BUENO DE CARVALHO,
Relator
RELATÓRIO
AMILTON BUENO DE CARVALHO (RELATOR) – Nos autos do Processo de Execução Criminal n.º 8791, o Juiz de Direito da Comarca de Santo Cristo deferiu pedido de apresentação semanal ao apenado MURÍLIO MIGUEL DOS SANTOS PRESTES, em razão de possibilidade de trabalho conquistada em localidade diversa daquela em que se encontra segregado.
Inconformado, o Ministério Público agravou, sustentando que o decisum não encontra amparo legal, pois o apenado encontra-se cumprindo pena em regime semi-aberto, sendo a concessão do benefício vedada pela Lei de Execuções Penais. Em contra-razões, a defesa pugnou pela manutenção da decisão hostilizada.
Mantida a decisão recorrida, por seus próprios fundamentos, vieram os autos para este Tribunal.
Em parecer exarado às fls. 20/22, a Procurador de Justiça, Dr. João Batista Marques Tovo, manifestou-se, preliminarmente, pela conversão do julgamento em diligência para a complementação do instrumento (juntada de documentos), o que se procedeu. No mérito manifestou-se pelo provimento do agravo.
Retornando os autos a este Tribunal, o Procurador de Justiça, Dr. João Batista Marques Tovo, em novo parecer, opinou pelo provimento do agravo.
É o relatório.
VOTO
AMILTON BUENO DE CARVALHO (RELATOR) – Com máxima vênia do colega singular, entendo que a decisão merece ser reformada em parte.
Vejamos, pois.
Desde meu ponto de vista, assiste razão o ilustre colega singular José Francisco Dias da Costa Lyra: é de se deferir o benefício do trabalho externo com apresentação semanal.
A Lei de Execuções Penais, em seu artigo inaugural, estabelece que execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.
“O projeto de Lei de Execução Penal curvou ao princípio de que as penas e medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do indivíduo a comunidade.
Assim, se de um lado é necessário observar a correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras decisões, destinados a reprimir e a prevenir os delitos, por outro lado, é importante considerar a oferta de meios pelos quais os apenados venham a ter participação construtiva na sociedade.” (Agravo Regimental nº 70000184507, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Nilo Wolff, julgado em 06/10/99)
E o trabalho – direito subjetivo do réu –, como todos sabemos, de características dignificadoras do homem, exerce função lapidar na concretização dos objetivos reconhecidos pela LEP e é inerente a sistema progressivo e ao regime semi-aberto.
A lei que rege a execução penal no Brasil, assim como, a Constituição de 1988, estabelecem, juntamente com o rol de deveres, uma série de direitos ao cidadão-encarcerado, dentre os quais encontra-se o sagrado direito ao trabalho.
Direitos que se traduzem, no modelo estatal democrático inaugurado pela Constituição de 1988, em deveres que definem a legitimidade de seu atuar nas três esferas: legislativa, executiva e judiciária. Impõe-se ao Estado, desta forma, obrigações de fazer e não fazer que garantam ao preso a segurança dos direitos fundamentais. Assim, desde o meu ponto de vista, agiu acertadamente o nobre colega singular ao deferir o benefício em questão.
Aliás, nesta direção já existe decisão desta Corte:
“AGRAVO. Concessão, ao réu condenado a 15 anos de reclusão em regime inicial fechado, dos benefícios da progressão de regime e do trabalho externo semanal. Irresignação ministerial quanto ao segundo benefício. Improvimento. Unânime. (Agravo Regimental nº 70000184507, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Nilo Wolff, julgado em 06/10/99)”
Mister sopesar, ainda, que o alcance da pena privativa de liberdade – no Estado Democrático de Direito – está limitado à restrita parcela de direito de liberdade do cidadão. Não abrange demais direitos sob pena de atuação arbitrária e ilegítima. Já disse Beccaria, no século XVIII, que parcelas de liberdade constituem o fundamento do direito de punir. Todo o exercício que deste fundamento se afaste constitui abuso e não justiça; é um poder de fato não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo. (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das Penas. São Paulo: Hemus, 1974. p. 30)
Desta forma percebe-se, desde a ótica garantista que nos orienta, que no exercício do direito de punir, resta vedada ao Estado interferência sobre qualquer direito que não aquela, já mencionada, pequena parcela da liberdade, única para o qual é legitimado: estão imunizadas demais esferas – da consciência individual, dos direitos sociais, etc. Dentro da fração de direitos cedidos para a construção do Estado – limite do jus puniendi – não se encontram tais garantias.
Finalmente, ante a limitação do poder punitivo estatal, há que se causar menor sofrimento possível ao desviante – Ferrajoli – ofício que exige aposta e confiança no sentimento de humanidade do juiz, próximo aos fatos e com maior possibilidade de avaliação.
O dilema que explode no caso concreto, então, se resume em compatibilizar o exercício de trabalho em cidade próxima, com as exigências de segurança inerentes à questão prisional.
Pois bem, neste aspecto valho-me do que dispõe o artigo 32 do Código Penal:
“Art. 32 Na atribuição do trabalho deverão ser levadas em conta a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades oferecidas pelo mercado” (grifo nosso) Da análise de tais pressupostos tenho que – pelo que consta dos autos:
um – o apenado não registra qualquer incidente desabonatório na execução;
dois – as necessidades futuras são latentes, despiciendo delongas justificatórias, eis a realidade: cidadão preso, pobre que possui, como qualquer outro, necessidades – pessoais e familiares – a suprir.
e,
três – neste último aspecto – oportunidade oferecida pelo mercado de trabalho – ressalto, que na atual conjuntura socioeconômica brasileira, é sabida a dificuldade de cidadão viabilizar um emprego – parcela significativa da população encontra-se engordando o bolsão de desempregados no país. As dificuldades de adquirir posto de trabalho saltam aos olhos e se agudizam quando se trata de cidadão-preso (estigmatizado por sua condição).
Neste contexto – escassez de ofertas – as oportunidades que surgem devem ser, imediatamente, aproveitadas – tudo para cumprir a finalidade de “integração social” – carro chefe da Execução. Mais, a neutralização do discurso, operada pelo senso comum teórico dos juristas, constrói uma realidade – a que convém à manutenção do status quo – por meio de abstrações no, limitado, âmbito do que é juridicamente ordenável, ocultando, em contrapartida, a verdadeira realidade social existente – é o “invisível” que se esconde atrás da realidade aparente a que se refere Miaille, já mencionado em momento doutrinário (Direito Alternativo – Teoria e Prática, Porto Alegre, Síntese, 1988, p. 51).
O operador se restringe a afirmar a rígida letra da lei sem, entretanto, discutir seu significado e alcance ao caso concreto – o indispensável labor criativo, em tal postura, é completamente nulo.
Na espécie, vejo-me diante de duas aspirações, de peso diferenciado, que se atritam: por um lado tem-se a preponderante pretensão do réu de exercer seu - indisponível, inalienável – direito ao trabalho, e por outro, a vontade persecutória em cumprir, à risca, todos os requisitos de vigilância inerentes ao regime prisional (semi-aberto) ao qual o apenado se encontra submetido.
Não há notícias de que ao agravado tenha sido ofertada oportunidade de emprego no local em que se encontra segregado, ou em qualquer outro mais próximo, a “digna” busca por trabalho em outra localidade – de onde é originário – foi a única alternativa que lhe restou. Imprescindível, então – em postura democrática e garantista –, a construção de um caminho que viabilize, na prática, o trabalho ao agravado (direito fundamental de segunda geração) e, ao mesmo tempo, preserve a necessária vigilância estatal a que deve ser ele submetido no cumprimento de sua pena.
Assim, tenho que não se trata de nenhum disparate permitir ao apenado trabalho externo em cidade próxima e nem vislumbro que tal concessão represente dispensá-lo graciosamente de cumprir a pena. Mas, por outro lado, significa sim uma possibilidade concreta de (re)inseri-lo dignamente na sociedade, sem deixar, ao mesmo tempo, de cumprir suas obrigações para com o Estado – dará conta de suas atividades semanalmente, as quais permanecem fiscalizadas e condicionadas, conforme já se disse.
Outrossim, a situação do preso com concessão de trabalho externo não é liberdade “flexibilizada em demasia”: pode ser revogada a qualquer tempo e será fiscalizada.
Neste contexto, vejo como caminho viável ao caso a manutenção da decisão monocrática, agregando o regime de prisão domiciliar na cidade de Porto Lucena – localidade em que exercerá atividade laboral.
Com tal posicionamento vislumbro estar sendo cumprido o requisito segregativo inerente ao regime prisional de forma a, racionalmente, evitar que a lei penal adquira um fim em si mesma.
A flexibilização de direitos (no caso direito ao trabalho diante do excesso de demanda e escassez de oferta) impõe imediata readequação normativa: direito e realidade social, são elementos que devem coexistir em troca simultânea de estímulo e resposta adequada!
Na suma, o agravado durante a semana ficará recolhido em sua residência no período da noite – horário a ser fixado em 1º grau – e se recolherá ao presídio no final da semana – também em horário a ser estabelecido pelo juízo singular.
Diante do exposto, dá-se parcial provimento ao agravo para, mantida a decisão singular, estabelecer cumprimento de pena em prisão domiciliar na cidade de Porto Lucena durante o período semanal em que exercerá atividade laboral.
DES. ARAMIS NASSIF – De acordo.
DES. PAULO MOACIR AGUIAR VIEIRA – De acordo.
Rsbs/mom
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